Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Aquela breve visita

 


Não tenho frescuras existenciais de autoria. Logo, não escrevo melhor, nem escrevo mais quando atravesso processos de dor. Em contrapartida, se deixo de escrever é por falta de tempo mesmo.

Já escrevi de forma corrida, claro, mas era alguma ideia previamente amadurecida ou urgente demais. Mas, enfim, hoje vim escrever por estar feliz. A melhor felicidade que se pode ter: aquela que é gratuita, sem motivo aparente, que não se deve ao que se ganhou ou a nenhum tipo de compensação objetiva. Abraço a visita da felicidade, deixo que ela sente em minha sala e desejo que ela durma comigo – se ela veio, sabe do meu cansaço, do tempo em que levei a vida por demais a sério e, devo dizer, tive três semanas de trabalho intensivo; precisei pôr os pés em Salvador, após 23 meses sem ir lá; o que significou um estado de tensão, enfrentar a BR 324, dirigindo sob as condições já esperada, sozinha, no fim da madrugada. E assim o fiz, por duas vezes. Missão cumprida.

Encerrei minhas aulas e minhas cadernetas há pouco e finalmente acabou o semestre. Hora de arrumar a casa, poder ler um livro gratuitamente, no sentido de ler pelo lazer e pelo prazer.

Termino esse ano sem namorado. Tentamos e não deu: meu Rei de Espadas era muito infantil (a ponto de esconder a idade, quando não havia como ocultar seus cinquenta e tantos anos presumíveis pela cara e pelo currículo). Foi muito bom estar com ele, mas a estabilidade durou pouco. Ele precisava de uma mãe, tinha um Édipo ali que me cobrava coisas que eu não devia. Por um tempo, as neuroses dele eram amparadas pelos meus desejos, porque funcionavam, para mim, como um ganho secundário. Nossas conversas eram boas, nossas trocas eram boas...até que as trocas começaram a resultar em prejuízos, porque eu dava bem mais do que recebia...e um dia, vi a inadimplência afetiva e, então, terminei.

Terminei e nem acreditei que terminei porque, se tem algo que me surpreendeu em mim, em 2021, foi minha capacidade de encerrar, fechar portas, terminar e dizer ‘não’. E foi um terminar tão contundente, que deixei na casa do Rei de Espadas um livro imenso, importante, amado e caro e jamais voltaria atrás do livro, para não gerar qualquer pretexto de contato com a Majestade.

Excepcionalmente, desfiz minhas inscrições nos canais dele no youtube; desfiz a amizade no Facebook; bloqueei no whatsApp e se virtualmente a gente se esbarra mudamente, é por conta de um grupo de discussões políticas. Nunca fiz isso na vida. Nunca cortei ninguém assim. Contudo, dali não poderia sobrevir amizades, nem se reconstituir o contato, porque nosso contexto de término foi de extremo desrespeito dele por mim.

Até tal momento, eu não sabia qual era o meu limite. Sempre me achei emocionalmente frágil, parcimoniosa, aberta à negociação...Mas, quando me vi desrespeitada, concluí que nenhuma palavra promoveria a reparação moral a que eu faria jus; e instantaneamente, como num trauma imediato ou algo assim, houve um corte profundo em meus sentimentos. Foi um acabar sem lágrimas, embora não sem sofrimentos. Até que passou rápido, porque a elaboração e o processo de um luto é looping de altos e baixos constantes...mas, passou.

E, cito novamente, outro encerramento igualmente maravilhoso foi sair da Revista Científica onde Yves me explorava num serviço não-remunerado, em troca de supostos títulos acadêmicos que nunca viera. Trabalho de normatização e normalização (colocar a revista nas normas da ABNT), revisão ortográfica e textual; e emissão de eventuais pareceres. Tenho um currículo robusto, mas nossas atuações perdem validade nos baremas de universidades após transcorridos cinco anos. Então, isso explica certas escolhas. Na vida real, meu nome não é o que aparece no blog. Sou Mara, mas tenho um nome completo de que o Google e o Lattes se encarrega de mostrar ocorrências. Acho que aqui é um espaço gostoso por causa do relativo anonimato, porque quem vem cá, vem voluntariamente e minha censura interior é menor por isso. Eu seria uma Youtuber fracassada, porque não vejo graça em convocar seguidores. Aliás, falar para desconhecidos é até mais confortável, porque o tipo de julgamento é outro.

Bem, vou aproveitar o dia feliz, porque a felicidade é andarilha, passa rápido por onde anda – preciso recebe-la bem, porque desejo que ela volte sempre.

 


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

O que há de novo no ano que vem?

 


A vida nunca foi fácil e, desde sempre, enquanto seres humanos, tivemos problemas com o tempo. O tempo problemático e impreciso da duração de nossas vidas (Lembram de Fagner cantando Canteiros, com inserção do verso de Cecília Meireles: “E deixemos de coisa, e cuidemos da vida, pois se não chega a morte ou coisa parecida; e nos arrasta moço, sem ter visto a vida”?); o tempo enquanto o futuro, que desconhecemos completamente e apelamos a oráculos que, pelo menos nos sinalizem de modo genérico o que vem pela frente; apelamos às causa e efeitos, escolhendo a semente que plantamos, temendo a colheita e, pobres de nós, semeadores! Não sabemos se haverá temporal, seca ou pragas de gafanhotos; não sabemos se a semente vai vingar... Esses somos nós! E quando dominamos o tempo, vivendo, vivendo e sobrevivemos, ficamos tristes porque estamos velhos – e estar velho é o sintoma de muito viver.

Queremos também, que o tempo passe e as coisas se renovem. Fazemos rituais de passagem. A passagem temporal de 2020 para 2021 se fez acompanhar de um elemento novo e relativamente desconhecido, que foi a pandemia de COVID-19, que forçou a gente a questionar em todos os níveis, camadas, formatos e configurações, o tempo e a vida.

Eis que 2022 está logo ali. Não nos iludamos: no virar dos calendários, a vida seguirá sendo o que é, apenas agravada pela inflação e consequente miséria. Estaremos, talvez, vivos, se formos prudentes.

Em 2016, quando firmei minha relação com o Poeta, brinquei meu último carnaval, com a certeza de que ali acabava a festa para mim; que meu gosto mudou e minha procura também; que carnaval melhor que estar em paz com quem eu gosto ou curtindo outros prazeres é bem mais relevante que a festa. Brinquei muitos carnavais. O último foi maravilhoso, o melhor da década. O Carnaval ganhou outro sentido para mim, porque a ideia sempre foi me divertir com meus amigos, beijar gente, curtir praia e piscina, quebrar a rigidez da rotina bastante reta que eu tinha...

