Louquética

Incontinência verbal

sábado, 31 de agosto de 2013

Os graus do preconceito


Muito engraçado: chega um tempo em que incorporamos as coisas que nos são postiças. Daí que somente hoje vim enxergar o preconceito, velho preconceito, por sinal, contra meu alto grau de miopia. Certo que não uso óculos por aí, fico em casa com eles. Mas passo a achar que enxergo como qualquer outra pessoa. Lembro mais do meu astigmatismo porque, apesar das chuvas, esta cidade é clara boa parte do tempo.
Hoje acompanhei o Zero Um na compra dos óculos dele, que agora passa a ser o Zero Único, uma vez que desmanchei a outra relação, e lá fui eu encomendar os óculos dele.
Ele não usa óculos: fez cirurgia. Teve óculos obrigatório por cerca de três ou quatro meses e, se sentindo ridículo, partiu para a cirurgia corretiva.
A cirurgia corrigiu, mas a natureza atuou contra: o grau voltou. E para ele, tanto faz. Os óculos de agora se devem à exigência do DETRAN, que se negou a renovar a Carteira de Habilitação dele por conta do diagnóstico: não enxerga um palmo à frente do nariz. Digo eu internamente: Graças a Deus! vai que ele enxergasse alguma coisa?eu estaria frita.
E foi justamente ele quem me advertiu ante as coisas todas que a funcionária da ótica estava a me discriminar, argumentando que meu tipo de lente só poderia ser de um dado jeito porque meus graus são fortes, altos. Sim, são cinco graus. E como eu resolvi usar lentes há uns dez anos e uso óculos no ambiente doméstico, esqueci os velhos apelidos dos óculos fundo de garrafa.
Também com o tempo eu fui administrando as situações de forma mais bem humorada. Minha amiga-mais-que-irmã era assim como eu, míope. E depois que ela cumprimentou um poste e que eu, sem óculos, peguei o meu gato preto pelo rabo, quando ele estava no sofá, e o pus a tiracolo, pensado ser minha bolsa preta em forma de meia-lua, aprendi a rir. E não pensem que o gato miou ou protestou - seria um alerta!
Sem óculos e sem lente só enxergo fantasmas, as coisas não têm contorno nem nitidez. Porém, até agora, incorporei os óculos e as lentes, quase nem lembrando que não fazem parte de meu corpo. E como Zero Único estivesse fazendo os óculos dele, resolvi consultar, fazer um orçamento para novos óculos e acabei ouvindo isso, essa indireta de que meus graus são aberrantes.
Eu já disse que sou tão míope que durmo de óculos para enxergar meus sonhos...

Paralamas do Sucesso: Óculos

Se as meninas do Leblon
Não olham mais pra mim
(Eu uso óculos)
E volta e meia
Eu entro com meu carro pela contramão
(Eu tô sem óculos)
Se eu tô alegre
Eu ponho os óculos e vejo tudo bem
Mas se eu to triste eu tiro os óculos
Eu não vejo ninguém

Por que você não olha pra mim? Me diz o que é que eu tenho de mal.
Por que você não olha pra mim?
Por trás dessa lente tem um cara legal

Eu decidi dizer que eu nunca fui o tal
Era mais fácil se eu tentasse
fazer charme de intelectual
Se eu te disser
Periga você não acreditar em mim
Eu não nasci de óculos
Eu não era assim

Por que você não olha pra mim? Me diz o que e que eu tenho de mal 
Por que você não olha pra mim?
Por trás dessa lente tem um cara legal

Por que você não olha pra mim? 
Por que você diz sempre que não? 
Por que você não olha pra mim?
Por trás dessa lente também bate um coração

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Eu, tu, ele, nós, voz e violão




