Louquética

Incontinência verbal

domingo, 4 de dezembro de 2022

Cuidado: Tóxico!

 


Preparamos mesas para estar com os amigos. Alguns amigos são circunstanciais; outros nem sabem que deixaram de ser amigos, porque subestimam o mal que nos fizeram, a dor que causaram, a ferida que deixaram em nós nos momentos de suas faltas. E tem aquelas faltas que são imperdoáveis, que jogam a gente no chão com violência.

Fiquei entristecida e decepcionada ao constatar que uma amiga de longa data se tornou um ser politicamente delirante, desses que pedem a intervenção de Extraterrestre, mas que precisam claramente de intervenção psiquiátrica. Se ela quer uma Ditadura, é porque na vida particular ela precisa de punição, castigo e torturas pelas culpas que provavelmente carrega.

Ela que foi uma companheira de perrengues e não apenas do pão-que-o-diabo-amassou, mas de toda a panificadora do inferno...Pois é: desvio terrível de caráter ela teve, pois foi pobre que venceu roubando cheques do patrão e descontando discretamente. Viveu fartura e escassez, viveu crises morais verdadeiras e todas as marés de causa e efeito decorrente delas. Está certo: era uma pessoa péssima e escrota, mas com o tempo ela se recuperou e pegou a rota certa. Reconheceu os erros, produziu reparações, reorientou as condutas e se refez. Porém, ter se rendido à ideologia de Extrema Direita é, para mim, o ápice da falta de noção. Ser humano altamente tóxico. Não que haja nada de errado no caminho político de quem quer que seja, o problema é a pauta. Não dá para ser ovelha e andar com os lobos, porque a distância entre predador e presa é condição de sobrevivência para o mais fraco. Todavia, é desafiador constatar a afinidade que uma pessoa pode ter com seu algoz, desafiando a lógica mínima da sobrevivência.

À parte esse caso, sigo sem tempo para dar conta de estar aqui escrevendo, ou no Facebook a passeio. Fazer outro curso superior consumiu meu tempo e minha paciência, mas a necessidade falou alto, para dar coerência ao meu currículo.

E que venham as férias – pelo jeito, com chuva e com a pandemia voltando forte, como tem sido agora. Força, guerreiros!


terça-feira, 25 de outubro de 2022

A outra e a mesma - clichês

 



Breve adendo da vida real: conto, com a mais sincera solidariedade à minha amiga, que o caso citado como exemplo, sobre a mulher que descobre a traição conjugal e põe a culpa na outra mulher, considerada rival, acabou de acontecer mais uma vez.

Minha amiga, assim como eu, parte da desconfiança de que se o cara é casado, está tendo um caso com outra e depois de um tempo começa a deixar pistas, é porque deseja ser descoberto, ainda que seja este um processo inconsciente.

Há um barato na traição, que eu acho que não está no constante risco e, sim, na habilidade em escapar de flagrantes e revelações. É muito excitante dissimular, escapar, escamotear, cometer ‘crimes perfeitos’ no matrimônio. Mas, quando o cuidado é deixado de lado, significa um ato falho.

Então, nós achávamos que ele queria terminar o casamento, que queria provocar ciúmes, agitar os tédios...Após a mulher traída ter ido atrás da minha amiga – tentou pessoalmente, mas errou o alvo por pouco saber sobre ela e onde encontra-la;  e o fez por meio de rede social – dias depois, deixou por escrito a declaração de perdão ao marido, depreciou à Outra (e usou clichês pouco convincentes, se auto-elogiou também), concluímos o oposto: ele colocou a mulher dele para encerrar o relacionamento com a amante (minha amiga, Lídia). E deu certo: na outra ponta também estava uma mulher pouco interessada na manutenção entediante de um caso com um covarde. Sendo ainda mais sincera, acho que há uma extrema perda de glamour, de excitação, quando a pessoa se reconhece num triângulo comum e previsível...perde-se sabe-se lá mais o quê, porque não vi lágrimas nem lamentações da parte de  minha amiga. Só vi curiosidade, do tipo 'como isso acontece?'; 'para quê?'. Talvez porque não houvesse valorização do homem, nem disputa por parte da Outra...

Todavia, a esposa estava diante de uma rival; a amante só a viu a outra como outra mulher. Se ele se deu bem? Provavelmente, sim. Já esposa traída, alcançou a paz temporária, até que outra diferente venha e ela repita o ciclo.


Na balança

 


Eu acredito em crime perfeito porque há crime perfeito, insolúvel, jamais descoberto. Isso depende de astúcia. Estou falando dos premeditados, porque partem de planejamento prévio, estudos, astúcia. Ao tratar dessa forma, provavelmente alguém pensará que me refiro a assassinatos e roubos; outros pensarão que cometi algum (não, nenhum, pode sossegar). Decerto, trato desses, porque quantos crimes cometemos acidentalmente? Sejam os que nem sabemos ser crime – e um escroto sempre argumentará que a ninguém é dado o direito de desconhecer à Lei. E eu vos direi: Caro cara pálida, as leis variam com o tempo, a cultura e os costumes. Aqui no Brasil, não temos acesso pleno aos códigos legais, sequer à Constituição. Não temos dinheiro nem instrução. Não temos educação para isso. Meta seu argumento na mochila! Logo, da mesma forma que há Leis que o próprio Estado não cumpre (ou o salário mínimo provê o que está assegurado em Lei? Ou você já leu “É dever do Estado...”blábláblá, sem que o Estado dê o que seria sua obrigação?)?

Vamos piorar um pouquinho? Há uma piada que fala o seguinte: “Dizem que quebrar um espelho dá sete anos de má sorte. E se você tiver um bom advogado, a pena pode cair para dois anos.” Boa defesa é boa defesa. Mas, voltemos aos crimes perfeitos. Citei-os por acompanhar nosso cotidiano brasileiro, não apenas da política, mas os de nossos mais próximos. Quem não conhece um infrator? É que a gente perdoa muitos, conforme a classe. O orgulho que as pessoas expressam ao falar do bisavô, rico fazendeiro detentor de 500 escravos; ou das origens italiana e alemã, dos que depois prosperaram no comércio, no agronegócio brasileiro, esses orgulhos de terem vindo de brancos; e não dos índios mortos por outros brancos (que agora prosseguem matando índios, tomando a casa, a terra, destruindo o ambiente natural deles), sempre tratando como intrusos quem já estava aqui antes da vinda desses outros que, juntos, formam o ‘nós’ que somos hoje; isso sempre me chocou. A sorte é que isso tudo é permitido. Não há vergonha de escravizar um outro ser humano: há orgulho por isso. Há saudade. Preconceito racial é expressão da saudade de ter escravo; de submeter um outro ser humano à inferiorização social.