Na virada de 2020 para 2021, já era uma decisão minha não passar o réveillon na Praia do Forte, nem procurar badalações fora de casa. Eu já tinha isso em mente antes e a pandemia só precipitou as coisas.

Fácil dizer isso hoje, com tantos réveillons badalados no currículo. Mas, a verdade é que é muito esforço para pouco lucro: estradas cheias, praias cheias, restaurantes cheios e tudo caro; festas caras e nada divertidas – quando há festas, todas no mesmo padrão, com as chatices do axé baiano, alguma pérola do funk  e os desagradáveis chororôs sertanejo (universitário, pós-graduado ou analfabeto). Gosto muito da viagem posterior, as que acontecem depois do dia 02/01...aí, sim: liquidação e possibilidades de sol, hospedagens baratas, muitas rotas boas para seguir.

Dia primeiro de janeiro, as estradas estão cheias, as ruas estão vazias e fica difícil comprar comida...é a cara da ressaca!

Quero estar sozinha, em casa, no meu réveillon. Isso não precisa ser triste. Ano passado, chamei uma amiga para cá: péssima decisão. Ela chegou com sono, me fez sair para a farmácia 20 h e às 21h30, após comer sonolentamente a ceia especial e farta que fiz, dormiu e impediu que eu fizesse a festa, já com tudo arrumado e instalado no deck de minha casa – era uma festa para 03 pessoas, mas era uma festa.

Neste ano, a festa há de ser para dois. E não mais!

E para a manhã de primeiro de janeiro, vou ouvir o que ouço com alguma frequência: o U2, cantando New year's day



 

 


quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Ajuda duvidosa

 


É com muito esforço psicológico que declaro o quanto me sinto idiota por ter trabalhado de graça para um amigo explorador. Explico e espero que a explicação possa servir de alerta a muitas pessoas que, eventualmente, coloquem os pés em coisas análogas.

No ofício de professora, dada à circularidade entre departamento, campus e situações peculiares ao exercício do magistério, constituímos grupos. São grupo com gente oriunda de toda parte (outras cidades, outros departamentos, outros colegiados de uma mesma universidade, que é multicampi). No meio do caminho, muita conversa e algumas identificações. Simpatias, paridades, amigos.

Depois de algum tempo e uma boa dose de intimidade profissional, uma dessas pessoas, Yves, tentou dividir disciplina comigo, sob o argumento de me ajudar, já que ele tem um nome conhecido e a parceria poderia se converter em ganho simbólico, renome; ainda bem que não deu certo...

Outros capítulos da vida e, novamente, para ‘me ajudar", me incluiu na comissão editorial de uma revista da Universidade, em outro campus. De cara, muitos artigos para ler, normalizar (isto é, colocar tudo conforme as regras da ABNT), corrigir texto e gramática e emitir pareceres.

Serviço gratuito, com retorno apenas simbólico, para fins de engorda do currículo.

Semana passada, após dois anos de exploração, Yves exigiu acintosamente que eu desse conta dos processos anteriormente citados (ler, normalizar, corrigir), para dois textos que totalizavam 80 páginas, para concluir em 48 horas. Era noite de sexta. Meu prazo era segunda-feira.

A exigência foi feita em grupo, com vistas a me coagir, me constranger. Respondi que não o faria naquele tempo. Ele deu respostas abusivas, em grupo, escamoteando e tergiversando com elogios e gracejos duvidosos, aos quais rebati com clareza e uma coragem atípicas. Falei que dava aula, que tinha defesa de TCC, que tinha vida pessoal.

Devolvi os textos na quarta-feira, igualmente em grupo, com um breve aviso: “Yves, os textos estão revisados. Verifique sue e-mail”. Ele respondeu no grupo, um ‘ok’ meio surpreso.

Deixei o grupo três horas depois.

Antes, porém, no mesmo e-mail que constavam os artigos, escrevi tudo que somente ali percebi: que ele fazia exigências, se portando de forma desrespeitosa, como se eu não tivesse o que fazer; como seu eu tivesse que parar meu dia e priorizar um serviço cansativo, que requer atenção e disponibilidade e, por fim, esfreguei na cara o jogo sujo dele. Por isso, fica a advertência: seja porque a pessoa precise do título para concurso; seja porque a pessoa não tem experiência, é preciso dar limites ao trabalho não remunerado. É trabalho, é esforço, é responsabilidade.

Por uma única página revisada, se cobra de 06 a 08 reais. Assim, a revista dele, com o nome dele no comando, utiliza mão-de-obra qualificada e gratuita, com a desculpa de ajudar os outros.

Não se deixe explorar por orientadores, colegas, parceiros. Eu demorei para ver que obedecia a um tirano explorador, sem ganhar sequer gratidão.

Na lógica do explorador-manipulador, é ele quem está lhe fazendo um favor. Ele subverte à realidade.

E me pergunto como fui tão imbecil, sacrificando meu tempo, meu bem-estar...para ser útil a sonhos estranhos a mim. O pior: a revista científica é numa área totalmente alheia à minha área de atuação. O problema não foi estar ali, mas não sair dali antes.

Terei prejuízos morais, porque Yves, “Evil”, “é vil” e vingativo. Ao contrário do que as atitudes dele demonstram, ele é o tipo de pessoa que luta por justiça social, igualdade, oportunidades...Na teoria. Na vida real, explora mesmo; e ainda comete abusos e assédio moral, bem disfarçado.

 Então, deve me difamar por aí. Espero que as demais pessoas também acordem do pesadelo. Não se deixem explorar! Se te dá trabalho, é trabalho e tem um preço.


segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A inflação real



Breve adendo da vida real para os curiosos: sim, estou viva, namorando de novo (felicidades, angústias, inseguranças, amor, desentendimentos, tudo junto!); cortando teias de relacionamentos passados, vivendo tristezas pela morte de minha amiga-mais-que-irmã; ocupada demais com trabalho e coisas correlatas e, sim, muito perplexa com o Brasil.

O preço da gasolina me atingiu em cheio:

O preço da conta de luz, me abateu cruelmente;

A inflação entrou em meu armário, bagunçou minha geladeira.

O custo de vida humilhou minhas economias, riu da minha cara, me desafiou e me ameaçou.

