Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Por Gabriel García Márquez


Perder Gabriel García Márquez é uma experiência cruel, ainda mais quando consideramos estes árduos tempos de mediocridade.
Quando a gente vê o artefato literário deste autor, enxerga melhor que a escrita literária, sendo múltipla e com várias possibilidades de se manifestar, tem, sim, os seus mestres. E não dá para ser politicamente correta e dizer que tudo é válido, que não há literatura melhor ou pior: há quem tenha maestria, criatividade, e encontra uma forma especial de dizer o óbvio."
"Quase sempre, entre amor e amor, comiam nus na cama, no calor alucinante e sob as estrelas diurnas que a ferrugem ia fazendo apontar no teto de zinco. Era a primeira vez que Nigromanta tinha um homem fixo, um machucante de planta, como ela mesma dizia morrendo de rir, e começava até mesmo a ter ilusões de coração quando Aureliano lhe confiou sua paixão reprimida por Úrsula Amaranta, que não tinha conseguido remediar com a substituição, mas pelo contrário, ela ia torcendo cada vez mais as suas entranhas, à medida que a experiência alargava o horizonte do amor."
(Cem anos de solidão. Gabriel García Márquez.  - Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 366)
Embutida nesta passagem, a provável dor de Nigromanta, ao ver que se punha à disposição de um único homem, mudando por ele, apostando num amor que seria contrariado pela confissão de Aureliano.
Daquele momento em diante, Nigromanta passa a tratá-lo como cliente, exclusivamente, cobrando-lhe os serviços do sexo ou, mesmo, se ele não dispunha de meios, lançando a conta nas anotações específicas.
O narrador poderia dizer de outra maneira os furos do teto de zinco, mas pôs ali a beleza das estrelas reveladas pela ferrugem que corroía o material. É disso que falo: há um modo de falar literário, particular... Há uma procura do autor, pela melhor maneira de dizer as coisas, ainda que óbvias ou duras.
da dor de Nigromanta não se ouvirá falar. Mas facilmente deduzimos a dor e a decepção, assim como a tentativa de abstrair e fechar-se, adotando a postura profissional das prostitutas.
À parte a dor dos que ficam, foi uma pena que antes de morrer Gabriel já não lembrasse de sua própria obra, que estivesse em estado degenerativo...Tanto labor, tanta arte e nenhuma memória de si e de seus feitos, seus melhores feitos.
De minha memória ele não sairá. Nem da memória universal da literatura, ultrapassando o rótulo nacional.
Mas o melhor do autor ficou para nós. Aproveitemos!

quinta-feira, 17 de abril de 2014

O pior da aula


Discutia com meu amigo, há pouco, sobre minha sensação de ter fracassado como professora, com um certo aluno meu, de segundo semestre.
Quando senti isso, me lembrei do personagem de Kevin Klein, no filme, "O Clube do Imperador". Ele diz que fracassou com um certo aluno, que vem a ser um político mau caráter, hipócrita, demagogo. Sinal de que o ensinamento moral, paralelo à disciplina ministrada, não funcionou.
Meu referido aluno, que vou chamar de G., se aproveitou de um encontro fortuito comigo, numa praia de Salvador, para ajustar contas do passado acadêmico, me fazer perguntas, inquirições e se posicionar em certas questões.
Minha primeira decepção foi ver a pouca capacidade de abstração do menino. Ele começou falando que ele e um amigo me chamavam de professora louca, afirmando, ainda, que eu dizia palavrões na sala. Contra-argumentei, mostrando que os palavrões são uma pertença do autor que os profere. Deste modo, caberia a Gregório de Matos se explicar, mas também a ele, G., fazer um esforço para compreender a emergência estética da palavra chula que acompanhava aqueles poemas satíricos. Bem se diz por aí: "Inteligência tem limites. Ignorância, não". Compreendi que ele não sabia o limite entre as coisas.
Ainda sob esta mesma querela, comentou que um certo aluno, que vou chamar de A., era psicopata, pois sabia de tudo, era inteligente demais, fora do comum e anormal. Perguntei o que ele tinha contra as pessoas inteligentes. Ele disse que quando as pessoas inteligentes eram normais, ele não tinha nada. mas as anormais são psicopatas.
Ele comentou do meu short na praia: "A senhora, toda chique na Universidade, tem à praia com uma roupa dessa, parecendo irmã de pagodeiro" (acho que ele disse irmã de Igor Canário, ou nome parecido, que eu desconhecia, mas perguntei quem era e obtive a resposta correspondente). Poxa, fiquei sem graça: cara conservador.
Em mais meia dúzia de palavras trocadas, ele se afirmou homofóbico, disse que apenas não iria bater em homossexual, mas que eles morrendo, ganharia a humanidade, seria um favor à humanidade.
Disse que as mulheres são iguais, fáceis e falsas.
Perguntou para mim:
'-Você acredita em Deus?", respondi que sim
'- Qual seu conceito de deus?", respondi à minha maneira.
E ouvi um sermão absurdo sobre minha aversão ao matrimônio, ouvi mil argumentos a favor do casamento, ouvi a dúvida: "A senhora nunca se casou porque não quis ou porque ninguém nunca lhe quis?".
E assim foi, numa infinidade de perguntas e posicionamentos que, ao invés de me provocar ira, me provocou estupefação.
Aquele ali era um estudante universitário (misógino, homofóbico, machista, preconceituoso, ignorante)!
Devo ter falhado na minha missão de professora, como todos outros professores falharam nas missões deles: o sujeito, aos 29 anos, continua ignorante.
Eu poderia não me importar, mas me importo: um dia ele vai se formar. E formará outras pessoas que, certamente, serão influenciadas por um pensamento e uma personalidade daquelas.
De nossa conversa ele apenas se convenceu de que há um núcleo em cada área do Curso para eleger os textos teóricos e literários trabalhados nas disciplinas. Assim sendo,Gregório de Matos estava no programa da disciplina por causa de outras pessoas além de mim.
Coitado do Gregório de Matos:não merecia um leitor desses. Ainda bem que ele abandonou minha disciplina: barra pesada para um conservador extremista.
Mas eu não estava disputando com ele. Não, ao contrário, eu perdi para a ignorância dele - ela que venceu, que dominou, que prevaleceu.
Dia de luto, para mim: perdi para a ignorância.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Águas profundas


Tenho sede da água de que jamais beberei.
Algumas dessas águas deságuam na água do meu orgulho e, por isso, destas nunca beberei.
Mas penso em vencer a resistência à outra água, porque ela já minou o meu terreno, já transbordou meus limites... E eu quase não durmo pensando se bebo, se me enveneno, se mato a sede e pago o preço.
Água boa, linda, límpida, sedutora e calma, mas sempre uma água de que não se deve beber porque o cálculo moral, feito ou imaginado, aponta para os riscos.
Fui dormir com sede ontem. E quase não durmo. E já quase me afogo... Ou, repetindo meu poeta, Iderval Miranda: "Paixão: súbito rio sem margens".
As águas daquele rio me ameaçam, me tomam, me encontram. Penso ago: será que sei nadar?