Os outros crimes, ‘são tantas vezes gestos naturais’. Eu não vejo nada de errado nisso, não. A pessoa tem seu preconceito, tem seu desejo de humilhar, de matar, de destruir, logo está agindo de acordo com a sua vontade e seus interesses. Se fosse errado, haveria punição real. Mas, com uma nota de retratação, se muito, tudo se resolve. Os errados são os que se calam, aceitam, nada fazem...a parte interessada não tem o menor interesse: ao contrário, quem nunca viu pobre defendendo pauta de rico? Quem nunca viu o dono da mercearia do bairro afinar seu pensamento com o do grande empresário do ramo de alimentação, produção e exportação? Quem nunca viu a empregada doméstica da casa do médico desdenhar da diarista ou da empregada doméstica da casa do professor? E a mulher, quando traída pelo marido, que responsabiliza a outra pela traição (o coitado do marido poderia se defender de uma mulher ‘oferecida’? ele poderia evitar, fechar o zíper ou dizer não?); então, não somente há crimes perfeitos, insolúveis, bem planejados, em escala macro; como os há em dimensões menores, repetitivos, previsíveis, mas perdoados pelas próprias partes atingidas. O problema é a qualidade de nosso júri.


segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Ansiedade

 


De alguma forma a gente julga que raciocinar e racionalizar sobre as coisas nos ajuda a sair das situações-problema. Sim, é verdade. Mas, há coisas que a lógica não dá conta, porque a gente sabe o que seria o certo, o lógico, o adequado, mas segue na direção oposta.

Ficamos, e esse plural se refere a mim e a uma colega de trabalho, desesperadas com os relatos de três alunos (um homem, duas mulheres), jovens mal entrados nos 20 anos, com crises de ansiedade.

Ansiedade todo mundo tem e é bem necessária. É até excitante ficar contando as horas para que algo aconteça, para que aquela pessoa apareça, ou aquele resultado seja publicado, ou que cheguemos logo a um lugar ou que uma data chegue...Normal e bom, ainda que cause alterações na gente. O problema está quando todas essas sensações se convertem num mal-estar, num sentimento que evolui para sintomas físicos de sufocamento, coração acelerado, sensação de desmaio, de escurecimento da vista, de tontura ou de coisas que sequer a pessoa sabe dizer do que se trata, exceto de que pensa que vai morrer – e nessas horas, as mãos ficam geladas, as extremidades podem suar frio.

Aí, sim, se tem um quadro de ansiedade patológica.

O aluno, totalmente saudável, socialmente ajustado, excelente em popularidade, notas, desempenho, relacionamentos, queixou-se, em princípio, de sintomas de calor, sufocamento e mal-estar. E demorou até notar que era mais do que sintomas.

As moças já tinham um parecer médico após descreverem os mesmos sintomas.

De episódios isolados, passa-se a episódios recorrentes, precipitados pelo medo de sentir tudo de novo.

Vale racionalizar? Sim. É a melhor defesa. Saber que aquilo vai passar, porque já foi experimentado antes e passou: fundamental. 

Se estiver tonto, parar e sentar, respirando com controle, de modo a evitar a hiperventilação, ou seja, evitar ficar ofegante ou respirara celeradamente...E se a cabeça acelera, andar é a melhor saída: pisotear a ansiedade gastando energia. Naturalmente, tratamento psicanalítico é o que vai resolver posteriormente.

A ansiedade é um grito do psiquismo para que algo seja solucionado. Cada ‘algo’ é particular. Normalmente, a gente não tem noção clara da causa. Mas, até que se possa resolver, vale o anti-ansiolítico natural que é o chá ou um fitoterápico adequado, vale a higiene mental e um pouco de solidão para se ter repouso, vale o que lhe traga conforto (homeopatia, aromaterapia, o que for). E novamente, a racionalidade: pensar em QUANDO isso começou, a fim de descobrir POR QUÊ.

Sinto que meus alunos têm vergonha, como se fossem ser julgados ou inferiorizados. Imagine, nosso mundo dá motivos constantes para sofrimentos psíquicos e quem tem coração não tripudia das dores do existir. A razão não vai lhe poupar de sofrer, mas vai ajudar a encontrar saídas para os sofrimentos.


sábado, 24 de setembro de 2022

Em que espelho?

 


Há um conhecido verso de Cecília Meireles, repetido à exaustão – e válido para muitos tempos – que é “Em que espelho ficou perdida a minha face?”. Obviamente, se refere ao processo de envelhecimento. Não reclamamos de termos sido crianças quando já somos adolescentes, porque é parte do crescimento; estranhamos ser adultos quando deixamos de ser adolescentes, mas, tudo bem, também é parte do crescimento. Todavia, os primeiros sinais da velhice derrubam egos – que, para alguns é uma calvície, um cabelo branco, um pouco mais das gorduras advindas dos hormônios em mudança, uma girada no cronômetro etário e lá vem o fim do mundo. Crueldade da natureza, os primeiros sinais de velhice aparecem a partir dos 25 anos – aquele colágeno que nos dava um rosto bem contornado, um sorriso de bochechas brilhantes, uma pele sem opacidade e uma barriga comportada, cede lugar e aos poucos vai nos deixando...até os neurônios e os óvulos vão dando suaves adeuses.

Meu ex-namorado nunca me permitiu saber a idade dele. Penso que era uns 56 ou 58 anos, bem escondidos num corpo sem gorduras, musculoso, ao longo da excelente altura e dos raríssimos cabelos brancos.

Como tem ocorrido a muitas pessoas, ele coloca fotos de perfil no whatsApp e nas redes sociais de quando ele tinha vinte e poucos anos: deve ter muitas saudades de si mesmo.

Uso filtros em minhas fotos, mas não dos que anacronicamente retira a verdade de minha idade: queria apenas ter a pele bonita, sem os poros abertos que me acompanharam a vida inteira.

