Louquética

Incontinência verbal

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Por trás das biografias

 




Procurar saber da vida dos outros, em demasia é fofoca; esporádica e moderadamente, é curiosidade. Educadamente é interesse, como ocorre aos apaixonados: buscar informações, procurar conhecer hábitos, preferências, gostos, condutas – porque, afinal, quem quer pisar em campo minado?

Já citei aqui o quanto as pessoas são ávidas por biografias – as não-autorizadas são as mais procuradas, porque mostra o que o protagonista quis esconder. Sinalizam, entretanto, o outro lado: quem iria fazer uma péssima propaganda de si mesmo? Então, se no plano da literatura a gente se depara com a auto-ficção e com auto-referencialidade, já sabemos de antemão que um autor não tem a intenção de mentir, mas que pode inventar, sem se comprometer moralmente com isso, já que não se lembrará de todo o seu passado. Nem sempre, mesmo a vida sendo da gente, nós sabemos de tudo que nos ocorreu. Por exemplo: as famílias criam versões, guardam segredos...As pessoas traem e são traídas, escondem fatos...Então, quantos há que cresceram declarando que Fulano era seu pai e Beltrana, sua mãe...E aí, na morte dos supostos pais, descobrem que são adotivos; ou descobrem, após a morte de pais e parentes, as famílias paralelas; descobrem tramas, causas, acidentes, etc. E não podem dizer que suas vidas foram mentira. Viver, a gente vive de verdade – os enganos, equívocos, desconhecimentos, fazem com que a pessoa repita o que sabe sobre si, mas nem sempre sabe tudo. Em alguns casos, porque se é criança...ou porque captam só um lado da história.

Introduzi este assunto aqui porque meu namorado sofre por não saber tudo que queria a meu respeito. Sofre de um jeito que não consigo remediar, já que dialoga com questões internas dele; das inseguranças dele. Parece música de Caetano:”E eu querendo te apreender o total...”, ou seja, quer saber tudo, talvez para dominar melhor ou saciar a vontade de saber. E ficamos mal com isso, reciprocamente. Meus amigos estão de cabelo em pé, supresos e temerosos, porque acham que isso cresce. E sei que têm razão. Um deles me disse que sabia que o que o levou a se interessar por mim era meu perfil cultural e intelectual. Entretanto, eles dizem que isso é como gostar do canto do pássaro e querer enfurná-lo numa gaiola. E se surpreendem, perplexo, pelo fato de que ELE goste de meu perfil, reconheça quem sou e como sou, mas na hora de declarar a relação entre a gente, busca me neutralizar, me dominando em termos de não querer que eu fale, opine, decida, já que minha independência gera dores de insegurança nele.

Ora, eu que me sinto e insegura, porque vejo nele as qualidades que ele vê em mim, acrescentadas do inegável talento artístico dele, da bagagem cultural, da trajetória profissional, de ser um homem bonito e desejável...Mas, não posso converter as qualidades dele em vulnerabilidades para mim. Nem posso neutralizar e jogar uma cortina sobre ele, a fim de afastar olhares que notem que ele é como é. O fato é que a insegurança é irmã do ciúme e não pode ser alimentada. É preciso admitir: não temos domínio sobre tudo. É assim que se desenha uma relação tóxica, pouco saudável, cheia de controles, como se pudéssemos evitar vicissitudes ou controlar desejos e olhares desejantes. Quantos há, que passam pelo mesmo?

Aliada à admiração que ele tem por mim, vem uma onda de cobranças, como se eu fosse infalível e como se, a cada falha, eu disparasse uma lança contra as expectativas e idealizações dele. E ficamos assim, nesses dias: mudos, cada um no seu canto, remoendo o amanhã da relação, cheios de medo.