Aqui em Feira de Santana, aqui em minha vida, a manteiga vai a 22 reais meio quilo; o arroz está na casa dos 4 reais e quase cinco, o quilo; leite em pó, latinha de 400 gramas,
batendo 17 a 20 reais...ração de gato, 17 reais o quilo; produtos de limpeza e de higiene pessoal, nem falo os absurdos.

Não interessa o que o IBGE diga. Não interessa qual o instituto de estatística irá gritar os índices de inflação, como quem sorteia número nos bingos: inflação quem sabe o que é somos nós, gente de carne e osso que vai ao supermercado e que paga conta. Posso dizer que é tipo temperatura: o termômetro da estatística pode marcar 5 graus, mas a sensação térmica, que é o que interessa, está em 33 graus. Sendo bem sincera, a inflação na minha casa vai mesmo a 35%.

Então, em linhas gerais, eis a vida: o poder de compra caiu, a inflação devora meu dinheiro e a uma vida meio caótica, se soma um país que só está bom para quem anda levando alguma vantagem...ou para quem encontrou alguma bebida que evita o contato com a realidade. Por aqui, crise pura!

 Dizem que a marchinha de carnaval abaixo foi composta em 1937 e que Gal Costa interpretou nos anos 1980...o problema é que ela volta a ter validade nos dias hoje...

Onde está o dinheiro?

O gato comeu, o gato comeu
Que ninguém viu
O gato fugiu, o gato fugiu
E seu paradeiro está no estrangeiro
Onde está o dinheiro?
Onde está o dinheiro?
O gato comeu, o gato comeu
Que ninguém viu
O gato fugiu, o gato fugiu
E seu paradeiro está no estrangeiro
Onde está o dinheiro?
Eu vou procurar e hei de encontrar
E com o dinheiro na mão
Eu compro um vagão
Eu compro a nação
Eu compro até seu coração
Onde está o dinheiro?
O gato comeu, o gato comeu
Que ninguém viu
O gato fugiu, o gato fugiu
E seu paradeiro está no estrangeiro
Onde está o dinheiro?
Onde está o dinheiro?
O gato comeu, o gato comeu
Que ninguém viu
O gato fugiu, o gato fugiu
E seu paradeiro está no estrangeiro
Onde está o dinheiro?
No norte não está
No sul estará
Tem gente que sabe e não diz
Está tudo por um triz
E aí está o "X"
E não se pode ser feliz
Onde está o dinheiro?
O gato comeu, o gato comeu
Que ninguém viu
O gato fugiu, o gato fugiu
E seu paradeiro está no estrangeiro
Onde está o dinheiro?
Onde está o dinheiro?
O gato comeu, o gato comeu
Que ninguém viu
O gato fugiu, o gato fugiu
E seu paradeiro está no estrangeiro
Onde está o dinheiro?
Eu vou procurar e hei de encontrar
E com o dinheiro na mão
Eu compro um vagão
Eu compro a nação
Eu compro até seu coração

Aquela parte que se foi...

 


Não escrevi nestes últimos dias devido ao fluxo de coisas que ocorreram em minha vida. Umas coisas graves; outras coisas, importantes.

A começar pelas graves, a maior delas: minha amiga quase irmã morreu. Morreu de câncer, pesando 37 quilos.

Na verdade, ela já havia morrido antes de falecer: terceirizou a vida, passou à mãe sua existência. O câncer foi só o súbito pretexto de saúde que apareceu.

Há uns quatro anos ela se queixava de gastrite, diagnosticada desde então. Corrigiu a alimentação, perdeu o prazer do sabor das comidas. Para agradar à mãe, voltou a ser adventista, porque estava muito infeliz e precisava de galhos subjetivos em que se segurar. Passou a procuração da vida à mãe, porque se sentia culpada por ter dado trabalho, ao delegar a ela a criação das duas filhas agora adolescentes.

Minha amiga, neste ano, passou mal em abril. Detectaram o câncer (eu nunca acreditei e também nunca vi laudos). Em junho prescreveram quimioterapia. Em outubro ela morreu, por falência múltipla dos órgãos. Morreu consciente, dizendo à empregada da família que estava no hospital: “Lourdes, eu estou indo. Não vou criar minhas filhas”.

Como ocorreu com o Bruno Covas, jovem se foi, de mesma causa; de mesmo tratamento.

Eu e os meus mais íntimos comungamos de um mesmo pensamento e decisão: se pintar para nós a mesma enfermidade, vamos encarar na paz, ao natural, sem tratamentos. Há batalhas inúteis e há guerreiros indispostos. Nós (meus amigos e eu) somos desse exército.

Minha amiga viveu tudo o que podia comigo.

Foi uma companheira verdadeira, de angústias, alegrias, conquistas, aventuras...Uma amizade de quase trinta anos.

Apenas em 2003, quando ela decidiu ser mãe, assumidamente como recurso para prender o homem que ela amava, a gente se afastou.

Ela me disse, então, que via a vida da gente como o capítulo final de uma novela, onde todo mundo estava se casando ou formando par e que, então, era a hora dela.

Ele foi meu colega de curso na universidade. Ele passou 11 anos na graduação, era maconheiro de verdade, nunca trabalhou e era sustentado e paparicado pelos pais, ali, aos 33 anos.

Ao morar com ela, foi violento com a segunda filha deles, que, novamente assumido por ela, ‘veio para dar noção de responsabilidade a ele’. Não funcionou e se separaram porque a família dela interveio para proteger à criança.

Ele se tornou o grande amor frustrado dela.

A mãe de minha amiga devorou cada centavo dela em vida. Usurpou de quem não ofereceu resistência e de quem, sem consumar o suicídio, se deixou morrer.

Há um ano a gente se encontrou. Eu amava muito minha amiga-mais-que-irmã! Pude dizer isso a ela e limpar a roupa suja com a mãe dela, em educada sinceridade.

No sábado do velório, fui ver para crer. Eu nunca conseguiria ir ao sepultamento. Nunca!

Foi uma luta dormir da sexta para o sábado, antes do velório. Foi outra luta conseguir sair do velório e dirigir...eu fiquei desnorteada. Chorei infinitamente e meus dias não foram fáceis.

Não sei como tem gente que acha a dor um elemento de criatividade para a escrita. Eu fico muda. Eu fico perplexa e calada. Não escrevo, apenas executo coisas mecânicas do cotidiano.