Com greve, paralisação ou simples burburinho, amanhã eu irei trabalhar. Isso foi um balde de água fria na minha súbita vontade de ir ali, na night, ouvir um show.
É, ouvir um show: não era para dançar, nem para ver... Era para ouvir. Aconteceu, porém, de eu superestimar meu desejo de sair e achar que se eu me descabelasse de tanto correr, como acabei mesmo fazendo hoje à tarde, à noite eu estaria inteira e feliz para ir ao CUCA (Centro de Cultura e Arte). O que houve foi que não sei se me sinto cansada – ou finjo não sentir cansaço para disfarçar os efeitos da visita crucial do tempo, modo eufêmico de falar da velhice – ou se é só preguiça, porque penso na volta. Porém, se vou sozinha, sem ninguém para me perturbar e comandar minha vontade, volto à hora que eu bem entender, não tenho que ficar até duas da manhã - até porque isso deve acabar às 23 horas).
Sei é que de manhã terei o que fazer.
Passei parte do dia de hoje corrigindo resenhas de uma turma, da turma de amanhã à tarde. É que trabalho em Salvador e, para estar lá à tarde, tenho que sair daqui de manhã. E sair de manhã é sair às nove horas. Para estar pronta às nove, preciso me levantar às sete. Pois é. E quando minha aula é às nove, acordo às cinco da madruga, pego o executivo às seis e passo o dia sonolenta.
A verdade mesmo é que eu sei que  não vou sair para lugar algum neste fim de semana – ou não terá sol ou não terá show – e se não saio hoje esta será mais uma semana a ser lastimada pelo fator múmia. Olha, adoro estar em minha casa, todo mundo sabe disso. Mas não suporto ficar sem badalações, sem festa, sem shows... Eu, hein? Ficar em casa, vegetando feito uma planta – muda, muda – Deus me livre!
Acho que vou largar minhas obrigações, meus afazeres e sair um pouquinho, apesar desta preguiça a me corroer... Poxa, levantar daqui, tomar banho, escolher uma roupa, ajeitar esta minha cara, sair lá fora, no frio e picar a mula para ver o show... Ouvir o show... Sei lá! É que ao voltar, vou dormir pouco, mas sei que devo ir. Lembremos da avó de Leila: “Cocada que não sai, não vende!” e não é nem que eu queira expor meu tabuleiro: é vontade de sair. Acho que vou mesmo. Depois, vou ter mais o que contar. Mas, por outro lado, fico ás vezes com a música do Los Hermanos na cabeça, bem a frase "Sair de casa já é se aventurar" e me dá uma hesitação!
Ouvi muito esta música quando amargava uns chifres bravos que andei recebendo na testa. O que se pode dizer? vish!nada mais. Mas, é isso: "sair de casa já é se aventurar" - se eu ficar em casa, me escondo da vida, né?
Trilha sonora de hoje: Último romance, by Los Hermanos.


Eu encontrei-a quando não quis
Mais procurar o meu amor
E quanto levou foi pr'eu merecer
Antes de um mês e eu já não sei

E até quem me vê lendo o jornal
Na fila do pão, sabe que eu te encontrei
E ninguém dirá que é tarde demais
Que é tão diferente assim
Do nosso amor a gente é que sabe, pequena

Ah vai!
Me diz o que é o sufoco que eu te mostro alguém
A fim de te acompanhar
E se o caso for de ir à praia eu levo essa casa numa sacola

Eu encontrei e quis duvidar
Tanto clichê deve não ser
Você me falou pr'eu não me preocupar
Ter fé e ver coragem no amor

E só de te ver eu penso em trocar
A minha TV num jeito de te levar
A qualquer lugar que você queira
E ir aonde o vento for
Que pra nós dois
Sair de casa já é se aventurar

Ah vai, me diz o que é o sossego
Que eu te mostro alguém a fim de te acompanhar
E se o tempo for te levar
Eu sigo essa hora e pego carona pra te acompanhar.




terça-feira, 27 de agosto de 2013

Mantenha distância!




