Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Todo tempo




Bom, também não sou preparada para o envelhecimento de meus alunos e ex-alunos.
Quando eles estão na faixa dos 20 e nós, professores, na faixa dos 30 anos, dá para administrar com normalidade a vida. 
Aí eles passam aos 30 e uns; e chegam mais perto de nós, de um modo que as linhas demarcatórias das idades já não são nítidas.
Não fui preparada para isso.
Para mim, serão eternas crianças. Por isso, dói ver os que envelheceram, contrariando nossa clara diferença...Meus alunos, outrora cabeludos, com penteados exóticos, descambam para a calvice...
O tempo, mais generoso com as mulheres, desenham perfis maduros, contorna olhos com rugas e põe cansaço em fisionomias que já foram leves, pueris...
Preocupações outras, que não mais o ingresso no mercado de trabalho ou o destino nas pós-graduações, mas o peso dos divórcios, das separações, das perdas sérias, dos conflitos interiores intensificados pela mão pesada das responsabilidades com a família...
E, sim, aqueles que modificaram a cara, mas não a situação, de modo a se tornarem crianças irresponsáveis, dependentes, que marcaram passo no tempo sem sair do lugar, como sob uma brisa fria de naftalina e do pó dos sepulcros dos sonhos renunciados.
Neste ponto, queria que o tempo só passasse para mim.
Mas, é isso: tudo passa e nós passamos.

Minha cara!



Depois de muitos anos, mudei a foto de perfil do Facebook.
Que não se conclua que não o fiz antes por aquelas razões banais, do tipo aparentar estar anos mais nova: tive amor à foto, tirada por Marluce. Tenho um respeito imenso por quem me fotografa, quem pacientemente entra no jogo das imagens, com interesse, carinho...
Não sou mais aquela pessoa, aquela mulher no espelho: é uma foto bonita, de um momento em que me libertei de um grande e único amor vivido. Era alforria. Era a foto do soldado que volta vivo e vitorioso da guerra, mas com feridas e traumas.
Respeito minhas guerras e meus hematomas.
Olho, com espanto, meu pai e meus ex-professores usando fotos de 30 anos atrás nos perfis de Facebook, de What´s App, e penso que eles estão como Cecília Meireles, a perguntar “em que espelho ficou perdida a minha face”. Creio que é uma das coisas mais tristes da vida, esse momento em que a pessoa não reconhece a si mesmo no corpo que o tempo transformou. Esta não-identidade que leva a loucuras, do tipo dizer que “a juventude está na cabeça”, para driblar a decrepitude inevitável do ser.
Não quero aparentar desleixo. Adoro a vaidade estética e acho que todo dinheiro gasto em se sentir melhor, mais bonito ou mais jovem, vale a pena. Mas é preciso aceitar a idade que se tem.
Pode não parecer, mas os homens sofrem mais com isso: não somente pelos cabelos que o tempo leva, pelas rugas que o tempo traz, pela diminuição da resposta física ao sexo, mas porque eles fingem que só as mulheres envelhecem. Traem, portanto, à percepção de si mesmos e esse é um escudo frágil.
Sorte da novinha que um dia puder envelhecer e contar de seu passado feliz.
Sorte dos homens que, ao desejarem uma mulher, se interessam por ela, antes de verificar critérios cronológicos e, que se se importam com isso, assumem, desistem e procuram outras mais afinadas com seu gosto particular, sem necessariamente, caírem na má educação.
Sorte da gente, que segue a trilha da vida, prezando por estar em seu melhor possível.
Foi muito difícil ter 16 anos. Pode ser gostoso no tocante a estar novo. Contudo, para mim, pouco adiantou: eu era frágil, desprotegida, muito responsável precocemente, insegura e não tinha independência real.
Não foi fácil ter 25, mas passei a existir no momento em que obtive meu emprego fixo, por menos atraente que ele me fosse.
Depois, veio o Mestrado e o amor: duas experiências que nos envelhecem por dentro. Não tive a menor dificuldade em fazer minha dissertação e muito menos em fazer minha tese de doutorado que, aliás, terminei antes do tempo. Meu problema era a vida, eram as buscas, eram as respostas...
Não que eu não tenha sentido medo, pânico, pavor, mas encarei a vida com o máximo de coragem possível. Essas coisas, de que não contam os retratos, são as que me definiram, são as que dão minha imagem real.
Sei que mudei, que sou mais segura e menos negativa; que sei renunciar e persistir, amparar e bater, ignorar e me defender...Ah, sim, sei muito mais sobre sexo e sou mais feliz no sexo hoje em dia.
Reitero aquela passagem que tanto amo um conto de Rubem Braga, porque tenho afinidade literária e me identifico com as palavras dele, porque ‘bendito seja’ tudo que me fez ser quem eu sou.

"Ela conta a história de uma freira que a atormentava no internato, em seu tempo de menina; de um homem que a fez viver longamente entre o desespero e o tédio, a revolta e a humilhação. E fica meio magoada porque a tudo eu sorrio, porque eu não pareço participar do sentimento com que ela fala contra essa gente que passou. Afinal ela também sorri: "Você é meu amigo ou amigo da onça?"