Eu e ela vivemos muitas coisas e quase sempre ela é a protagonista ou coadjuvante de todas as histórias que relatei e que se passaram ou se referiram aos melhores ou mais fortes momentos de minha vida, até 2003. Mas, depois disso houve episódio esporádico e até em 2014, quando fui ver Giovanni, um idiota que eu pegava para fins sexuais avulsos (idiota tipo Jonny Bravo), ela me deu uma força, me emprestou um dinheiro de reforço, para o caso de eu precisar, já que eu ficava com ele em outra cidade.

Férias, festas, amores...Rio Vermelho, Aracaju, carnavais, micaretas, praias e verões que vivemos intensamente...

E lembro da gente comentando que éramos Thelma and Louise, do filme homônimo, antigo, cujas protagonistas eram tão amigas e tão unidas que, até no fim do filme, encurraladas, antevendo que ninguém acreditaria na inocência delas, optam por se suicidar, acelerando com o carro em direção ao precipício, em direção oposta ao cerco da polícia. Éramos assim: cúmplices e corajosas.

Ela ajudava todo mundo a se entender no amor, formava casais, dos quais um está junto até hoje.

Das outras coisas falarei depois. De minha amiga, sei que não falei o bastante...mas, vivi muito.

Resquiscat in pace, grande amiga!


segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Por trás das biografias

 




Procurar saber da vida dos outros, em demasia é fofoca; esporádica e moderadamente, é curiosidade. Educadamente é interesse, como ocorre aos apaixonados: buscar informações, procurar conhecer hábitos, preferências, gostos, condutas – porque, afinal, quem quer pisar em campo minado?

Já citei aqui o quanto as pessoas são ávidas por biografias – as não-autorizadas são as mais procuradas, porque mostra o que o protagonista quis esconder. Sinalizam, entretanto, o outro lado: quem iria fazer uma péssima propaganda de si mesmo? Então, se no plano da literatura a gente se depara com a auto-ficção e com auto-referencialidade, já sabemos de antemão que um autor não tem a intenção de mentir, mas que pode inventar, sem se comprometer moralmente com isso, já que não se lembrará de todo o seu passado. Nem sempre, mesmo a vida sendo da gente, nós sabemos de tudo que nos ocorreu. Por exemplo: as famílias criam versões, guardam segredos...As pessoas traem e são traídas, escondem fatos...Então, quantos há que cresceram declarando que Fulano era seu pai e Beltrana, sua mãe...E aí, na morte dos supostos pais, descobrem que são adotivos; ou descobrem, após a morte de pais e parentes, as famílias paralelas; descobrem tramas, causas, acidentes, etc. E não podem dizer que suas vidas foram mentira. Viver, a gente vive de verdade – os enganos, equívocos, desconhecimentos, fazem com que a pessoa repita o que sabe sobre si, mas nem sempre sabe tudo. Em alguns casos, porque se é criança...ou porque captam só um lado da história.

Introduzi este assunto aqui porque meu namorado sofre por não saber tudo que queria a meu respeito. Sofre de um jeito que não consigo remediar, já que dialoga com questões internas dele; das inseguranças dele. Parece música de Caetano:”E eu querendo te apreender o total...”, ou seja, quer saber tudo, talvez para dominar melhor ou saciar a vontade de saber. E ficamos mal com isso, reciprocamente. Meus amigos estão de cabelo em pé, supresos e temerosos, porque acham que isso cresce. E sei que têm razão. Um deles me disse que sabia que o que o levou a se interessar por mim era meu perfil cultural e intelectual. Entretanto, eles dizem que isso é como gostar do canto do pássaro e querer enfurná-lo numa gaiola. E se surpreendem, perplexo, pelo fato de que ELE goste de meu perfil, reconheça quem sou e como sou, mas na hora de declarar a relação entre a gente, busca me neutralizar, me dominando em termos de não querer que eu fale, opine, decida, já que minha independência gera dores de insegurança nele.

Ora, eu que me sinto e insegura, porque vejo nele as qualidades que ele vê em mim, acrescentadas do inegável talento artístico dele, da bagagem cultural, da trajetória profissional, de ser um homem bonito e desejável...Mas, não posso converter as qualidades dele em vulnerabilidades para mim. Nem posso neutralizar e jogar uma cortina sobre ele, a fim de afastar olhares que notem que ele é como é. O fato é que a insegurança é irmã do ciúme e não pode ser alimentada. É preciso admitir: não temos domínio sobre tudo. É assim que se desenha uma relação tóxica, pouco saudável, cheia de controles, como se pudéssemos evitar vicissitudes ou controlar desejos e olhares desejantes. Quantos há, que passam pelo mesmo?

Aliada à admiração que ele tem por mim, vem uma onda de cobranças, como se eu fosse infalível e como se, a cada falha, eu disparasse uma lança contra as expectativas e idealizações dele. E ficamos assim, nesses dias: mudos, cada um no seu canto, remoendo o amanhã da relação, cheios de medo.


terça-feira, 31 de agosto de 2021

Crescer e ser

 


Por que é tão difícil o amadurecimento emocional, especialmente, o dos homens? Já testemunhei e já vivi tanta coisa, que chego a fica boquiaberta pelos eternos jogos, pela covardia, pelas escancaradas infantilidades...

Fica difícil manter a paz quando a gente depara com homens assim. E nem precisa ser em relacionamento amoroso, é na família, no trabalho, é no meio da rua, em circunstâncias passageiras, específicas. E, claro, a gente sonha em encontrar alguém diferente.

Há pouco eu até brinquei com isso, dizendo que encontrei um homem que me ouve com atenção...Mas, cobra caro em cada sessão. Logicamente, eu me referia ao psicanalista, porque homens não são seres de escuta e muito raramente são seres de atenção, exceto para carro, futebol ou bundas... e, à parte a brincadeira, eles dão atenção apenas ao que amam e fogem de discussões densas, porque acham desgastante.

O tempo passa e eles não mudam muito.

Ainda bem que conheci exceções. Decerto, não eram senão amigos, tipo o Léo Bernardes...tipo um ou outro coração bom que veio acompanhado de boa mente.

As mulheres, então, entram no jogo. E tudo vira jogo. Um desgaste besta!

Minha amiga loira, linda e gente boa sumiu das redes sociais, parou até de escrever, sepultou o blog, parou, calou, sumiu...provavelmente, pelos contextos da infantilização do marido dela, nas tantas vezes em que cabia conversar. Ela se reportava ao sufocamento, das tantas palavras por sair, mas que ficavam contidas, se acumulando junto com problemas e mágoas. Eles se amavam muito...Mas, como disse Drummond, “o amor é privilégio de maduros”.