Faz tanto tempo que não saio para dançar! Dançar mesmo, até o pé doer, até adiar o sono e passar o domingo do sofá para a cama, vendo seriados reprisados no Canal Sony, bebendo o suco do arrependimento (cenoura, laranja e gengibre; ou só cenoura, ou cenoura com limão), com o apetite em desvario: em casa, sozinha – que é mais gostoso.
Domingo, o day after, é para lembrar os acasos, o beijo em Rodrigo, os flertes, a vida alheia bêbada, as coisas que acontecem com as amigas, os foras, as gafes, as músicas... E dormir, dormir.
Mas ao contrário disso, nesta cidade só chove. Tudo frio. E nenhuma festa. Festa só em 7 de setembro, no Botekim, com a 80 na pista. E eu vou, se Deus quiser!
Tenho mil ensaios para corrigir, resenhas para corrigir, diários de classe para passar a limpo, aulas a repor, já que me convocaram depois do semestre estar em andamento. Tudo isso e um bando de alunos enrolões, que fogem dos prazos e das responsabilidades, que procuram os pretextos mais inconsistentes para não cumprir as avaliações. Gente que quer ser aprovada de graça. Esses são os da universidade ' de lá'. Os da universidade 'daqui' simplesmente arranjam laudos de última hora atestando que eles estão com problemas nas articulações, transtornos bipolares, lesões invisíveis e perda conveniente das capacidades mentais.
Para arrematar o clima, não só terminei com o Zero Dois como excepcionalmente, como nunca antes na história de minha vida, bloqueei chamadas vindas do número dele, adicionei na listagem geral de rejeição e excluí o número de minha agenda. Poxa, nunca dei ‘um nunca mais’ tão bem dado!
Mas se a ação foi extrema, a situação que a gerou também foi. Sim, ganhei paciência, com o passar do tempo, mas Zero Dois extrapolou minha paciência. E olha que eu gostava da companhia dele, da pessoa em si, das afinidades, do gosto musical, do gosto dele (de forma ambígua mesmo!)... Mas posso dizer com toda ironia que atualmente Zero Dois deixou um gostinho de quero mais: quero mais que se exploda! Quero mais é longe de mim. E ficou nisso: mantenha distância.

sábado, 24 de agosto de 2013

O muro e outras lutas


E para dar notícias de mim, digo que andei a mexer no velho muro que eu tinha a derrubar e que, conforme já foi dito em outras postagens de outros tempos, só me restavam pequenos escombros.
Mexi no muro duas vezes e tendo saído vencedora, me senti como quem foi aprovado no exame da OAB.
Decerto, me urubuzaram muito. Sempre há os que dizem que a gente não vai vencer, que na hora da vida real, a gente cai, se quebra e não vence. Venci duas batalhas. E quase não venço porque dei ouvidos aos maus diagnósticos, aos torcedores pelo fracasso, esses aí que andam ao nosso redor mas não nos acompanham.
Só não declaro que estou feliz porque o tempo está chuvoso e porque nunca mais fui a festa alguma. Daí que vivo cansada e com o lazer fora de compasso. Outrossim, nos dias de TPM, como esses últimos, o sono só vem na hora de acordar - paradoxos que só um Deus muito engraçado pode explicar.
Estou me resolvendo. Como uma equação de segundo grau ou um problema cheio de incógnitas, descubro as soluções, o valor de X, de Y... E isso me fez riscar muita gente inútil de minha vida, também. A gente se resolve e resolve os calos nos sapatos também: vamos combinar que estar dando atenção a quem não nos dá a mínima é uma humilhação? tratar como prioridade a quem nos trata como última alternativa não adianta nada. Voltei a ser como eu era: saio sozinha, me divirto sozinha, tenho os amigos que são amigos; não imploro companhia, não tomo toco no dia do meu aniversário nem fico esperando por quem não virá e muito menos gasto meus centavos ligando para quem acha que me faz um favor por me atender. Não, a vida tem outras opções! Mudei mesmo! Descobri boas companhias e sou, também, uma boa companhia para mim mesma.
Em breve extermino o muro, mexo em outras estruturas, viro páginas, crio capítulos, insiro personagens e recrio sempre a minha história: nela eu sou protagonista e não vou ceder este papel a outra pessoa....

Virou fumaça...