O que a idade me deu de bom: cabelos. Nunca tive cabelos grandes como agora. Também meus dentes estão mais bonitos, porque passei pelo ortodentista sob uma disciplina que eu não teria antes (nem tempo, nem dinheiro para tal); entrei na academia para nunca mais sair (desde 2013, nunca larguei – na pandemia, me exercitava em casa); a vida toda eu não fui sedentária, jogava handeball aos 13; fazia musculação desde os 22, mas largava; mudaram as formas de meu corpo e talvez isso tenha significado uma resposta ou uma conversa com a minha idade. Não sou infeliz por estar mais velha, provavelmente porque não tive senão muitas angústias ao longo da vida. Ser feliz foi algo muito de depois dos meus 35 anos – e não é felicidade idealizada de fim de novela, não. Aí seria preciso ser alienada ou viver de positividade tóxica o tempo inteiro, negando a realidade e achando que vou cocriar verdades adequadas à minha satisfação. Felicidade é indescritível, não é ‘cesto de alegrias de quintal’ e, aliás, é de graça e sem causa declarada.

Eu me sentia feia aos 18 anos. Eu era boba aos 24 anos. Somente aos 33 eu amei pela primeira vez na vida. Então, não tenho motivos para ser saudosista com a juventude.

O que vem antes do citado verso de Cecília Meireles é “Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil”.

E as pessoas acham que nunca mudarão, exceto na aparência. Também achei que nunca mudaria. Por conseguinte, “Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil” e aqui não me refiro a aspectos físicos. É que eu achava que não suportaria estar completamente sozinha, no plano amoroso. Eu achava que estava amando pela segunda vez e que acataria qualquer condição para estar com meu par. Mas, não foi assim: coloquei minha viola no saco e nunca mais voltei à casa dele, nem para ele, nem sequer procurei conversa. Logo eu, que adoro conversar, estranhei não gastar palavras para resolver com diálogo as questões. Foi um basta e um ‘foda-se’ que eu jamais me imaginei capaz de dar.

Mudei em tanta coisa, inclusive, na postura ao sair sozinha na noite: hoje eu me vejo como uma mulher adulta e independente, que não precisa ter vergonha de estar só, dançando, curtindo, sem querer beber álcool, sem hesitações. Mas, eu não vi isso acontecer, só notei após o percurso estar concluído.

Já falei aqui algumas vezes o que eu penso sobre algumas palavras da moda, tipo autoestima, por exemplo. Fundamental é você saber que não precisa apertar para caber, nem tem que contrariar a si mesmo para favorecer a paz com o outro. Este foi o ponto de meu término de namoro: seria necessário sempre fazer a vontade dele; ter cuidado com a forma como ele entendia as coisas; aceitar que não haveria diálogo, porque as convicções dele, o parecer, o julgamento que ele fazia, eram irrevogáveis. Era muito poder numa mão só. Era muito autocracia, para não dizer autoritarismo.

Dizem que há uma regra nos jogos, nas brincadeiras em par: quem ganha pode ganhar a maior parte das vezes, mas não pode ganhar todas as vezes (sempre), porque se não, o outro se retira do jogo, larga a brincadeira. Chamam isso de 60-40, ou seja,  alguém ganha sessenta por cento das vezes; o outro, quarenta. Claro, você vai jogar para perder? Zero ganhos, zero satisfação? Quem quer? Isso significa que é preciso dar algo, proporcionar algum ganho secundário para manter o outro no jogo. Não vi nada em meu favor, caí fora, W.O.

Sem contrapartida não há partida.

Na foto desta postagem sou eu, na idade atual.


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O amor bateu à porta

 


Pensamos muito nos amores impossíveis, mas o que dizermos dos amores viáveis? Talvez, o que esteja ao nosso alcance nos pareça, previamente, entediante. Para outras pessoas, não: é conveniente. A pessoa certa. A pessoa certa nem sempre é a pessoa amada, mas a soma das conveniências – em alguns casos, é o interesse puro; em outros, é o fim da busca pela ‘sorte de um amor tranquilo’. Demorei a entender isso no meu ex, o Poeta. Não entendi quando ele me disse que casar era como ter uma religião: alguns precisam. Demorei a ver que o Poeta casou, na primeira vez, aos 17 anos. Meu Deus do Céu: como pode um garoto de 17 anos se casar? E casou uma segunda vez, já aos 26 anos...No fim deste casamento, cinco dias após completar 33 anos, ele me conheceu ao vivo (depois de me mandar um convite pelo Facebook, respondido três meses depois), numa noite de dezembro. Então, quando a gente se separou, depois do começo da pandemia – é, a pandemia é um marco histórico e um divisor de águas –, ele não queria, de fato, se separar e eu não entendia aquilo, já que ele claramente estava num outro relacionamento. Sofri um bocado. Passou o tempo, ele passou em importância afetiva para mim – importância histórica ele sempre terá. Foi um homem com quem amadureci sexualmente, com quem muito conversei, ri, aprendi, ensinei, me consolei de coisas que ele jamais soube que aconteceram e, por fim, vez por outra a gente se viu e também deixou de ser ver. Essas pequenas distâncias modificaram muito o modo como ele me tratava, porque trouxe a admiração, inclusive admiração física por mim, que antes era básica, como se eu fizesse parte da decoração da sala...E não sei o que houve para ele manifestar um apreço diferente. Talvez seja apenas aquela vaidade de perceber que há outros conhecidos dele declarada e assumidamente querendo me namorar (escondi o namoro com o Homem de Capricórnio), mas, enfim, como novela mexicana, ele veio à minha rua, já bem tarde, sob a chuva de ontem à noite, depois de não ser atendido ao telefone. Temendo bater à minha porta àquela hora e ser rechaçado por mim e por meus parentes vizinhos, insistiu no telefone e eu o atendi, saindo de carro ao encontro dele (ele, em frente à garagem, praticamente), para manter a privacidade. Ele não me disse nada que fizesse sentido. Alisou meus cabelos, me beijou o rosto enquanto eu dirigia sem entender do que se tratava.

Ele inventou que estava passando perto de minha casa, porque tinha ido à inauguração de uma casa de poker secretamente localizada a 200 metros de minha casa...ele já sem palavras, sem congruência, sem nexo argumentativo. Depois de um silêncio de saudades cúmplices, ele disse que queria dormir comigo, na minha casa, na minha cama. Claro, não atendi à ousadia descabida, mas ficamos em intimidades silenciosas até o decurso de um temporal interno em nós e o externo, na chuva incessante. Muito tempo!

