Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Casos de família

 


Neste ano meu aniversário não foi grande coisa. Isso porque eu estava triste pela morte de minha analista e por contextos internos igualmente pesarosos.

Nunca pude contar com minha família para nada. Isso significa que tanto faz se me refiro a um momento de adoecimento na infância, carência econômica ou de momentos festivos, como um batizado ou minhas cerimônias de formatura de Graduação. Na saúde ou na doença; na alegria ou na tristeza, nada de pais, tias, primos ou avós!

Por conta disso, desenvolvi o espelho-inverso que me fez batalhar por minha vida. Disso decorre meu medo de errar e de perder, estando, pois, suscetível a depender deles. De todos os medos, o maior medo.

Meu analista atual também me disse que família de comercial de margarina só existe no comercial de margarina. No todo, todo mundo está num lar disfuncional ou em famílias competitivas, cujos conflitos são disfarçados pela educação. Grande consolo!

Então, meus medos se mostram por esse apego atencioso aos detalhes, pela responsabilidade em não me tornar refém de qualquer coisa que exija acionar parentes. Achei bastante grave que seja para precisar deles, seja para comemorar com eles, não posso leva-los em conta.

Desqualificam minhas conquistas, meus títulos, minha formação, meus esforços. Por outro lado, não sou muito de estar perto deles. Se a gente toca uma superfície quente, o normal é largar do que queima, não é? Tenho amor por alguns deles; pavor e distância dos meus parentes maternos recém-descobertos que, no caso desses últimos, são usuráveis e invejosos, sobrando poucas exceções entre eles.

Eu, assim como a maioria das pessoas, passo pano, faço de conta que estamos todos bem; que nos damos bem e comungamos opiniões e afetos, mas não sou muito de alimentar hipocrisias, então, também opero na Zona do Sumiço, desapareço, não posso e não estou.

O melhor da pandemia foi o distanciamento. Não reclamo, não: estar longe de quem não gosta da gente; de quem a gente não gosta, é tão importante e satisfatório quanto estar perto de quem amamos

São marcas difíceis de encarar nos desafios da vida. É como estar num time em que nunca lhe passam a bola...por isso eu abandono o jogo.

 


quarta-feira, 13 de abril de 2022

Para a grande mulher que se foi

 


Minha analista (psicanalista, para especificar redundantemente) morreu.

Não imaginei que a dor desse luto fosse tão profunda, diferente, intensa.

Conforme eu já afirmei aqui, antes, eu queria ser uma daquelas pessoas frescas que aproveitam as dores para poder escrever e criar. Eu, não: a dor me paralisa. Eu fico como meus gatos, enroscada, quieta, num silêncio de desertos.

Lêda G. morreu em 23 de maio do ano passado. Eu só soube há duas semanas. Soube porque precisei voltar à psicanálise. Ao procurar por ela, as notícias na web me avisaram.

Fazia um tempo que ela não morava mais na Bahia. Na ética da psicanálise, as pessoas não sabem quem é analisando de quem. O nome do cliente precisa ser resguardado. Logo, não poderíamos ser avisados do óbito.

Doeu, em especial, uma mensagem de um órgão da Sociedade Brasileira de Psicanálise, em que se dizia do quão inacreditável era que não veríamos mais a ‘exuberância’ de Lêda G.

Ela foi a mulher mais inteligente que eu conheci. Sábia mesmo. Moça, jovem, alegre, doce, sensível. Justa, cobrava menos ou cobrava nada de quem não podia lhe pagar. Foi humana comigo e com minha amiga-mais-que-irmã, convertendo o valor de nossas sessões em moedas ‘pagáveis’.

Linda Lêda, compreensiva.

Nunca ouvi falar no luto por analistas. Observem: o analista não é apenas um confidente; não é somente alguém com quem efetuamos trocas e transferências de papéis. Tem amor ali. Tem temor. Tem a vontade de nunca mais voltar e a de não mais sair.

Tem aquela hora do ódio, em que a sua responsabilidade sobre a sua vida cai no seu colo.

Tem aquele momento em que é  você quem é instado a confrontar suas fraquezas, suas repetições, os desejos não declarados, as declarações não desejadas...Tem os desejos de colo e os desejos frustrados e, acima de tudo, tem um amor maior que não se compara ao de um parente, ao de um amor romântico...

Tem, também, a hora em que você é estimulado a se perdoar, porque os seus erros foram o melhor que você poderia fazer com os instrumentos que você tinha, com a pessoa que você era, pela idade que você tinha, pelos recursos mentais, materiais e psicológicos que você tinha. E assim são os analistas: dão a justa medida do que lhe cabe, ajudam a ver ‘a dor e a delícia de (se) ser o que é’. Por isso somos gratos.

Lêda G. foi minha professora na UEFS.

Antes de ser aluna dela, acompanhava as palestras que ela proferia – isso em minha primeira graduação também na UEFS.

A vida inteira eu a admirei. Achava que ela era uma mulher linda – minha classificação de ‘linda’ não se volta à ideia de perfeição. Uma pessoa linda é um conjunto, inclusive os desvios estéticos que a personificam. Linda e elegante. Gostava de usar o perfume Accordes, no dia a dia; e J’adore e L’air Du Temps em outras ocasiões. Já usava cabelos avermelhados no mesmo tempo que eu. Antes de tudo isso, eu já achava que o perfume veste a pessoa. Continuo achando. Gente sem cheiro é algo entre um cadáver fresco e uma pessoa nua e nada sexy. Gosto e cheiro andam juntos, daí porque dizemos: ‘Cheiro gostoso”, confundindo os órgãos do sentido – cheiro, paladar.

Sim, minha analista era uma mulher sexy e exuberante, elegante na voz e na altura; nas palavras, sobretudo.

Tem doído muito a falta dela, a morte dela. Foi mais uma a ser devorada por um câncer – tal a minha amiga-mais-que-irmã.

Fiz aniversário ontem. Ganhei, dentre meus presentes, uma foto grande de minha amiga citada. Quem me presenteou, me disse: “você merece mais que eu”. Concordei de outra forma: eu preciso, caso eu não mereça.

E à minha analista, que me fez ser quem eu sou; quem arrumou minha cabeça para eu arrumar minha vida, deixo minha declaração de amor e de saudades. Que Deus, nosso Pai supremo em misericórdia, sabedoria e amor dê a ela um doce repouso.

Ela, que traduzia minhas palavras, meu texto interior de angústias caladas e não-percebidas...ela, quem me faz falta e que me deixou sem palavras, leve a certeza de que foi amada e admirada.  Ela, que me devolveu a vida, agora deixou a vida...e um vazio em minha existência.