Louquética

Incontinência verbal

sábado, 24 de fevereiro de 2018

A arte no limite



Faz um tempo que a arte existe, muito antes das teorias e dos críticos; muito antes de o ser humano se dar conta de que aquilo que ele fazia era arte...Sem contar aquilo feito com outros fins e transformado, através dos tempos, em arte.
Finalmente, temos que conviver com a vigilância política da arte e da palavra.
Temos que conviver com gente que hostiliza ator e atriz na rua, porque não sabe distinguir o trabalho artístico desempenhado dentro de uma obra de ficção e o cidadão real, de carne e osso que empresta-se e presta-se a um papel, por instantes, perfazendo seu trabalho.
É esse mesmo povo que prega que as novelas degeneram a sociedade.
Ora, a sociedade, tem gays, homens,mulheres, crianças, gente tímida, gente violenta, traições, roubos, amores, sonhos, aventuras, enganos...Tudo que há no mundo.
Entretanto, alguém precisa escrever nos caracteres finais das novelas: “esta é uma obra coletiva de ficção...” e se resguardar das coincidências. Quantas vezes dizemos que nossa vida parece uma novela? Quantas vezes nossa vida familiar e amorosa parece drama mexicano ou filme de Almodóvar?
              “O artista observa o mundo e recolhe aquilo que, por algum motivo, o interessa. Trata-se de um percurso sensível e epistemológico de coleta: o artista recolhe aquilo que de alguma maneira toca sua sensibilidade e porque quer conhecer. Às vezes, os próprios objetos, livros, jornais ou imagens que pertencem à rua são coletados e preservados. Em outros casos, é encontrada uma grande diversidade de instrumentos mediadores, como os cadernos de desenhos ou anotações, diários, notas avulsas para registrar essa coleta que pode incluir, por exemplo, frases entrecortadas ouvidas na rua, inscrições em muros, publicidades, fotos ou anotações de leitura de livros ou jornais. Esse armazenamento parece ser importante, pois funciona como um potencial a ser, a qualquer momento, explorado; atua como uma memória para obras.” (SALLES, 2008, p. 51).
Mas, aí vem a outra parte dos descontrolados e pede para que a obra de arte seja fidedigna e comprometida socialmente.
Vem alguém e cobra fidelidade testemunhal e impõe que apenas mulheres podem escrever, representar ou ficcionalizar sobre mulheres, gays, negros e qualquer minoria.
Cortam-se as asas da liberdade criativa. Não pode mais haver eu-lírico. Chico Buarque não pode mais ensejar cantigas de amigo, primeiro porque ele não viveu o período medieval; segundo, porque ele não é mulher. Sequer pode advertir: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas”!
Nem Jorge Amado, que não era negro, poderia fazer ficção sobre a cultura e o povo negro, porque não teria a devida qualificação testemunhal para isso.
Claro que há cooptações de obras de todos os segmentos para fins escusos.
Claro que as obras têm selos ideológicos embutidos por seus contextos (tempo, obra, moda, valores, etc)... Mas vamos muito mal, sim.
Há a obrigatoriedade, também da boa recepção e simpatia por obras de autoria de representantes de qualquer minoria. Antes da obra, vêm a vinculação do autor e, desta forma, é preciso ser simpático, pois o contrário seria discriminação – como se as minorias não fossem compostas por seres humanos tão humanos quanto quaisquer outros que, por isso mesmo, estão vulneráveis ao erro, à imprecisão, aos defeitos...
Já lemos bastante as teorias da estética. Não vamos fingir que não fazemos escolhas e que não sabemos distinguir isso daquilo. Se não, não escolheríamos nem a fruta na feira, nem a roupa do trabalho.
Gosto existe, sim.
Moldado culturalmente? Com certeza!
Mutável em certa medida? Também.
Intrínseco? Claro que sim, porque ninguém, nenhuma moda, força ou teoria, podem fazer você gostar de jiló, se você não gostar de jiló; nem gostar de verde, se você não gosta de verde.
As culturas se interpenetram; as artes fazem intercâmbios; conceitos e gostos se entrecruzam.
Não há cultura isolada, pura, essencial.
Zangar-se porque um objeto sagrado na sua cultura é usado como adereço na cultura dos outros, é descurar-se de todos esses fatos e da transitoriedade de usos, acepções e concepções de objetos culturais.
Uma coisa é o desrespeito descabido; outra coisa é a ressignificação.
As invenções de uma cultura costumam ser amplamente utilizadas em larga escala por outras – pense aí se alguém te disser que você não pode usar o alfabeto, porque é uma invenção fenícia; nem usar eletricidade; nem caneta esferográfica; nem fazer ressonância, nem usar recursos baseados em substâncias químicas desenvolvidas por estadunidenses...Nem usar tal perfume, porque é francês e, portanto, seria apropriação cultural...Já pensou?
Agora, pense o oposto: pense lá à moda do Major Quaresma, do livro de Lima Barreto, “Triste fim de Policarpo Quaresma”, que devemos usar (da palavra à comida) apenas coisas brasileiras? Pois, até mesmo o protagonista do livro chega à decepcionante conclusão que o que ele julgara ser autenticamente nacional é fruto do trânsito cultural.
Fora o fato desses sujeitos do discurso purista ignorarem que existe também uma indústria cultural muito interessada em moldar seus gostos, fazendo com que sob um calor infernal um nordestino use jeans ou que as dietas sejam substituídas por comidas nada típicas e bebidas gaseificadas com sabor artificial de coisas que nem sempre estão num pomar...
É muita ingenuidade deixar de ver que os segmentos de minorias são também enxergados como nichos consumidores – lucrativos eventos, rentáveis modas, coisas especializadas que jogam com a ideia de identidade...Assim se faz o mundo - e o mundo é bem maior do que a gente pode perceber!


