Cansaço
é o que me define hoje, depois de quatrocentas mil atividades, sob um frio
incomum e chuva o tempo inteiro – aula, reunião e banca de TCC num dia só, com
todos os percalços técnicos que envolvem a situação. Por incrível que pareça,
estou muito bem. Cansada e bem, a tal ponto que vim escrever, declinando de ir
tomar um merecido café.
É
que vi diferença neste cansaço de agora, um cansaço feliz, bastante diferente
de quando estou cansada da vida ou cansada de alguma situação. Estou grata
porque neste cansaço reencontrei amigos, desfiz receios, cumpri tarefas e
cumpri honradamente a minha função de professora.
Acho
que ando interiormente feliz por ter tomado decisões diferentes, porque se há
uma verdade nas teorias psicanalíticas, é a de que tendemos à repetição. A
gente repete porque não aprende com os erros; repete porque não completou o que
deveria e, então, precisa recomeçar; repete por medo, porque atitudes velhas
geram segurança por levarem aos mesmos resultados; repete porque é cômodo, embora
vocalize, verbalize e declare que quer mudar.
Era
uma mudança que eu queria e precisava, em sentido de decidir e pronto. O que
não quero, não quero. Mas, antes, eu enrolava, a fim de que a decisão não
tomada levasse a algum resultado sem que eu interferisse – tenho vergonha
disso, mas ainda que localizei e reconheço. Pior é você ter defeitos e não
admitir que os tem.
Conto
a que tudo isso se refere: me apareceu um crush há uns meses. Sempre deixei o
cara na sala de espera.
Recentemente,
ele me chamou para ir ver o pôr-do-sol na lagoa, bem na tarde de sábado do dia
dos namorados. Fui. Cumpridos todos os ritos (juro: máscara e zero contato
físico), ele tocou as músicas mais lindas dos Beatles para mim – no canal dele,
no YouTube, ele já havia me dedicado uma música – e eu me senti enaltecida.
Adorei. Ficou nisso, um passeio e muita conversa boa. Deixei ele em casa e pedi
água. Convidada a entrar, perdoei a bagunça pontual, em desordens de objetos e
roupas aparentemente de quem acede ao varal às pressas.
Passados
15 dias, por conta de emprestar um objeto de informática, voltei à casa do
crush, igualmente de forma rápida, em estilo bate-e-volta. A desordem, desta
vez, parecia apontar para o acúmulo de negligências no decurso dos 15 dias
referidos.
Não
vi sujeira, mas vi bagunça, o que não significa que a sujeira não estivesse lá,
no pó dos móveis ou na casa por varrer. Achei pavoroso. Odeio bagunça. A dele
era reveladora: cartões de banco se misturavam a vistoso tubo de lubrificante
íntimo na sala, junto com roupas, instrumentos musicais, carteira, fios e
fiação para coisas de informática, copo, papéis e objetos de decoração...coisa
que, ao descrever, me causa pavor.
Ele,
posteriormente tocou no assunto. Assenti. Ele disse que tinha medo de arrumar e
criar a sensação de finitude, tipo: acabei, e agora?
Além disso, nosso flerte nunca evoluiu. Havia a constância, mas nada de definição. Nada de beijos, só vontades declaradas - e nenhum obstáculo para concretizá-las, o que me deixou deveras em alerta (retardando desejos? procrastinador de gozos...um perigo!)
Desta
conversa, vislumbrei um abismo psicológico nele. Disse que, caso ele quisesse
resolver, descobrir quando isso começou o levaria a descobrir o porquê.
Tenho
um amigo que se atrasa eternamente. Ele que sair de casa às 09 horas, a fim de
chegar à reunião das 08, isto é, vive atrasado achando que o relógio vai andar
para trás somente para satisfazer à vida dele.
Uma
vez, esse amigo que vou chamar de H. quebrou o pé, num acidente de moto. Pediu
que eu o levasse de carro à faculdade, que fica na BR 324, na entrada da cidade
em que moramos. Ele disse: “Venha 17h”. Quando, dez minutos antes, eu disse
estar indo, ele pediu para eu ir 17h30. Fui. Ele enrolou e saímos 18h25 para a
aula das 18h30.
Ele
me indicou caminho e, quando eu desviei de um, ele deu chiliques, porque sabia
me dizer quantos segundos fechavam as sinaleiras de cada trecho do trânsito.
Ali percebi a patologia, tipo a de quem conta tijolos, ladrilhos, botões,
objetos em geral.
Foi
um sufoco levar ele, em acessos de neurose total. Levei, mas não o trouxe.
Entendi que o atraso crônico dele era patológico. Há muitas pessoas que não
sabem que viver eternamente atrasado, a depender do contexto, é patológico.
As
duas histórias se cruzam: por uma percepção maior do que a que descrevo aqui,
sei que ambos os casos, o da bagunça e do atraso crônico, são sintomas.
Assim,
desisti do crush, encaminhei um ‘não’ intersubjetivo e concluí que aquilo me
cansaria. Muito diferente do cansaço bom de agora – cansaço que a gente
experimenta no prazer de arrumar a casa; de pintar a parede da casa nova; de
construir uma satisfação. E sinto muito pelos que se cansam da vida. Acontece,
só não precisa ser todos os dias.