Louquética

Incontinência verbal

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Lar e vidas

 


Conversávamos sobre organização e limpeza da casa; e do quanto, ainda que chateadas, gostávamos de deixar a pia limpa antes de dormir, quando a minha amiga disse, como quem discute tipos de xampú: “olha, eu nunca deixo pratos sujo na pia antes de dormir! Nunca! Lembro de que minha tia e eu tivemos que lavar os pratos na cozinha cheia de sangue, de manhã, com a Polícia Civil entrando e saindo, porque o marido de minha outra tia assassinou ela. Os pratos ficaram lá; e a gente tendo que lavar prato no meio do sangue, no outro dia. Depois disso, nunca mais deixo pratos sujos para o outro dia”.

É preciso entender que ela não banalizou o drama: a cabeça da então garota de 09 anos só conseguiu registrar isso como associação, isto é, a tragédia e a sujeira no lar.

O sangue derramado da mulher no lar, literalmente, foi metaforizado para driblar o trauma. É o que a mente pode fazer para se proteger. Dá muita piedade ver o que há sob a narrativa dela, que parece conto de Rubem Fonseca, mas não foi ficção.

São formas, também, de reduzir o impacto do trauma. A lembrança que fica é uma forma de desviar da causa maior, das dores, de um contexto extremamente pesado e violento. Imaginem isso para uma criança.

Aprendemos formas de falar, eufemismos para desviar de dramas. Para alguns, por exemplo, estupro é apenas quando há violência física e penetração. Por outro lado, vejo certa inadequação em expressões como abuso sexual e molestar sexualmente alguém. Acho pouco para o tamanho da violência. Todavia, numa sociedade de base patriarcal, como a nossa, em que sexo foi concebido como ‘obrigação matrimonial’ da mulher, não é de se estranhar.

Vamos ao segundo ato do mesmo drama: minha costureira é uma mulher ímpar. Primeiro, porque ela é rica, tem dinheiro e é dinheiro dela, do trabalho dela – tem um filho igualmente rico, que a cobre de mimos absurdos do mundo da ostentação, tipo uma televisão maior do que a parede. Ela continua sendo costureira porque quer e gosta.

Dentro dessa ‘imparidade’, acrescento que ela mora num condomínio luxuoso, ricamente decorado, mas vem para o ateliê simples (simples é sem luxos ou nada equivalente), que fica perto de minha casa. Geralmente, ela faz reparos e consertos, não necessariamente todo o processo de corte e costura de roupas.

Em conversas nossas de muito tempo descobri que o ateliê é um pretexto para não estar em casa, não somente em vida ociosa, mas à disposição de um marido que viu nela uma serviçal a quem pode requisitar pratos, dar ordens e controlar. Dito assim nem parece nada demais. Porém, ela (agora mais que antes) falou comigo sobre o quanto se sente anulada, menosprezada, ferida por ele. Queixou-se do desdém, da má vontade, da falta de mínimo carinho que se tem até por bichos domésticos e, se aqui poupo palavras é para encurtar a profusão de dores descritas e sofridas por ela.

É com o ateliê, desaprovado por ele, que ela consegue escapar parcialmente do duro convívio e do script de vida que seria ditado por ele.

Há pessoas que não têm a mínima ideia do que seja ser mulher, do que seja existir...há os que não sabem nada sobre a vida no lar; e há muitos e muitas que julgam que em determinada idade e tempo, as mulheres só aspiram à morte, não querem nada de seus casamentos, não sonham além das paredes do lar – e lar com dinheiro é tudo para muitos.

Admito que me solidarizo tristemente com ambas e com as muitas que aqui não citei – os meus relatos biográficos de coisas similares estão aí, em outros textos deste blog.

Onde terá sido fácil ser mulher?

 

segunda-feira, 17 de maio de 2021

José e outras paixões

 




Precisei atender à generosa convocação para uma publicação de artigo. Devido à exiguidade do prazo, achei que deveria me valer de algo já escrito e nunca publicado, a fim de poupar tempo e esforços.

Eis-me diante da criticidade que o tempo impõe: abri o velho artigo escrito. Gostei do que li, mas entendi que o romance que dava corpo à minha análise não trazia substrato para despertar interesses. Era um bom livro, de conhecido autor latino-americano, mas um tanto quanto restritivo, daquelas leituras para poucos, para públicos específicos, com tema desgastado, apesar de continuar na moda. Então, desisti e resolvi começar do zero.