sábado, 17 de fevereiro de 2018

Carnaval: versão 2018


O carnaval foi ótimo: fiquei em paz em minha casa. E olha que eu gosto de carnaval!
Também não fui à praia, porque faltou sol suficiente para isso e ímpeto guerreiro para enfrentar possíveis lotações e engarrafamentos.
Não senti falta.
Sem dor-de-cotovelo ou falsos discursos para encobrir durezas financeiras.
O carnaval de rua em Salvador já não existe: ou você paga um camarote ou vai apenas colocar a vida em risco, a saúde também; e passar as privações dos apertos de precisar de banheiros onde não há banheiros; passar um bom período de fome, porque a comida disponível não é segura ou de fácil acesso; sofrer com qualquer meio de transporte no caos que é a festa.
Nem falei de violência.
Nem falei de falta de educação coletiva típica de multidões, nem contatos forçados com corpos suados e ofensivos ao nariz.
Quando em turma, tudo é contornável. Aliás, os amigos são o melhor da festa.
Adoro fantasias. Adoro ver a turma feliz, bebendo, dando vexame, cantando, fazendo coreografias, fazendo piadas, pegando gente...
Melhor é sair da festa e pegar a praia com a turma...ou ficar na piscina, com cara de sono, enrolando a preguiça sob o sol.
Mas a turma anda com o humor encolhido e a alegria meio encalhada – vida pessoal que vai tornando o povo sisudo ou careta, fugitivos do circuito.
Mas, juro que curti ficar em casa, sair para perto, para coisas triviais...ou para coisas mais especiais de quem sabe fazer uma boa festa a dois.
De quebra, passei minha terça-feira com meu poeta. Foi nosso terceiro carnaval conjunto, mas o primeiro em que ficamos juntos. Adorei.
Não senti falta da festa, apenas estranhei como um prazer pode ser substituído por outro e como mudei.
Reconheço que em alguns carnavais eu fui por um prazer gratuito de ir. Em outros, eu fui em busca – doida por fotos, diversão, pegação, esquecimento de amores, dissolução temporária de angústias. Irei em outros carnavais, se a vontade vier.
Por falar em carnaval, que troço louco é esse povo confundindo tudo, em favor do politicamente correto. Gente, a pessoa não pode se fantasiar de índio, porque é apropriação cultural; não pode usar turbante, se não for da cultura que adote turbante...
Já estou vendo o Conselho Federal de Enfermagem processando as sexshop por venderem fantasias de enfermeira; A união Nacional do Estudantes processando a quem gosta de se fantasiar de colegial e, em breve, descendentes dos fenícios estarão processando todos nós que adotamos o alfabeto advindo da escrita cuneiforme, porque aí, sim, é apropriação cultural mesmo.
Pensando num grupo de what’app composto por gente de raciocínio similar a este, o povo quer trocar uma ditadura por outra.
Retiraram o poder imaginativo da ficção. Agora, não se pode mais trazer um sujeito lírico feminino se o autor não for mulher (extensivo a qualquer sexo ou gênero); não se pode falar de nada, interpretar nada, sem o respaldo da pertença.
Coitado de Chico Buarque! Coitado de Jorge Amado! Coitado de Machado de Assis! Coitada da Arte, vigiada tanto por moralistas, quanto por defensores de minorias.
Gostam muito do engodo: teoricamente defendem e aceitam tudo, desde que a igualdade da minoria não passe pela sua própria cozinha.
Dizem que gosto não existe, que é uma convenção da burguesia. Mas sabem muito bem o que escolhem para usar, comer, ouvir, ler ou transar. A hipocrisia está em todo canto mesmo!