Se há aqueles que vivem nos dizendo que é preciso vencer na vida, não é meramente para afirmar a necessidade material das conquistas e a necessidade simbólica de ser bem sucedido no emprego, nos relacionamentos e socialmente: é um forte indício de que a vida é mesmo uma luta, uma batalha.
Foi lendo a Odisseia que constatei a coisa mais óbvia inserida naquela literatura: toda busca de Ulisses para voltar ao mesmo ponto pode se resumir na indicação de que a vida é jornada e batalha. Mais óbvio, impossível. E por ser óbvio, a gente não enxerga senão extemporaneamente.
Envelhecer não é amadurecer. Tenho, portanto, pena da mãe dele – como tenho pena de qualquer outra mãe que tenha um filho infantilizado, dependente, que está na vida para fazer idiotices e se comportar como se estivesse na adolescência.
A gente assistiu juntos a Somos tão jovens. Durante a sessão ele ficou abobalhado, meio que recordando o passado, se identificando e certamente pensando que ele consegue traçar uma continuidade entre o outrora e o agora, sem nada mais a abalar as mais óbvias diferenças.
O tempo passou e ele não viu. Nem viu que o cabelo caiu e a pele perdeu o viço... Não viu que nada se realizou e que ele jogou fora tudo que tinha, inclusive a saúde e a juventude.
Esses dos muitos que são iguais a ele vivem num universo paralelo, na eterna perenidade das drogas. E ainda se acham superiores porque são viciados em cocaína e não em maconha, “coisa de derrotado!”. Isso me reporta a Valeska, que andava constantemente com um saquinho de cocaína para conquistar amigos e ser popular na universidade, mendigando a amizade de quem a via apenas como uma moça gorda e excluída. Mas, em seus contextos, são todos do mesmo saco esses de quem falo.
Pensam tremendamente mal de mim – a recíproca nos iguala – porque sou metódica para uns, burguesa para outros, careta para todos. E eu que não bebo, não fumo, não injeto e não tomo Coca-Cola, não influencio ninguém a não ser viciado em nada e tão pouco me deixaria cooptar para usar o que não quero ou viver o que abomino. Fica cada um na sua, desde que um não atravesse a barreira dos limites do Outro. Porem, atravessam: acham que eu deveria abrir mais as portas da minha casa e a da minha percepção.
Sou chata: precavida, agendada, metódica mesmo. Tenho horário, tenho metas, tenho responsabilidades e não vivo sem isso.
Na nossa última briga, eu não queria ninguém em minha casa. Falei que não queria ver, conhecer ou sair como o casal estranho. Ponto final. Não fiz convites nem acordos. E a casa caiu quando ficamos a sós e eu tranquilamente comecei a cantar junto com o Zeca Baleiro, por achar engraçado e ‘alter-biográfico’:

“Não tenho dinheiro para pagar a minha Yoga;

Não tenho dinheiro para bancar a minha droga,

Eu não tenho renda para descolar a merenda.

Cansei de ser duro, vou botar minha alma à venda.

Eu não tenho grana para sair com o meu broto,

Eu não compro roupa, por isso que eu ando roto.

Nada vem de graça: nem o pão, nem a cachaça.

Quero ser o caçador, ando cansado de ser caça.”.


Este foi o trecho da discórdia.
Tinha tudo a ver com eles e como ele em particular.
Gosto do Zeca Baleiro, estava tocando, cantei e me diverti.
Faz um tempo que eu digo que gosto de estar sozinha em casa, de ter escolha e de ter liberdade. Se eu pensasse o oposto, me casaria ou moraria com terceiros. Agora me vem essas pessoas achando que tenho que abrir a guarda.
Não gosto de partilhar a privacidade do meu lar com pessoas distantes ou que eu julgue inadequadas para isso. Sequer gosto que amigas de minhas amigas venham para cá, adentrar meu quarto, me fazer perguntas, reparar no meu sapato, no meu armário, nos meus perfumes, nas minhas fotos, nas minhas músicas, no que eu faço...
Diante de tudo, me espantei mesmo pela fixação dele e de toda a turma numa era que já passou. Querem sustentar os vícios à custa da mãe, dos que trabalham, dos que cedem, e vão catando de três reais, cinco reais, vinte reais, de mão em mão, para ter acesso a noites incríveis ou dias intermináveis e intensos: cocaína, álcool, cigarro e sexo. Tudo junto. Talvez com música, mas com a música certa para não dar a paranoia errada. E vão se desviando do mundo objetivo, desse mundo que tem angústias e que as pessoas batalham por si mesmas e embarcam em jornadas próprias à vida.
Esqueci de dizer que se a idade me deu algo, por incrível que pareça, foi um pouco mais daquilo que sempre me faltou: a paciência.
Acho que aguardo mais, escuto mais, espero, planejo e faço...
E junto com minha porção metódica, comedida, planejada está também minha independência. Sou independente. Se não quero, não quero: tenho escolha. Escolhi não ser um deles e isso foi há muito tempo, para quem viu o tempo passar.