Começar do zero, para mim, significou ler novamente um outro livro. Li com muito gosto. Adorei ler. Foi trabalhoso e consumiu tempo, mas me deu um extremo prazer, porque amo Rubem Fonseca.

O romance José, escrito por Rubem Fonseca em 2011, compõe-se de um exercício de memória articulado na ficcionalização da narrativa. Desta forma, há um pretenso relato biográfico, que mescla fatos históricos, pessoais e culturais, às multiplicidades de artimanhas da verossimilhança, traçando um instigante jogo no plano das fronteiras entre estas partes.

Olha, a quem acha que deve trabalhar com aquilo que gosta, eu só posso dizer: se você puder, faça isso mesmo. Nada melhor. Até o sacrifício de começar tudo de novo e o gasto de compor cada parte, cada análise, de sair catando referências, de formatar páginas, etc., tudo vale a pena.

Se fosse em um outro contexto, em que eu precisasse seguir cartilhas para conquistar uma vaga, um lugar, eu poderia ceder ao meu objetivo e ‘casar por interesse’, mas se posso me valer da espontaneidade de minhas escolhas, lá vou eu, recomeçando a escrita, recalculando a rota. Acho que eu me devia isso: escrever sobre o livro de Rubem Fonseca e, depois, escrever sobre A insustentável leveza do ser, que é o livro da minha vida, o livro primeiro dentre todos os livros, aquele que é paixão de leitura e deslumbramento narrativo. Mas, deste último, sempre começo a escrever e largo, porque sou instada a fazer coisas obrigatórias que me tiram da rota.

Devo dizer que o livro de Rubem Fonseca, José (2011), foi o livro mais bonito que eu li em uma década. Não sei traduzir minha impressão com outro adjetivo, porque todos seriam pouco. Um livro apaixonante, lindo, surpreendente para quem já leu muito as obras de Fonseca...Para mim, valeu o trabalhoso retorno à elaboração do artigo. Fica a minha dica: escreva sobre obras que tenham respaldo afetivo para você. Livro é boa companhia, precisa ser um livro amigo, amado.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Outros ritmos

 


Faz um tempo que deixei de escrever no blog com os ranços de minha profissão e de minha área principal de formação. Continuo com o mesmo encantamento – tão óbvio, se escrevo aqui, se vivo entre livros, se persigo narrativas alheias, com os ouvidos mais atentos deste planeta!

Mas, andei me cansando do meio, dos egos-pequeno-inflado de conhecidos e desconhecidos mais próximos, em seus alvoroços descuidados de poemas que não acabam na hora certa e se esticam cansativos, pondo a perder seu melhor aspecto. Vá você dizer a tais pessoas que Camões  era Camões e que a ele foi dada a licença para exercer sua competente criação de épico! É muito ego e muitas letras em jogo...

Às vezes passo pano, às vezes faço um silêncio decepcionado, porque sou instada a me manifestar e não dá para explicar certas coisas quando o interlocutor é míope para enxergar a si mesmo. Eu sei que humanamente somos assim, mas quem vive das palavras precisa fazer duros exercícios de olhares distanciados, críticas, adaptações, observações de imagem, tempo, sentido, sonoridade....

Lembrei de uns parentes ignorantes, estúpidos e toscos, que falavam acerca dos sotaques baianos, com menosprezo e pretensa superioridade análogos aos que testemunho em posturas e pareceres das pessoas anteriormente referidas, que escrevem longamente loucuras que rimam, mas querem ser louvadas e idolatradas. Para ambos os grupos, parece não haver a compreensão do que seja ritmo – sim, a fala, toda fala é musicada, é ritmo...todo mundo tem sotaque, que é a musicalidade da fala; as palavras têm ritmo, têm e são musicadas; e um criador de conteúdo literário que desconhece o ritmo, põe a perder as palavras. 

Agindo como professora, rogo a uma afirmação de Octavio Paz (2006, p.11):


O ritmo não só é o elemento mais antigo e permanente da linguagem, como ainda não é difícil que seja anterior à própria fala.