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Justiça seja feita!


Constitucionalmente, temos todos o direito de resposta à altura do agravamento.  Nada a mais, nada a menos, a fim de que se faça a reparação. Isso significa que a base da justiça é o equilíbrio. Ao contrário, o princípio da vingança tende ao exagero. Mas, quem somos nós para exercer o pleno controle sobre um instinto tão primitivo? Vigiemos.
Ainda continuo achando terrível que alguém possa querer se vingar por não ser amado. Isso está além das escolhas. Já dizia a poeta, Florbela Espanca,“ama-se a quem se ama; e não a quem se quer amar”. Também não sei com que graça alguém pode ver em querer forçar o ser amado a viver consigo; como alguém pode querer obrigar um ser humano a permanecer ao seu lado, mesmo sabendo que a pessoa não deseja isso, não quer...Coagida por chantagens, ameaças ou piedade, a pobre pessoa amada fica refém.
O terreno profissional, o dos amores e das amizades são muito tendentes aos eventos da vingança (em detrimento da Justiça). Claro, vivemos num país cuja falência moral das instituições faz o cidadão comum enveredar pelo descrédito das mesma.
As pessoas se juntam e coletivamente lincham, porque temem que a Justiça não cumpra seu papel. Preferem, pois, a barbárie de ferir, agredir ou matar seu semelhante, à barbaridade de deixar impune um (pretenso) criminoso.
As religiões podem até se multiplicar, mas as pessoas já não alimentam crenças, fé, que sejam externas ao plano espiritual, não acreditam na Justiça, não acreditam no indivíduo, não acreditam na sociedade...E, como mulher, digo mais: não acreditamos sequer nos homens (e agora me refiro ao gênero masculino strictu sensu).
Ninguém gosta de viver enganado, mas, vamos convir, não dá para viver sem sonhar. Entretanto, os homens já não são aptos a fazer sonhar. Quando não, são os primeiros a dizer que as mulheres não devem criar expectativas – o que me parece de uma presunção bastante deselegante, como se a mulher desejasse fazê-lo namorado, marido, par...Como se apenas as mulheres se apaixonassem... –, confundindo expectativa, perspectiva e sonho.
A gente, que é mulher, tem irmãos, tem primos e tem amigos: sabemos o que eles fazem, as armações, as traições, os ardis e as tramoias que eles arquitetam para eleger um relacionamento sério, sustentando os vários relacionamentos paralelos.

Disso, ou a gente aprende a lição para se precaver, ou a gente aprende a lição para se vingar. Vingança nunca é justiça!