Levei-o de volta à casa dele – foi muito diferente esse estar perto. Quando cheguei em casa, vi que ele avisou que me bloquearia no WhatsApp, por motivos de segurança, porque ele está casado com outra, mas que não queria deixar de falar comigo...Por mim, sem problemas. Eu não poderia responder a isso, já que estava bloqueada.

Concluí que, talvez, ele tivesse vindo atrás de mim apenas para se despedir de vez, como quem se reservasse um último desejo, antes de sepultar verdadeiramente um sentimento. Gente mais acessível, mais descomplicada, ele teria, se quisesse. E posso dizer que até ao pronunciar meu nome, ele não o fez da mesma forma. Na minha cabeça, era questão de despedida, de última vez, de nunca mais.

De manhã, lá estava eu desbloqueada. Achei bonita essa declaração indireta de amor, porque eu entendi ali um amor ágape, outra linguagem, outra coisa. Perdoei, por dentro, o ser humano confuso que experimentava saudades de mim, que reconhecia a alegria que tínhamos quando perto; entendi que eu não teria a dar a ele algo que ele queria muito. Não era questão idiota de bloquear e de desbloquear, era um homem em busca da paz do amor tranquilo, da segurança de um lar e de um esteio, que digladiava com os outros prazeres que eu lhe outorgava e que o tempo estava tirando dele. Acho que ele passou a entender que não poderia combinar duas pessoas com duas coisas que lhe eram vitais, mas como prescindir delas?

Eu não disse nada sobe nada, em momento algum. “Esse silêncio todo me atordoa/atordoado, eu permaneço atento” – digo eu, citando Chico Buarque.

Amar não é tudo. Pobres de nós, que achamos que um amor correspondido é garantia de felicidade. Não, não é. Até dói mais quando a pessoa que a gente ama também nos ama, mas há uma série de coisas em que a gente não se ajusta; e quando a pessoa com quem a gente se ajusta em uma série de coisas não é alvo de nossos sentimentos? sei que o bicho que mordeu o Poeta vive me mordendo.

O Homem de Capricórnio instaurou uma crise em mim e eu edifiquei uma boa distância emocional. Não deixei de gostar dele, só achei que precisava ficar sozinha, que a paz é estar sozinha e sair do campo de guerras que eu já não suporto, porque tenho poucas armas contra a infantilidade e contra defeitos inegociáveis - falo de vinganças que ele sempre me faz; de interromper minha fala; de nem ouvir argumentos; de desejar que eu esteja à disposição dele e prescinda de minha vida particular, etc.

Disse Drummond que "O amor bate na porta/o amor bate na aorta/fui abrir e me constipei." Pois, me descreveu até na crise de rinite.

Será que existe amor equilibrado? Ou será que tudo é negociação, jogo de perdão, ajuste infinito? Saio dos amores sem respostas, entro com muitas perguntas...


segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Colapso cognitivo e Efeito Dunning -Kruger

 



Hoje li uma pequena manchete, sem adentar ao conteúdo, que me deixou bastante pensativa. Era algo assim: o conservador quer conservar o quê? E lembrei de um ser humano que achava que ser conservador era regredir às leis morais do tempo de nossos avós. Acho engraçado, só isso.

Outra grande descoberta, daquelas que não guardam qualquer novidade, foi que me chamou a atenção ter ouvido e lido sobre o efeito Dunning-Krugger, de que eu jamais tinha ouvido falar antes. Foi citado numa palestra de Fabiano Moulin (se minha memória estiver certa), para a Casa do Saber, e refere-se à falsa sensação de sabedoria, à confiança cognitiva que a gente pode traduzir por arrogância e que eu ouso chamar de “seachismo”, seja porque quero dizer que o termo se reporta a quem “se acha”, seja porque, na minha cabeça, faz inferência a ‘sea’, mar, em inglês – e, portanto, a pessoa se encontra num mar de sofismas; seja porque até parece com ‘search’ do verbo pesquisar, em inglês. Mas, vamos trocar em miúdos, objetivamente: o efeito Dunning-Kruegger recebe este nome a partir dos pesquisadores que têm os sobrenomes citados; e trata do sujeito que leu qualquer coisa e acredita que esgotou o tema e sabe suficientemente o que mais ninguém sabe como ele.

Com muita sorte, ele perceberá a própria ignorância e a parcialidade de seu saber. A partir daí, consciente das próprias limitações, irá buscar saber verdadeiramente. Acontece, entretanto, que vejo as pessoas assistirem vídeos no Youtube e consultarem a Wikipedia, a fim de dominarem assuntos. A estratégia se apoia, ainda, na memorização de jargões e termos técnicos, com o intuito de passar credibilidade. Aí, eu penso que não somente essas pessoas medianamente formadas se valem disso, mas que um número indistinto de profissionais seguem pelos mesmos caminhos: o mecânico que diz que há uma ruptura na rebimboca da parafuseta, que implica na desaceleração da ventoinha e, portanto, o serviço de troca do adesivo do óleo vai te custar R$ 900,00; àquele seu coach quântico, ou o orientador tethahealing quântico; ou a cartomante quântica e, mesmo, o bispo presbiteriano quântico da neurociência dos santos dos últimos dias vão jogar um monte de palavras que causem a impressão de sabedoria a si e lhe esfregue à cara a sua ignorância na causa. Sabe com o que isso se parece? Parece aquele povo que decora versículo de bíblia e os encaixa deturpados, adaptados aos interesses próprios; parece aquele povo que decora número de leis, artigos e portarias e lança no meio das conversas para parecer que sabem tudo.

Onde a Filosofia não erra, é ao demonstrar que é preciso estudar e ler muito para saber um pouco. Feliz de quem sabe que só sabe um pouco. Por outro lado, coitado dos que pensam que sabem bem pouco, apenas porque estão diante de ‘sabidos’ que são apenas espertos. Mas, voltemos ao básico: a pessoa se dizia conservadora e não sabia o que era para conservar...é cada uma! 


terça-feira, 19 de julho de 2022

Aqui estamos nós...