Em certo sentido, pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou, pelo menos, que todo ritmo implica ou prefigura uma linguagem. Assim, todas as expressões verbais são ritmos, sem exclusão das formas mais abstratas ou didáticas da prosa. (PAZ, 2006, p.11) .


                                                                                                                                            


sábado, 1 de maio de 2021

Sob controle

 


As pautas sobre o corpo geralmente giram em torno do direito pleno do indivíduo a ele. Isso significa o controle que recai majoritariamente sobre o corpo das mulheres, desde a reprodução até às formas de apresentação pessoal, nas várias culturas, determinando as vestes, o tamanho das unhas e a cor com que pintá-las, o tamanho e a forma dos cabelos e até os bem intencionados do Youtube gastam seu tempo para criar vídeos sobre o que usar aos 40, 50, 60...

E, sim, há plateias para tudo isso. E sabe por que? Porque as mulheres não querem se sentir ridículas, anacrônicas, sem noção...E, de fato, se propõem a aprender a como se comportar e a o que usar, que estejam em conformidade com aquilo que se espera delas. Isso também significa que não sabemos ter as idades que temos e que teremos, porque a verdade é apenas que o tempo passa, prossegue...E daqui a pouco a gente se toca sobre a idade que tem, embora o corpo não corresponda aos estereótipos etários. Era para aos 30, sermos balzaquianas (lembram da obra de H. Balzac, “A mulher de 30 anos”?).

Dá para entender: nossas avós e muitas de nossas tias, casavam até os 15 anos. Com 20, já tinham uns 3 filhos...os desgastes com a vida doméstica e familiar, o contexto social diferente e ainda mais endurecido moralmente, os poucos recursos da indústria da estética e tantos fatores que não caberia enumerar agora, faziam as mulheres se transformarem em senhoras muito cedo. A expectativa de vida também, sob essas questões, ajudava a firmar o citado estereótipo (isso inclui uma pluralidade de aspectos positivos e negativos, como os de ordem sanitária, as políticas de saúde pública, os avanços na Medicina, índices de violência contra as mulheres, etc.).

Uma mulher pode se sentir bem consigo mesmo em roupas de qualquer tipo, tamanho, cor...se essa for a escolha dela. Como sociedade, passamos muito por cima das liberdades individuais. Roupa certa é aquela com que você se sente bem. Nos casos determinados, em que há formalidade, roupa certa é a que esteja condizente com a ocasião, porque os ritos sociais têm esse precedente – biquíni para a praia; vestido para o casamento; traje a rigor em contexto específico...

Mas, o que mais me afeta é mesmo o controle sobre os nossos cabelos. Poxa, não se pode envelhecer e querer usar franja; não se pode ser negra e ter cabelos loiros; não se pode querer ter o cabelo em conformidade com a vontade da dona, jamais. A vigilância social exige e decreta o permitido e o vetado. E ninguém quer se sentir ridículo. Vigio muito a minha tia, de 76 anos, que tem lindos cabelos loiro médio, longos: hoje ela se sente muito bem por poder ter o cabelo de acordo com a vontade própria, com a escolha própria, valendo-se de versatilidade nas escolhas de penteados e apresentação pessoal.

Cabelo bonito é cabelo bem cuidado. Pontas duplas, manchas de tintura, ressecamento, aspecto sujo, é tudo que se pode evitar. O resto é censura.

Até uns 10 a 12 anos, essa mesma tia minha, só usava calça, para esconder as varizes. Descobriu, depois de muito tempo, que os vestidos são confortáveis e podem servir ao mesmo propósito de ocultar as varizes que tanto a entristecem...Criativamente, combina peças e acessórios e, o que é melhor, parece bem feliz hoje em dia, como se tivesse alcançado a independência.

Tem isso também de vigiar o que as mulheres calçam...esqueci completamente, mas sei que rende outra pauta.

Eu, por exemplo, não uso sapatos crock, porque acho feio, horrendo. Não visto body nem macacão: em mim, acho horrível, ridículo...em mim! Acho que não combina comigo, não necessariamente pelo corpo, mas pela pessoa. Já calça sarouel, eu não gosto mesmo, do pleno direito de não gostar e achar feio, pois me passa a impressão de que a pessoa está de fraldas ou sofrendo de varicocele. São minhas escolhas, minhas impressões, voltadas à minha vida.