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Machado de Assis, para qualquer época




Vítor, filho da minha amiga, precisou de uma consultoria online em Literatura. Devo dizer que este online limitou-se aos trinta e poucos minutos de ligação telefônica. O fato é que gostei de recordar uns trechos interessantíssimos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Guardadas as distâncias temporais entre a nossa época e a do romance, ainda acho lamentável que para os estudantes de agora o livro pareça uma sentença de morte: difícil, chato, pesaroso!
Mas Vítor, por temer a reprovação, até que se envolveu com o livro. Deu as respostas certas, ainda que com uma boa medida de insegurança.
Zero Dois ficou me olhando ao telefone: eu, com um livro na mão, toda atenção, toda ouvidos, a citar Memórias Póstumas. Ele, alimentando fetiches, achando erótico eu estar em meu papel de professora, a falar as palavras que ele ignora. E não porque ignore significados, mas contextos. Até chegou a cogitar indiretas dentre as coisas que eu formulava ao telefone... E depois, despregou as palavras do contexto ignorado, rasurou e deu-lhes sentidos próprios... Ou, aliás, distorceu sentidos, fez um nonsense.
Ah, claro, não voltei para o Zero Dois que, aliás, neste dia soube que era o Zero Dois e que veio aqui em casa por ter me visto com o Zero Um. Não foi isso que revelou a novela passional, mas meu telefonema posterior, com a amiga: ele colou o ouvido na conversa e quando ela me perguntou quem estava em minha casa e eu disse: “Zero Dois”, ele entendeu. O romance deixou de dar certo, eis o caso. Nem em doses homeopáticas eu quero mais. Quis, é verdade, no momento, porque afinal foi consensual. Sensual. Ah, meu Deus! O ponto sempre foi esse: compatibilidade sexual... E o Zero Dois é sagaz, inteligente. Ficou vendo um filme comigo, todo feliz pela situação e todo sem jeito com meus episódios de rinite, em minhas crises de asma que interrompe a respiração e os beijos.
Mas, voltando ao Machado de Assis, tínhamos que traçar uma analogia entre os desejos de glória do Capítulo O emplastro e aquele que se chama Conquanto. Era uma questão de trechos, mas não resisto a reproduzir a quase totalidade destas partes, respectivamente;
“Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar nossa melancólica Humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para este resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanho e tão profundo efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplastro Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os mais modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro, sede de nomeada. Digamos: amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos mais antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição”.
(MACHADO DE ASSIS, 1979, p. 27).
Não só me rendo a esta genialidade, mas à atualidade desta obra de mil oitocentos e cacetadas: não obstante, se houvesse um emplastro desses, eu recomendaria à minha amiga, mãe de Vítor. Eis que a Humanidade deixou de ser melancólica para ser depressiva, o que dá na mesma, com os pequenos agravantes farmacológicos e o showbizz dos que se dizem depressivos para ganhar carinhos e ver perdoadas as mediocridades, afinal este troço está na moda. Mas faz tempo que a humanidade está doente.
Encanta-me essa assunção da vaidade, do desejo da glória assumido pelo narrador só após a morte. Conheço muita gente humilde assim, especialmente no ramo da Literatura, das Letras, em que as pessoas se travestem de modestas, humildes e despretensiosas, mas estão em buscar de Óscar e glorificação. Talvez só admitam ao morrer.
E a outra parte que disseca a hipocrisia social de todo dia – e olha que aqui estou a alfinetar as colegas que empurram seus filhos para os cursos de Direito e Medicina que impedem que suas filhas namorem ou se casem com pessoas de classe inferior à sua – é justamente no capítulo Conquanto:
“-Conquanto o que?... Interrompi eu, imitando-lhe a voz.
- Ah! Brejeiro! Conquanto não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...” (p. 72).

E daí que não é um mau exercício discutir Machado de Assis. Nem mesmo julgá-lo longe demais do nosso tempo. Ou ele se adiantou ao tempo ou os homens não mudaram nada de lá para cá. Assim é: desejos de glória, interesses, status quo. E tudo exposto com base na ironia machadiana, de que sou adepta e fã declarada. Hipocrisia é um troço difícil de engolir, porque sempre se refere a algo que está presente, que é praticado, que todos fazem e que todos sabem, mas que ninguém declara.
Coincidentemente, nesta postagem vão embutidas muitas situações que envolvem gente interesseira, das quais a mãe de Vítor que declarou ter casado por interesse mesmo, “para ser madame” – pelo menos, não alimentou a hipocrisia... O casamento acabou, os bens continuam, a vida continua... E por falar em vida, vou ali cuidar da minha.