 


Blogs são espaços sobreviventes em meio a uma era cada vez mais indisposta à leitura. Foi-se o tempo em que blog era um diário que movimentava a curiosidade alheia e servia para desembaraçar cérebros cheios de ideias e dúvidas. Quanto mais me ocupo, menos tempo sobra para a escrita.

Por aqui, como posso, procuro manter distância e anonimato parcial, porque continuo achando estranho que a gente possa priorizar censuras internas para evitar julgamentos dos conhecidos; ou se dar à tarefa de implorar seguidores.  Acho tudo isso chato e desnecessário e nunca usaria tal régua para medir sucessos. Estou aqui há 12 anos. Sobrevivendo há mais de uma década, porque não busco patrocinadores nem retornos financeiros ou coisas materializáveis.

Acho minha vida engraçada, até quando ela está trágica e, por isso, dou conselhos que ninguém me pede – porque quem não acatar, basta não seguir; quem não gostar, basta não ler. E eu adoro esse desprendimento.

Falando nestes 12 anos de blog, vos digo que o mundo mudou, que o século verdadeiramente só está começando agora – não me refiro a datas, logicamente, mas ao tempo em sua categoria abstrata. Uma pandemia é muita coisa. Uma legião clamando a volta da ditadura, é muita coisa. Todo o retrocesso no conhecimento é muita coisa e, se algo nesse embaraço me surpreendeu, foi a completa ausência de sentido nos termos recorrentemente citados. Por que, ao reclamarmos do ensino escolar, o que houve com as aulas de História, Geografia, Física, Português, Ciências, Biologia, Química? E não falo exclusivamente das deficiências da escola pública: falo do geral, das pessoas com formação e repertório de vivências.

Onde ficou perdida a noção básica entre Capitalismo e Comunismo? De onde saiu a ideia de que o Brasil já foi Comunista, ou que grandes detentores de meios de produção, gente de família quatrocentona, agroexportadores e redes de televisão mundialmente estabelecidas poderiam ser comunistas? De onde saiu a ideia de que o Capitalismo beneficia o pobre e prega o bem comum? Quando a Terra se tornou plana? Como se pode propor intervenção militar no próprio país, mas se defender a Democracia para a Venezuela? Quando foi que a Ciência se tornou menos relevante do que as indicações mendicamentosas dadas por um presidente? Desde quando alguém pode ser considerado conservador porque prega contra a liberdade sexual dos outros? E desde quando se pode ser cristão desejando o extremo mal aos desafetos e fazendo-se apologia à violência, como prediz a BBB (Bancada do Boi, da Bala e da Bíblia) e, aliás, como se pode aliar políticos do agronegócio, políticos da indústria de armas e políticos que defendem valores cristãos? Desde que o país resolveu acreditar nisso. Daí que, para mim, o novo século só começa agora: com suas contradições, misérias e múltiplas faces. Estou assustada com o tempo, com as pessoas, com o nonsense descabido. E com a identificação que as pessoas têm com tudo isso. Não há o que reclamar: são escolhas de uma maioria.

Conservadores não são conservadores: são apenas retrógrados ou reacionários. Têm saudades do passado, assim como todo racista tem saudades da escravidão, porque afinal era a escravidão alheia. Mas, há um sentido de masoquismo coletivo aí, porque o Brasil é pobre. A maioria é pobre. Não se tem classe alta com tanto número de gente que possa representar maioria quantitativa: é o povo que vota conforme a cabeça do algoz; que se identifica com o patrão e que acha que mais vale defender uma pauta moralista do que um prato de comida que chegue a quem não tem.

 


sexta-feira, 24 de junho de 2022

Ciúme Retroativo

 



Meu namorado tem me atormentado com perguntas e referências descabidas sobre minha iniciação sexual. Mais de uma vez me perguntou quando eu deixei de ser virgem. Respondi a verdade: aos 19 anos – ou seja, há bem mais de duas décadas. Na hora do sexo, vez por outra, ele tem me perguntado como seria se ele houvesse me encontrado quando eu tinha 20 anos. Também respondo a verdade: seria ruim, porque eu era babaca.

E era mesmo: uma moça insegura, que não sabia o que era orgasmo, que teve uma primeira vez ruim e todas as relações sexuais até os 27 anos sem o menor prazer, sem a menor graça, sempre como um dever a cumprir junto a quem eu namorava. Tinha outros prazeres, é certo, mas nada genital.

Aí foi o tempo de encontrar um amor que não assumi, com L.; e, depois, aos 33, o Ex-Grande Amor da minha vida. E, enfim, por conta de pressões deste tipo, declarei para os devidos fins que foi com o poeta que eu atingi minha maturidade sexual e que, por isso, tanto fazia minhas experiências pregressas, que não era coisa quantificável.

Sexualmente, sou feliz com ele (ele, o homem de agora, o Rei de Espadas). Combinamos em muitas coisas, mas, no fundo, eu que chamo de namorado, mas não temos essa assunção, apesar de atendermos à cenografia social de ser casal e aparecer juntos.

Não mudo meu status de Facebook nunca. Não acho justo que o status de um relacionamento dependa apenas do homem, que ele determine a natureza da relação, contudo sei que é a prática comum, é o patriarcalismo que nos guia.

Mudamos muito, em nossos altos e baixos, na ambivalência do relacionamento. Na hora das reivindicações dele, vem a assunção de que não dá para dizer que não sejamos nada um do outro; na hora de alguma questão minha, há a insinuação de que eu quero que ele cumpra papéis.

Assumidamente, sou uma pessoa de bom orgulho, em termos de ter vergonha na cara. Eu tenho vergonha na cara. Não retorno aonde não sou bem recebida; não mantenho contato com quem não gosta de mim, exceto se forças maiores – como trabalho, burocracias e acasos sociais e formais – impuserem. Portanto, não me humilharia jamais para estar com quem não me quer, não gostaria que alguém forçasse uma barra para estar comigo e demonstrações de apreço que não sejam espontâneas, a mim não interessam.

Sofro, choro e me desespero como qualquer outra pessoa, mas a vergonha na cara me impede de muitas coisas. Forçar a barra, seja forçando coincidências ou se aproveitando de situações de vulnerabilidade da pessoa (fragilidades, dores, lutos, carências financeiras, afetivas, etc) é um negócio tão artificial e, ao mesmo, tempo é uma desonestidade que retira todo o sabor do desejo realizado, porque a gente sabe que a pessoa não está com a gente por escolha, por querer naturalmente. Então, entendo quem não quer se comprometer porque não quer pagar o preço da responsabilidade, quer receber sem ter que dar, mas esquece de que poderá obter apenas o que tem a dar.