E ao falar em imaturidade, volto à velha música chata do Roupa Nova, a verdadeira canção da infantilidade: “Eu compro o que a infância sonhou; se errar eu não confesso/eu sei bem que sou/e nunca me dou”.

Que show de imaturidade, intransigência e falta de noção. Não é à toa que a música se chama Coração Pirata.

Bom, a letra toda, provavelmente usa de ironia, mas vou colar aqui para que cada um tire sua própria conclusão...nem me cabe argumentar mais nada: quem tiver olhos de ver e ouvidos de ouvir, que faça a sua parte: 

Quando a paixão não dá certo
Não há porque me culpar
Eu não me permito chorar
Já não vai adiantar
E recomeço do zero, sem reclamar

O meu coração pirata
Toma tudo pela frente
Mas a alma adivinha
O preço que cobram da gente
E fica sozinha

Levo a vida como eu quero
Estou sempre com a razão
Eu jamais me desespero
Sou dono do meu coração

Ah, o espelho me disse
Você não mudou

Sou amante do sucesso
Nele eu mando, nunca peço
Eu compro o que a infância sonhou

Se errar, eu não confesso
Eu sei bem quem sou...
Eu nunca me dou

As pessoas se convencem
De que a sorte me ajudou
Mas plantei cada semente
Que o meu coração desejou

Ah, o espelho me disse
Você não mudou

Sou amante do sucesso
Nele eu mando, nunca peço
Eu compro o que a infância sonhou

Se errar eu não confesso
Eu sei bem quem sou,
E nunca me dou...

 

sábado, 21 de agosto de 2021

Retratos rotos deste tempo

 


A cada dia, um aprendizado.

Morar no Brasil não tem sido fácil e eis uma lição à qual deveríamos prestar mais atenção.

Não é somente o absurdo da situação econômica, com alto índice de desemprego, preços altos, impostos absurdos; mas, sobretudo, é a ascensão do delírio fundamentalista. Eu nunca imaginei me deparar com tanta estupidez, burrice e delírios coletivos. Não porque fôssemos, enquanto povo, um exemplo de superioridade moral ou que fizéssemos jus aos enaltecimentos que o hino nacional proclama, mas porque as coisas que os setores conservadores da sociedade brasileira defendem são totalmente contrários à lógica. Lógica básica, sabe? Tipo a pessoa se supor tão importante a ponto de defender que há microchip numa vacina contra a COVID; ou que são usados fetos humanos  na composição da vacina; ou coisas cujo absurdo faz a gente duvidar que o ser humano é mesmo racional.

Como pessoa da Literatura, tenho especial desprezo a quem emprega o termo NARRATIVA como se fosse sinônimo de mentira.

Entendo a astúcia dos que, pregando para convertidos, manobram as palavras para induzir conclusões absurdas.

Vejam bem: estamos sob uma pandemia. Isso não vai passar no próximo ano. Se muito, vamos ter melhoras a partir de junho do ano que vem – fácil de calcular, não de prever, porque somos conectados global e mundialmente; e as variantes confirmam isso. Desta forma, não adianta que uma parte do mundo esteja curada, se a outra não estiver, porque sempre haverão contatos. Sabe aquele tempo em que tínhamos áreas para fumantes? Demorou para perceberem que a fumaça não respeita limites, não fica restrita ao lugar destinado a ela e, ao que parece, a fumaça do cigarro nem sabe ler as placas. Pois, bem, o mesmo vale para o vírus.  Ele viaja, reage, se modifica.

Outro fator: reorganizar a vida após pandemia não será fácil. Reorganizar a cabeça, após um evento traumático, ao que se somarão as consequências da destruição da natureza em favor do agronegócio, da árvore que cai para virar pasto de bois; reorganizar a sociedade diante de problemas políticos em ano de eleição em que uma parte dos eleitores quer impor e obrigar à outra parte a votar como ele quer, louvando um mesmo ídolo adorado; o acirramento da burrice e da violência será outro fator que se faz sentir como indicadores de um 2022 horroroso em termos práticos para o país.

Acho incrível a força dos maus. Acho lamentável o lado justo da história estar acuado, calado, desiludido, emitindo notas de repúdio como se tratassem com adversários racionais...Sim, lutamos como nunca e perdemos como sempre. Porém, quem ganha nunca está satisfeito e sabe como boicotar a paz respeitosa dos que se tornaram opositores por ousarem pensar diferente.


sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Um homem de Capricórnio

 


A vida de um ser humano é um processo muito complexo. Para muitos, vida é a distância entre o berço e a sepultura, morada última de todo mundo que não venha a ser cremado. No meio deste caminho, as necessidades básicas (comer, beber, prover sustento, etc.) e as necessidades superiores (a vontade de saber, os desejos mais variados em todas as esferas). Como um ser em transição afetiva, faço balanços e avaliações sobre o passado e o presente. De vez em quando, tranco o coração, não quero mais ninguém.

Vivi quatro anos e meio com o Poeta, meu sagitariano querido, companheiro de literaturas, conversas, sexo e alguns conflitos.

Ele já está morando com outra. Era necessário, mas não muito previsível para quem preza a liberdade. Mudou por dentro e por fora: por dentro, porque está em trabalho formal, preocupado com dinheiro, posses e sustento, como um ser mortal qualquer; por fora, com uma vertiginosa perda de beleza e um engordar apressado e estranho. E declaro isso sem os olhos de vingança que poderiam nutrir meu parecer. Aliás, pelo contrário: desejo a ele coisas boas, oro por ele, ponho o nome no Reiki à distância.

Por vezes, comentei aqui o quanto me era estranho esse povo que constitui relacionamentos e, no término, rompe a amizade com o ex, fala mal, deseja o mal.

Eu, não. E sou grata por tudo que vivi, pela maturidade sexual alcançada com um namorado tão cúmplice, tão presente e compreensivo no plano da intimidade.

Mas, o amor que morreu faz com que eu olhe o Poeta desvencilhado das lindas vestes de sentimentos...e se torna um retrato na parede, sexy como um pé de alface...Rei morto, rei posto.

Agora, porém, após dois anos de conversa esporádica, contato contínuo, encontros, esperas e reservas, estou no enlace com o Homem de Capricórnio, meu Rei de Espadas.

Tínhamos uma solidão em comum: a de poucos pares para dividir conversas, discussões e análise de música e literatura.

Ele é mais velho que eu, só não sei o quanto, porque tenho vergonha de perguntar. Ao contrário dele, que busca devassar até meus laudos médicos e odontológicos – coisa que, sinalizando um ser controlador, me assustou e me afastou.

