Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Hipnoses

 


Não sei como as pessoas, hoje em dia, não têm o menor escrúpulo de pegar o título “neurociência” para meter nas propostas mais abjetas, descabidas ou incongruentes. Há um processo de hipnose coletiva em curso, de que já tivemos exemplo paralelo quando se multiplicaram os empregos aleatórios de 'psico' qualquer coisa; ou o qualquer coisa "Quântico/Quântica". Certamente, isso concorre para atrair credibilidade, agregar valor científico a modas e picaretagens discursivas em geral.

Onde iremos parar com um rebanho de pretensos preparadores, que lançam mão de artimanhas de convencimento falsamente enaltecedoras de fracos, inseguros e de portadores de autoestima minúsculas? Esse povo que vende terreno na lua quer convencer às massas de que basta pensar da forma certa, que o Bem vem. O pensamento positivo, é aquele pensamento irresponsável que dá a entender que se você souber pedir, mentalizar, as coisas vão tomar corpo e se materializar em sua frente, e isso basta. Aí, quem não foi avisado acredita que há milagres e mágicas, que bons deuses se compadecem de quem pede com afinco. Seria bom se nossa vida se resolvesse somente com atitudes mentais. Não teríamos nenhuma responsabilidade e tudo estaria definitivamente resolvido sem o menor esforço. Assim são as propostas.

Por termos ego e precisarmos de reforços positivos, afagos, elogios, acreditamos que o autoconvencimento resolverá a vida. Não há processo que seja assim, porque tudo precisar ser bem elaborado. Logo, o domínio sobre uma situação (qualificação para o trabalho; coragem para encerrar um relacionamento; impetuosidade para aceitar propostas novas, etc.) passa pela lenta conscientização a respeito dela, como se fôssemos conhecer o objeto. Conhecer, pegar, medir, ver, pensar a respeito para distinguir e identificar, como se fôssemos crianças de cinco anos diante de uma caixa fechada. Às vezes, a caixa é a gente.

Então, conquistar coisas, alcançar metas, não é uma linha reta, não tem mapa, não tem receita, não tem tempo determinado. Tantas vezes, com planejamento e cronograma na cabeça, a gente se sente perdido? Quantas vezes o tempo nos faz duvidar da pertinência da decisão de outrora? Se nessas horas a gente lembrar que pode fazer as coisas diferentes, ótimo. Se a pessoa pode tomar outras decisões, ainda que não anulem as anteriores, eis um retrocesso que vale a pena.

Se seu casamento funcionou por 25 anos, mas ultimamente é puro tédio, não adianta aprender dança do ventre, nem tentar colar o que rasgou. Mas, se houver amor, ainda se pode negociar (negociar pode ser cada um morar em uma casa ou separar afeto e sexo, de modo a que cada um possa ter parceiros paralelos, se assim quiserem – há várias formas de amor e várias formas de amar); se seu emprego lhe causa náuseas, mas você fica ali porque acha que é o preço da estabilidade, você pode engolir os sapos e esperar a aposentadoria; mas você pode ir fazer outros concursos e cursos. Tem gente que diz: “imagine! Eu já vou fazer 40 anos! Se eu for começar algo agora, só me estabilizo com 50!’ – e perde de vista que terá 50 anos um dia, de todo modo, com o sem cursos novos, com ou sem concursos novos.

Dois momentos em que os seres humanos são frágeis: ao começar algo e para encerrar/concluir algo. É clássico, praticamente ninguém escapa. Porém, concluir é mais difícil que começar – quantos livros começados, que ficaram por ler? E os regimes? E os planos? E as decisões? “Deixa como está para ver como é que fica!”

Entre começos e fins, o fim das férias me traz uma melancolia diferente: não é porque interrompe meu relativo ócio, mas porque já sobrecarrega minha mente, que antecipa o peso das ocupações.

Trabalho porque preciso, mas nunca é apenas uma questão de sustento. Tem sempre mais. Tem sempre aquele peso do bem-estar, dos relacionamentos interpessoais, mesmo que essas pessoas não sejam tão ‘inter’ assim... Tem uma má relação com o tempo, que parece tomar o calendário todo, em semanas e meses. Porém, se tem algo que o trabalho faz é segurar questões existenciais mais densas – porque, afinal, não dá nem tempo para sofrer; e quando a gente quer mergulhar em si, para elaborar aquela questão profundamente, nunca consegue ficar sozinha, porque sempre aparece alguém grudando na gente. Em meu caso, tenho a dor adicional de precisar me meter num ônibus, viajar por três horas e ficar em contato com as vulnerabilidades e dissabores da trilha pelas rodovias; e a hospedagem, que seja como for, é um foco de perigos no meio de uma pandemia. Mas, é como se o ano estivesse começando agora, para mim: ajustado pelo calendário letivo; pelas imposições da vida prática, em um período que eu ainda não soube o que são férias no sentido lúdico. Trabalhar, então, passa a ter outro peso, diante do contexto em que estamos – não, não consigo achar normal; nem acredito em novo normal...e  será que ainda existe gente normal?