Acho que, em situações assim, não há vítimas nem inocentes: a gente vê e a gente escolhe compactuar ou não com tudo.

Vejo, então, no meu namorado atual, o desenho de um ciúme retroativo absurdo, incabível. Todo mundo tem passado – eu, sem o meu, não teria história, não seria quem sou.


Escolhas, riscos e saltos

 

A maternidade nunca foi uma dúvida para mim: desde os 13 anos eu já sabia, de forma consolidada, que não queria ser mãe. Desde antes, na infância, eu sabia, mas atravessei a vida esperando ver se algo em mim mudaria, se não era questão de fase. Nunca foi. Era convicção.

Há um lado de nossa identidade que é o que é e nada mudará, exceto, claro, por coerção, ameaça, força externa. É similar a querer forçar um gay a deixar de sê-lo: vai mudar o comportamento, mas não a condição – Logo, a perseguição social; o terrorismo moral, as ameaças de castigos, a exclusão, a violência física e psíquica não conseguirão senão o efeito repressor, contenedor, mas não a conversão.

Fico feliz por ser quem eu sou, apesar de todas as repressões.

Todo dia, cada um de nós luta (como eu luto!) para ter a paz de fazer imperar escolhas minhas para a minha própria vida. Esses que nos cerceiam em nossas escolhas de vida ou configuração de nossa personalidade nem sempre são elementos sociais externos. Podem ser desde nossos pais até os amigos mais próximos, que gostariam que fôssemos como eles gostariam, que pensássemos como eles pensam, que agíssemos como eles acham certo, que correspondêssemos a modelos de seus respectivos agrados.

É a lição mais tola e mais difícil da existência: saber que a sua vida é sua. Sua! Isso pressupõe, também, na hora das escolhas, observar quais dentre elas são definitivas. Não caia no golpe do ‘esta é a escolha mais importante da sua vida!”. Importante é qualquer escolha cujas consequências sejam impactantes e irreversíveis – eis um critério: o que é ou não irreversível, porque um matrimônio pode ser desfeito, mas uma paternidade e uma maternidade, não; Se você quiser mudar de profissão; de país; de parceiro amoroso, tudo pode dar certo e tudo pode dar errado. E se der errado, tem como voltar atrás. Mas, se você mudar de sexo; se você fizer uma intervenção cirúrgica; se você doar um órgão, se você tiver um filho, é decisão de vida, para a vida toda. Por conta disso, é sempre bom examinar se suas decisões são suas ou se são apenas escolhas pautadas em certo atendimento de expectativas externas, porque eu sei o quanto é difícil remar contra a maré, enfrentar olhares repressores; encarar gente disposta a confrontar escolhas íntimas que são de foro particular.

Nunca devemos esquecer isso: o que eu posso mudar, reverter, alterar ou alternar, se minhas escolhas derem errado? E se eu fizer conforme me indicam, que ganhos eu terei? E o EU, se a vida é MINHA, é a primeira pessoa de qualquer verbo.


quinta-feira, 2 de junho de 2022

Reprogramar rotas

 




Ainda não saí da pandemia, apesar do afrouxamento das medidas sanitárias. Não me sinto segura me metendo em aglomerações, dando beijos no rosto de gente conhecida, pulando e vibrando em eventos sociais ou em lojas e estabelecimentos que aboliram o álcool. As amigas já se mobilizam atrás de viagens em grupo pelo Brasil. Desconverso. Quero ver o que pensarei em setembro...Mas, fora isso, a vida segue o fluxo.

Meu atual affair, para quem faço memes usando obras de arte como Template, reclama que eu deveria estar escrevendo e publicando meus livros. Este é um ponto a que sempre volto porque as pessoas, de fato, confundem os fluxos. Eu não acho que a autoria seja uma vaidade. Para mim, é responsabilidade. 

Se eu exerço a posição de crítico literário, investigo e aponto acertos e erros. Da mesma forma como o faço em minha condição de leitora, a exigência para comigo mesma é bem maior. Logo, eu acho que escrever é para quem se garante. Portanto, esse ‘se garantir’ é saber o que se está fazendo, ultrapassar a marca da mediocridade e apresentar um livro como se fosse um pedaço de si mesmo, no sentido de ter noção de que reunir palavras não é fazer literatura.

Larguei mesmo meu quase atual psicanalista por conta de coisas já citadas no post anterior (veio ele exaltar o fato de que leu livros de Augusto Cury; citou um título de outra autoria de teor semelhante no ramo da autoajuda duvidosa, numa clara demonstração de falta de critério de leituras, me fazendo duvidar da real intimidade dele com Freud e Lacan, não obstante viver metendo religião e Jesus em ramos totalmente alheios à lógica cristã de culpas e de delírios salvacionistas). Paro e penso: há algo de errado no mundo; e esse algo deve ser eu, por que não é possível uma coisa dessas!

Abro esse parêntese para frisar minha insatisfação com a postura dele, a citar a condição de capelão, o cargo na Igreja; a dar claras provas de personalidade sedutora, ocupada em exibir pretensas qualidades e exaltar à própria presumida Inteligência... E as perguntas ‘ de bolso’, que parecem coisa de Youtuber a catar likes. E eu, sem saber como manobrar o fim das sessões, ainda fui lá uma outra vez, totalizando três, com minhas desculpas parciais o mais educadas possíveis. Imagine, chegar para o analista e declarar: “Não quero mais sessões com você. Não gostei.” É preciso sensibilidade para evitar criar traumas. Os meus, ele não ajudou a resolver.

É muito difícil terminar relações, de qualquer tipo. Uma dessas aí é bem sensível, porque constitui um pacto comercial progressivo. Ao contrário do que se dá entre outros profissionais, que a gente sempre pode trocar sem dar explicações – psicanalistas são portadores de nossas intimidades e é o tempo que vai desenrolando o novelo deste tipo de relacionamento. Não dá para simplesmente sumir, nem inventar desculpas inverossímeis.