Desde uns dois meses, ficamos reciprocamente nesta de aproximar e afastar, por pequenas coisas, por grandes medos. Ele tem muito medo de mim. Eu tenho muito medo dele.

Não sei o que fez o barco virar, porque eu sempre procurei desculpas para não querer nada com ele. Pretextos incontáveis. Recentemente, ele me disse algo sobre isso, percebendo que eu fugia.

Abri uma porta, com o coração em sobressaltos, com medo do estranho... Depois, ele começou a me abraçar continuamente. Um abraço grande, acolhedor...E as conversas continuam, a tal ponto que deixamos de dormir para falar de coisas e coisas...

Gostei de ver nele uma nítida admiração por mim. Isso me dá um orgulho! Não é aquele orgulho besta, de ego cheio, é um orgulho de satisfação por ter coisas que agradam a alguém que eu também admiro e considero.

Tivemos bastante tempo prévio para conhecer nossos defeitos. Alguns, só o tempo revela; outros são respostas a contextos, casos isolados. A conclusão “provisória” é de que ele é uma pessoa boa e difícil. Um ser humano duro para perdoar ou ouvir uma explicação; uma pessoa que não daria a oportunidade a ninguém de apresentar sua defesa. Isso, sim, me assusta muito. Eu vejo, eu noto, eu percebo – então, estou um pouco a salvo das cegueiras da paixão.

Penso no quanto estou pondo na mesa nessa aposta. E se eu perder tudo? E como será estar sem nada? E se eu ganhar muito e, empolgada, fizer nova aposta e perder o que ganhei? E se eu perder o que eu nem tenho, penhorando tanto de mim?

Nos bons versos da música de Alceu Valença, Amor que vai:

“Amor maltrata, deseja
Amor comendo a maçã
Amor é pura incerteza
O que será amanhã?


terça-feira, 6 de julho de 2021

Além do limite



Cansaço é o que me define hoje, depois de quatrocentas mil atividades, sob um frio incomum e chuva o tempo inteiro – aula, reunião e banca de TCC num dia só, com todos os percalços técnicos que envolvem a situação. Por incrível que pareça, estou muito bem. Cansada e bem, a tal ponto que vim escrever, declinando de ir tomar um merecido café.

É que vi diferença neste cansaço de agora, um cansaço feliz, bastante diferente de quando estou cansada da vida ou cansada de alguma situação. Estou grata porque neste cansaço reencontrei amigos, desfiz receios, cumpri tarefas e cumpri honradamente a minha função de professora.

Acho que ando interiormente feliz por ter tomado decisões diferentes, porque se há uma verdade nas teorias psicanalíticas, é a de que tendemos à repetição. A gente repete porque não aprende com os erros; repete porque não completou o que deveria e, então, precisa recomeçar; repete por medo, porque atitudes velhas geram segurança por levarem aos mesmos resultados; repete porque é cômodo, embora vocalize, verbalize e declare que quer mudar.

Era uma mudança que eu queria e precisava, em sentido de decidir e pronto. O que não quero, não quero. Mas, antes, eu enrolava, a fim de que a decisão não tomada levasse a algum resultado sem que eu interferisse – tenho vergonha disso, mas ainda que localizei e reconheço. Pior é você ter defeitos e não admitir que os tem.

Conto a que tudo isso se refere: me apareceu um crush há uns meses. Sempre deixei o cara na sala de espera.

Recentemente, ele me chamou para ir ver o pôr-do-sol na lagoa, bem na tarde de sábado do dia dos namorados. Fui. Cumpridos todos os ritos (juro: máscara e zero contato físico), ele tocou as músicas mais lindas dos Beatles para mim – no canal dele, no YouTube, ele já havia me dedicado uma música – e eu me senti enaltecida. Adorei. Ficou nisso, um passeio e muita conversa boa. Deixei ele em casa e pedi água. Convidada a entrar, perdoei a bagunça pontual, em desordens de objetos e roupas aparentemente de quem acede ao varal às pressas.

Passados 15 dias, por conta de emprestar um objeto de informática, voltei à casa do crush, igualmente de forma rápida, em estilo bate-e-volta. A desordem, desta vez, parecia apontar para o acúmulo de negligências no decurso dos 15 dias referidos.

Não vi sujeira, mas vi bagunça, o que não significa que a sujeira não estivesse lá, no pó dos móveis ou na casa por varrer. Achei pavoroso. Odeio bagunça. A dele era reveladora: cartões de banco se misturavam a vistoso tubo de lubrificante íntimo na sala, junto com roupas, instrumentos musicais, carteira, fios e fiação para coisas de informática, copo, papéis e objetos de decoração...coisa que, ao descrever, me causa pavor.

Ele, posteriormente tocou no assunto. Assenti. Ele disse que tinha medo de arrumar e criar a sensação de finitude, tipo: acabei, e agora?

Além disso, nosso flerte nunca evoluiu. Havia a constância, mas nada de definição. Nada de beijos, só vontades declaradas - e nenhum obstáculo para concretizá-las, o que me deixou deveras em alerta (retardando desejos? procrastinador de gozos...um perigo!)

Desta conversa, vislumbrei um abismo psicológico nele. Disse que, caso ele quisesse resolver, descobrir quando isso começou o levaria a descobrir o porquê.

Tenho um amigo que se atrasa eternamente. Ele que sair de casa às 09 horas, a fim de chegar à reunião das 08, isto é, vive atrasado achando que o relógio vai andar para trás somente para satisfazer à vida dele.

Uma vez, esse amigo que vou chamar de H. quebrou o pé, num acidente de moto. Pediu que eu o levasse de carro à faculdade, que fica na BR 324, na entrada da cidade em que moramos. Ele disse: “Venha 17h”. Quando, dez minutos antes, eu disse estar indo, ele pediu para eu ir 17h30. Fui. Ele enrolou e saímos 18h25 para a aula das 18h30.

Ele me indicou caminho e, quando eu desviei de um, ele deu chiliques, porque sabia me dizer quantos segundos fechavam as sinaleiras de cada trecho do trânsito. Ali percebi a patologia, tipo a de quem conta tijolos, ladrilhos, botões, objetos em geral.

Foi um sufoco levar ele, em acessos de neurose total. Levei, mas não o trouxe. Entendi que o atraso crônico dele era patológico. Há muitas pessoas que não sabem que viver eternamente atrasado, a depender do contexto, é patológico.

As duas histórias se cruzam: por uma percepção maior do que a que descrevo aqui, sei que ambos os casos, o da bagunça e do atraso crônico, são sintomas.