Sou seu amigo. Mas rico ri à toa, e eu me sinto vertiginosamente rico porque essas histórias, alegres ou tristes, ela me conta de mãos dadas, junto de mim. Digo-lhe isso; mas não lhe confesso que aprovo e abençoo todas as coisas e pessoas que povoaram seu passado, e tenho vontade de dizer:
"Benditos teu pai e tua mãe; benditos os que te amaram e os que te maltrataram; bendito o artista que te adorou e te possuiu, e o pintor que te pintou nua, e o bêbedo de rua que te assustou, e o mendigo que disse uma palavra obscena; bendita a amiga que te salvou e bendita a amiga que te traiu; e o amigo de teu pai que te fitava com concupiscência quando ainda eras menina; e a corrente do mar que te ia arrastando; e o cão que uivava a noite inteira e não te deixou dormir; e o pássaro que amanheceu cantando em tua janela, e a insensata atriz inglesa que de repente te beijou na boca; e o desconhecido que passou em um trem e te acenou adeus; e teu medo e teu remorso a primeira vez que traíste alguém; e a volúpia com que o fizeste; e a firme determinação, e o cinismo tranquilo, e o tédio; e a mulher anônima que te vociferou insultos pelo telefone; e a conquista de ti por ti mesma, para ti mesma; e os intrigantes do bairro que tentam te envolver em suas teias escuras; e a porta que se abriu de repente sobre o mar; e a velhinha de preto que ao te ver passar disse: "moça linda..."; bendita a chuva que tombou de súbito em teu caminho, e bendito o raio que fez saltar teu cavalo, e o mormaço que te fez inquieta e aborrecida, e a lua que te surpreendeu nos braços de um homem escuro entre as grandes árvores azuis. Bendito seja todo o teu passado, porque ele te fez como tu és e te trouxe até mim. Bendita sejas tu." (Rubem Braga em "A mulher e seu passado")

domingo, 10 de junho de 2018

Pão e prece


Acho que, geralmente, as religiões conduzem a um torpor, a uma certa cegueira...Talvez por oferecerem o preço do acolhimento, talvez por que sejamos nós a nos deslumbrar com descobertas, consolos, explicações.
Não há religião perfeita, mas há aquela que é ‘perfeita para você’, porque se ajusta ao seu pensamento, às suas necessidades, ao seu momento.
A porção mais válida de nossas vidas provavelmente está nas experiências pesadas que nos conduzem às crises.
Há os que preferem desviar o pensamento, ignorar, tomar álcool ou Rivotril. Eu, que aprendi que os problemas não acabam se a gente fugir deles, aguento e sigo.
Meu poeta não estava preparado para me ver em crise. Provavelmente, subestima minha reação às angústias da vida...ou me considera fútil...Sei que ele não é único. As pessoas não me dão o direito a ter crises...quase que me mandam tomar um chá e deitar, até passar...A seu tempo, meu pai me dava dinheiro para a crise passar; meu ex-namorado, me mandava ir ao shopping. Donde concluo que eles pouco sabem ou sobre crises ou sobre mim..ou, talvez, sobre suas próprias angústias.
Crise nem sempre é setorizada: uma parte puxa à outra. Primeira parte: Sou espírita. Muito me dói observar nossos defeitos, ainda mais quando eles nos saltam à cara.
Pode ser que os defeitos sejam da unidade que frequento, mais do que da doutrina, em si, mas tal como qualquer entidade voltada à religião, encontrei muito machismo explícito, especialmente praticado pelas mulheres.
Há uma relação intergeracional conflituosa, porque as mulheres mais velhas são ainda mais machistas, ainda mais de pensamento ortodoxo politicamente falando...Acham que a Ditadura jamais existiu no Brasil; que o PT é comunista e que tivemos um governo comunista; acham que Sérgio Moro é um bom moço, moralizador da Pátria...Acham que mulher tem que ser mulher em seu papel tradicional socialmente marcado.
Se fosse para traçar um perfil geral, eu nem sei como poderíamos falar em evolução em meio a mentes tão retrógradas, às declarações de alívio ao perceberem a improbabilidade de terem filhos gays... Poxa, foi uma decepção e tanto ver isso de maneira tão explícita. Ali há muito preconceito. Ali, mulher não tem vez.
Sigo gostando de ser espírita – o que não anula a crise.
Gosto da prece, da concentração necessária para estar em prece - e a prece é o pão precioso da introspecção real.
Gosto de ter fé raciocinada, de encontrar resposta para coisas aparentemente absurdas – das quais, entender a licantropia e as razões de alguns crerem tanto em Lobisomem; dentre outros fenômenos captados do senso comum, mas que têm uma lógica interna, causas, explicações racionais...
Sou assim mesmo: se gosto de algo ou de alguém, isso ocorre na totalidade. Não sei gostar e achar que é perfeito. Amizades, amores, ídolos...enfim.
As outras partes da crise se relacionam com escolhas, com minhas inconstâncias, com fatores humanos que a gente julga que vão sumir após a adolescência...
Mas esta sou eu.
Este é o meu caso. O meu. Cada um que viva seus pareceres, suas opiniões e suas crises, porque são particulares, pessoas e personalizados. O meu é o meu, que ninguém mexa nele.