Esquisito: para quê a gente se demora em situações que não nos fazem felizes? Sem ganho secundário, nada justifica...a não ser o vício em repetições. Reprogramar rotas, às vezes, implica passar pelo mesmo lugar; às vezes implica tomar outras direções.

Voltando ao meu affair, também me pergunto o que quero com ele, o que quero dele. Há dias em que gostar basta; dias em que a companhia inteligente dele me provém de muito do que me falta...e há dias em que eu reconheço que aguardo indícios fortes e claros do que ele sente por mim. Há dias em que falho muito, como um sinal instável de wi-fi...


quinta-feira, 12 de maio de 2022

Amor é sorte

 


Está me faltando tempo para escrever, mas, eis-me aqui, no aperto, para tratar sobre a vida. A começar pelas coisas engraçadas e trágicas, meu analista atual não sabe que é meu ex-analista. Fui a ele por recomendação de uma amiga, também analista, que por conta de nossa amizade não poderia me atender.

Para começo de conversa, analista com fé cristã é uma incongruência. É preciso se garantir muito, a ponto de não cruzar as fronteiras, porque são coisas antagônicas a religião e a Psicanálise (Freud escreveu O futuro de uma ilusão, lembram? E a ilusão vocês sabem qual é), porque arregimenta noções de culpa, perdão e muita coisa e ideias inadequadas com o necessário processamento e elaboração de questões internas. E eu sou espírita kardecista, logo, creio em Deus. Porém, na psicanálise, não dá.

Então, meu analista K. se vangloriou de ter lido Augusto Cury, reproduziu que “Jesus Cristo foi o maior psicólogo que existiu” (verbos no passado porque eu quis) e, na terceira sessão, para me dar um exemplo, saiu pulando na sala, porque achou a linguagem verbal insuficiente.

Citou, feliz, um livrinho de autoajuda de casal neurótico (As cinco linguagens do amor) e me fez perguntas de bolso, questionando o que para mim era mais difícil dizer: “EU TE AMO”; “VOCÊ ME INSPIRA” e outras três igualmente rasas, sendo que eu nunca disse a segunda a ninguém. A bem da verdade, me senti palhaça.

Com uma personalidade sedutora (termo que deve ser entendido na perspectiva da psicanálise e não como a ideia de que ele seja galanteador, assediador ou conquistador), fala muito de si, conta de seus 15 anos de casamento e dos encontros com os amigos de longa data. A ideia dele é aparecer e ser reconhecido. Achei deveras inconveniente, não vi minhas angústias se resolvendo e lancei mão de um balaio de gatos para me desvencilhar, de modo que disse que não voltaria, mas deixei de acrescentar o NUNCA MAIS.

Acrescentando, afirmo que tenho estado indecisa e triste. Triste porque vivo indecisa, com pouca visão sobre as coisas, sobre a minha vida. Apesar do namoro recomeçado e das vezes em que me vejo feliz por ter uma excelente companhia para sair, noto que muito me falta. Não me sinto amada, nem tratada como eu deveria. Aí, estou carente. Carecer é não ter, é sentir falta de alguma coisa ou de alguém. E eu sinto. Desde que acabou minha relação com o Poeta, as noites mudaram, as madrugadas ficaram chatas. E dói não por ele, em si, pois que não nutro nenhum sentimento amoroso; mas pelas aventuras boas dos encontros, do sexo bom e pleno...Aliás, como é difícil achar afinidade no sexo com um homem. Por eu ser tímida, não tomar bebida alcoólica e pouco sair, fica difícil penas em encontrar um homem compatível comigo. Mas, amor é sorte...queria fazer uma aposta certa.

Outro problema: independentemente de minha posição política, eu gostaria muito de ter algo de bom para falar do governo atual, gostaria de poder fazer um elogio, mas, como, se a incompetência impera? bem, além de tudo, a inflação está comendo meu dinheiro, minhas condições materiais. Se muito eu tenho conseguido guardar, não passa de 600 reais por mês.

A inflação aqui de casa – porque, gente, índice de inflação de instituto de estatística e de telejornal não trata do dia-a-dia de gente real tipo eu – está lascando. Comida principalmente. Acho que quem se alimenta direito está na faixa da ostentação. Pão a quase 20 reais o quilo; frutas, temperos, nada custa menos que 5 reais o peso mínimo; produto de limpeza está a preços exorbitantes e papel higiênico, do pior tipo, 13 reais por 12 rolos – sendo que um rolo tinha 30 metros, mas hoje em dia tem 20.

Produtos de higiene pessoal, nem se fala. Viver pode ser o maior barato, mas não está barato não.

Toda semana, cem reais de gasolina, no mínimo.

Faço uma outra graduação, então, pago Faculdade.

Faço psicanálise, então, pago a um ser humano que me veio com “As cinco linguagens do amor”, o que me mostra o tamanho de meu desperdício.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Casos de família

 


Neste ano meu aniversário não foi grande coisa. Isso porque eu estava triste pela morte de minha analista e por contextos internos igualmente pesarosos.

Nunca pude contar com minha família para nada. Isso significa que tanto faz se me refiro a um momento de adoecimento na infância, carência econômica ou de momentos festivos, como um batizado ou minhas cerimônias de formatura de Graduação. Na saúde ou na doença; na alegria ou na tristeza, nada de pais, tias, primos ou avós!

Por conta disso, desenvolvi o espelho-inverso que me fez batalhar por minha vida. Disso decorre meu medo de errar e de perder, estando, pois, suscetível a depender deles. De todos os medos, o maior medo.

Meu analista atual também me disse que família de comercial de margarina só existe no comercial de margarina. No todo, todo mundo está num lar disfuncional ou em famílias competitivas, cujos conflitos são disfarçados pela educação. Grande consolo!

Então, meus medos se mostram por esse apego atencioso aos detalhes, pela responsabilidade em não me tornar refém de qualquer coisa que exija acionar parentes. Achei bastante grave que seja para precisar deles, seja para comemorar com eles, não posso leva-los em conta.

Desqualificam minhas conquistas, meus títulos, minha formação, meus esforços. Por outro lado, não sou muito de estar perto deles. Se a gente toca uma superfície quente, o normal é largar do que queima, não é? Tenho amor por alguns deles; pavor e distância dos meus parentes maternos recém-descobertos que, no caso desses últimos, são usuráveis e invejosos, sobrando poucas exceções entre eles.