Assim, desisti do crush, encaminhei um ‘não’ intersubjetivo e concluí que aquilo me cansaria. Muito diferente do cansaço bom de agora – cansaço que a gente experimenta no prazer de arrumar a casa; de pintar a parede da casa nova; de construir uma satisfação. E sinto muito pelos que se cansam da vida. Acontece, só não precisa ser todos os dias.


quarta-feira, 23 de junho de 2021

Vencer na vida

 



Sou filha única. Não vivi certas competições entre irmãos, mas testemunhei muitas e vivi as minhas próprias, ainda que eu não me dispusesse a isso.

Prevalecem competições que dizem respeito à disputa pelo amor do pais – por sinal, a mais inválida e estúpida, porque os pais têm preferências mesmo. Hoje em dia, pais e mães já podem assumir com palavras o desamor que, outrora era desconfiado mediante atitudes – e as disputas internas, entre irmãos, para provar quem é o melhor, quem está melhor, quem tem mais, quem ganha mais são regra. O exemplo bíblico de Caim e Abel é mera ilustração.

Um colega meu de curso de graduação assumiu que na mesa da ceia do Natal, a pauta era sempre essa, a de quem tinha o melhor emprego.

Meus ex-namorados viveram a mesma disputa, inclusive com a participação ativa do pai, que não tinha postura apassivadora. Ao contrário, exercia tirânica função comparativa, parcial, tendenciosa, injusta.

Não há a menor necessidade disso. Eles já se invejam, já concorrem, já disputam. Fora da família a gente já faz nossa parte: faz comparações, presume as relações, criticando como pode uma irmã ser tão bonita em detrimento da outra; ou de um irmão ser exemplar, bem-sucedido em relação a outro; de quem fez bom casamento e quem se deu mal. E toda família tem seus desníveis.

Acho tudo muito cruel. Já basta o mundo, a ensinar que todos somos concorrentes ou adversários – é uma desleitura malévola da irmandade, da fraternidade, dos princípios básicos da afabilidade. Talvez, por eu ser professora, vejo com concessão a concorrência por notas, porque joga os alunos para frente, para além, tem efeito construtivo. Enquanto crianças, pelo menos e até à adolescência. Já para adultos de universidade, fica uma coisa estranha e arrogante – decerto, acho bom que os alunos se cuidem para manter respaldo de bons estudantes.

Fora dessas circunstâncias, a gente sabe que vencer na vida é, às vezes, vencer à própria família, às toxicidades de convívios ruins...Se eu for, por exemplo, colocar isso em minha situação particular, vou concluir que para meu pai, não venci na vida, porque não quis continuar a ser militar. O critério de triunfo, para ele, é esse: ser militar, ter poder de polícia. Para mim, que pude prescindir e exercer uma escolha consciente, sou vencedora porque fiz à minha própria vontade – e venci por ter feito meus cursos, lido meus livros, feito minhas viagens; ter feito minha vontade e não me dobrar às determinações coletivas de ser mãe (eu nunca desejei); às tantas imposições...E terá quem ache o contrário. Na minha concepção, vencer a si mesmo, vencer medos e desafios interiores; pagar preços por uma escolha, é vencer na vida.

Mas, vencer é vencer quem? Quem é o adversário? Na acepção comum, vencer na vida é ter dinheiro, poder e fama; é ter carro e casa; emprego fixo bem remunerado; coisas similares entram neste rol...Ora, que desafio é maior do que o de não se prontificar a entrar neste embate? Que venham troféus, medalhas, prêmios, porque é preciso ter certas coisas para sobreviver com dignidade, mas o que define vencer na vida não são essas coisas externas que, aliás, são consequência. Se, entretanto, a unidade de medida de nossos valores, das nossas batalhas, forem contabilizados de maneira distorcida, seremos sempre desqualificados e desclassificados por quem não sabe o que está em disputa e qual o ganho que nos interessa. Vence na vida quem larga o casamento estável mas infeliz; quem abre mão de algum dinheiro em troca da paz; quem opta pelo menos e pelo menor, para priorizar ganhos secundários que lhe sejam mais importantes...São julgamentos particulares, questões particulares e específicas. Cada um que avalie melhor o que deseja para si.

Bem disseram Los Hermanos, em O vencedor:

"Eu que já não quero mais
Ser um vencedor
Levo a vida devagar
Pra não faltar amor..."

 


segunda-feira, 24 de maio de 2021

Lar e vidas

 


Conversávamos sobre organização e limpeza da casa; e do quanto, ainda que chateadas, gostávamos de deixar a pia limpa antes de dormir, quando a minha amiga disse, como quem discute tipos de xampú: “olha, eu nunca deixo pratos sujo na pia antes de dormir! Nunca! Lembro de que minha tia e eu tivemos que lavar os pratos na cozinha cheia de sangue, de manhã, com a Polícia Civil entrando e saindo, porque o marido de minha outra tia assassinou ela. Os pratos ficaram lá; e a gente tendo que lavar prato no meio do sangue, no outro dia. Depois disso, nunca mais deixo pratos sujos para o outro dia”.

É preciso entender que ela não banalizou o drama: a cabeça da então garota de 09 anos só conseguiu registrar isso como associação, isto é, a tragédia e a sujeira no lar.

O sangue derramado da mulher no lar, literalmente, foi metaforizado para driblar o trauma. É o que a mente pode fazer para se proteger. Dá muita piedade ver o que há sob a narrativa dela, que parece conto de Rubem Fonseca, mas não foi ficção.

São formas, também, de reduzir o impacto do trauma. A lembrança que fica é uma forma de desviar da causa maior, das dores, de um contexto extremamente pesado e violento. Imaginem isso para uma criança.

Aprendemos formas de falar, eufemismos para desviar de dramas. Para alguns, por exemplo, estupro é apenas quando há violência física e penetração. Por outro lado, vejo certa inadequação em expressões como abuso sexual e molestar sexualmente alguém. Acho pouco para o tamanho da violência. Todavia, numa sociedade de base patriarcal, como a nossa, em que sexo foi concebido como ‘obrigação matrimonial’ da mulher, não é de se estranhar.

Vamos ao segundo ato do mesmo drama: minha costureira é uma mulher ímpar. Primeiro, porque ela é rica, tem dinheiro e é dinheiro dela, do trabalho dela – tem um filho igualmente rico, que a cobre de mimos absurdos do mundo da ostentação, tipo uma televisão maior do que a parede. Ela continua sendo costureira porque quer e gosta.

Dentro dessa ‘imparidade’, acrescento que ela mora num condomínio luxuoso, ricamente decorado, mas vem para o ateliê simples (simples é sem luxos ou nada equivalente), que fica perto de minha casa. Geralmente, ela faz reparos e consertos, não necessariamente todo o processo de corte e costura de roupas.

Em conversas nossas de muito tempo descobri que o ateliê é um pretexto para não estar em casa, não somente em vida ociosa, mas à disposição de um marido que viu nela uma serviçal a quem pode requisitar pratos, dar ordens e controlar. Dito assim nem parece nada demais. Porém, ela (agora mais que antes) falou comigo sobre o quanto se sente anulada, menosprezada, ferida por ele. Queixou-se do desdém, da má vontade, da falta de mínimo carinho que se tem até por bichos domésticos e, se aqui poupo palavras é para encurtar a profusão de dores descritas e sofridas por ela.

É com o ateliê, desaprovado por ele, que ela consegue escapar parcialmente do duro convívio e do script de vida que seria ditado por ele.

Há pessoas que não têm a mínima ideia do que seja ser mulher, do que seja existir...há os que não sabem nada sobre a vida no lar; e há muitos e muitas que julgam que em determinada idade e tempo, as mulheres só aspiram à morte, não querem nada de seus casamentos, não sonham além das paredes do lar – e lar com dinheiro é tudo para muitos.

Admito que me solidarizo tristemente com ambas e com as muitas que aqui não citei – os meus relatos biográficos de coisas similares estão aí, em outros textos deste blog.

Onde terá sido fácil ser mulher?

 

segunda-feira, 17 de maio de 2021

José e outras paixões

 




Precisei atender à generosa convocação para uma publicação de artigo. Devido à exiguidade do prazo, achei que deveria me valer de algo já escrito e nunca publicado, a fim de poupar tempo e esforços.

Eis-me diante da criticidade que o tempo impõe: abri o velho artigo escrito. Gostei do que li, mas entendi que o romance que dava corpo à minha análise não trazia substrato para despertar interesses. Era um bom livro, de conhecido autor latino-americano, mas um tanto quanto restritivo, daquelas leituras para poucos, para públicos específicos, com tema desgastado, apesar de continuar na moda. Então, desisti e resolvi começar do zero.

Começar do zero, para mim, significou ler novamente um outro livro. Li com muito gosto. Adorei ler. Foi trabalhoso e consumiu tempo, mas me deu um extremo prazer, porque amo Rubem Fonseca.

O romance José, escrito por Rubem Fonseca em 2011, compõe-se de um exercício de memória articulado na ficcionalização da narrativa. Desta forma, há um pretenso relato biográfico, que mescla fatos históricos, pessoais e culturais, às multiplicidades de artimanhas da verossimilhança, traçando um instigante jogo no plano das fronteiras entre estas partes.

Olha, a quem acha que deve trabalhar com aquilo que gosta, eu só posso dizer: se você puder, faça isso mesmo. Nada melhor. Até o sacrifício de começar tudo de novo e o gasto de compor cada parte, cada análise, de sair catando referências, de formatar páginas, etc., tudo vale a pena.

Se fosse em um outro contexto, em que eu precisasse seguir cartilhas para conquistar uma vaga, um lugar, eu poderia ceder ao meu objetivo e ‘casar por interesse’, mas se posso me valer da espontaneidade de minhas escolhas, lá vou eu, recomeçando a escrita, recalculando a rota. Acho que eu me devia isso: escrever sobre o livro de Rubem Fonseca e, depois, escrever sobre A insustentável leveza do ser, que é o livro da minha vida, o livro primeiro dentre todos os livros, aquele que é paixão de leitura e deslumbramento narrativo. Mas, deste último, sempre começo a escrever e largo, porque sou instada a fazer coisas obrigatórias que me tiram da rota.

Devo dizer que o livro de Rubem Fonseca, José (2011), foi o livro mais bonito que eu li em uma década. Não sei traduzir minha impressão com outro adjetivo, porque todos seriam pouco. Um livro apaixonante, lindo, surpreendente para quem já leu muito as obras de Fonseca...Para mim, valeu o trabalhoso retorno à elaboração do artigo. Fica a minha dica: escreva sobre obras que tenham respaldo afetivo para você. Livro é boa companhia, precisa ser um livro amigo, amado.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Outros ritmos

 


Faz um tempo que deixei de escrever no blog com os ranços de minha profissão e de minha área principal de formação. Continuo com o mesmo encantamento – tão óbvio, se escrevo aqui, se vivo entre livros, se persigo narrativas alheias, com os ouvidos mais atentos deste planeta!

Mas, andei me cansando do meio, dos egos-pequeno-inflado de conhecidos e desconhecidos mais próximos, em seus alvoroços descuidados de poemas que não acabam na hora certa e se esticam cansativos, pondo a perder seu melhor aspecto. Vá você dizer a tais pessoas que Camões  era Camões e que a ele foi dada a licença para exercer sua competente criação de épico! É muito ego e muitas letras em jogo...

Às vezes passo pano, às vezes faço um silêncio decepcionado, porque sou instada a me manifestar e não dá para explicar certas coisas quando o interlocutor é míope para enxergar a si mesmo. Eu sei que humanamente somos assim, mas quem vive das palavras precisa fazer duros exercícios de olhares distanciados, críticas, adaptações, observações de imagem, tempo, sentido, sonoridade....

Lembrei de uns parentes ignorantes, estúpidos e toscos, que falavam acerca dos sotaques baianos, com menosprezo e pretensa superioridade análogos aos que testemunho em posturas e pareceres das pessoas anteriormente referidas, que escrevem longamente loucuras que rimam, mas querem ser louvadas e idolatradas. Para ambos os grupos, parece não haver a compreensão do que seja ritmo – sim, a fala, toda fala é musicada, é ritmo...todo mundo tem sotaque, que é a musicalidade da fala; as palavras têm ritmo, têm e são musicadas; e um criador de conteúdo literário que desconhece o ritmo, põe a perder as palavras. 

Agindo como professora, rogo a uma afirmação de Octavio Paz (2006, p.11):


O ritmo não só é o elemento mais antigo e permanente da linguagem, como ainda não é difícil que seja anterior à própria fala.

Em certo sentido, pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou, pelo menos, que todo ritmo implica ou prefigura uma linguagem. Assim, todas as expressões verbais são ritmos, sem exclusão das formas mais abstratas ou didáticas da prosa. (PAZ, 2006, p.11) .