Eu, assim como a maioria das pessoas, passo pano, faço de conta que estamos todos bem; que nos damos bem e comungamos opiniões e afetos, mas não sou muito de alimentar hipocrisias, então, também opero na Zona do Sumiço, desapareço, não posso e não estou.

O melhor da pandemia foi o distanciamento. Não reclamo, não: estar longe de quem não gosta da gente; de quem a gente não gosta, é tão importante e satisfatório quanto estar perto de quem amamos

São marcas difíceis de encarar nos desafios da vida. É como estar num time em que nunca lhe passam a bola...por isso eu abandono o jogo.

 


quarta-feira, 13 de abril de 2022

Para a grande mulher que se foi

 


Minha analista (psicanalista, para especificar redundantemente) morreu.

Não imaginei que a dor desse luto fosse tão profunda, diferente, intensa.

Conforme eu já afirmei aqui, antes, eu queria ser uma daquelas pessoas frescas que aproveitam as dores para poder escrever e criar. Eu, não: a dor me paralisa. Eu fico como meus gatos, enroscada, quieta, num silêncio de desertos.

Lêda G. morreu em 23 de maio do ano passado. Eu só soube há duas semanas. Soube porque precisei voltar à psicanálise. Ao procurar por ela, as notícias na web me avisaram.

Fazia um tempo que ela não morava mais na Bahia. Na ética da psicanálise, as pessoas não sabem quem é analisando de quem. O nome do cliente precisa ser resguardado. Logo, não poderíamos ser avisados do óbito.

Doeu, em especial, uma mensagem de um órgão da Sociedade Brasileira de Psicanálise, em que se dizia do quão inacreditável era que não veríamos mais a ‘exuberância’ de Lêda G.

Ela foi a mulher mais inteligente que eu conheci. Sábia mesmo. Moça, jovem, alegre, doce, sensível. Justa, cobrava menos ou cobrava nada de quem não podia lhe pagar. Foi humana comigo e com minha amiga-mais-que-irmã, convertendo o valor de nossas sessões em moedas ‘pagáveis’.

Linda Lêda, compreensiva.

Nunca ouvi falar no luto por analistas. Observem: o analista não é apenas um confidente; não é somente alguém com quem efetuamos trocas e transferências de papéis. Tem amor ali. Tem temor. Tem a vontade de nunca mais voltar e a de não mais sair.

Tem aquela hora do ódio, em que a sua responsabilidade sobre a sua vida cai no seu colo.

Tem aquele momento em que é  você quem é instado a confrontar suas fraquezas, suas repetições, os desejos não declarados, as declarações não desejadas...Tem os desejos de colo e os desejos frustrados e, acima de tudo, tem um amor maior que não se compara ao de um parente, ao de um amor romântico...

Tem, também, a hora em que você é estimulado a se perdoar, porque os seus erros foram o melhor que você poderia fazer com os instrumentos que você tinha, com a pessoa que você era, pela idade que você tinha, pelos recursos mentais, materiais e psicológicos que você tinha. E assim são os analistas: dão a justa medida do que lhe cabe, ajudam a ver ‘a dor e a delícia de (se) ser o que é’. Por isso somos gratos.

Lêda G. foi minha professora na UEFS.

Antes de ser aluna dela, acompanhava as palestras que ela proferia – isso em minha primeira graduação também na UEFS.

A vida inteira eu a admirei. Achava que ela era uma mulher linda – minha classificação de ‘linda’ não se volta à ideia de perfeição. Uma pessoa linda é um conjunto, inclusive os desvios estéticos que a personificam. Linda e elegante. Gostava de usar o perfume Accordes, no dia a dia; e J’adore e L’air Du Temps em outras ocasiões. Já usava cabelos avermelhados no mesmo tempo que eu. Antes de tudo isso, eu já achava que o perfume veste a pessoa. Continuo achando. Gente sem cheiro é algo entre um cadáver fresco e uma pessoa nua e nada sexy. Gosto e cheiro andam juntos, daí porque dizemos: ‘Cheiro gostoso”, confundindo os órgãos do sentido – cheiro, paladar.

Sim, minha analista era uma mulher sexy e exuberante, elegante na voz e na altura; nas palavras, sobretudo.

Tem doído muito a falta dela, a morte dela. Foi mais uma a ser devorada por um câncer – tal a minha amiga-mais-que-irmã.

Fiz aniversário ontem. Ganhei, dentre meus presentes, uma foto grande de minha amiga citada. Quem me presenteou, me disse: “você merece mais que eu”. Concordei de outra forma: eu preciso, caso eu não mereça.

E à minha analista, que me fez ser quem eu sou; quem arrumou minha cabeça para eu arrumar minha vida, deixo minha declaração de amor e de saudades. Que Deus, nosso Pai supremo em misericórdia, sabedoria e amor dê a ela um doce repouso.

Ela, que traduzia minhas palavras, meu texto interior de angústias caladas e não-percebidas...ela, quem me faz falta e que me deixou sem palavras, leve a certeza de que foi amada e admirada.  Ela, que me devolveu a vida, agora deixou a vida...e um vazio em minha existência.


quinta-feira, 3 de março de 2022

Dando as cartas

 



Vejo algumas pessoas que se queixam de que a clientela do tarô se zanga e se revolta quando a leitura das cartas contradiz seus sonhos, seus planos, seus interesses. Entendo isso. Acho que quem recorre a oráculos está em busca de respostas e de clareza, mas que no fundo pagam para obter boas notícias e confirmações de suas premissas. Nem sempre isso vai ocorrer, aqui considerando crentes, charlatães e profissionais sérios do ramo – porque não me referi às cartomantes clássicas que agiam e agem mais por intuição e performance teatral, do que pelo poder intuitivo ou mediúnico. Mas, o preâmbulo não é para tratar de cartas, tarôs ou cartomantes e, sim, para os que reagem mal e de forma histriônica a conclusões, ilações e previsões que contrariam seus próprios interesses. É tipo essa gente que se revolta contra resultado de pesquisa eleitoral: desqualificam o instituto de pesquisa, caso o resultado não favoreça o candidato que ela profere. Pois, bem: a corrida eleitoral aqui no Estado da Bahia, seja por estatística, seja por leitura de contexto, desenha um cenário favorável à vitória de ACM Neto nas urnas. Eu não fico nem um pouco feliz por isso, todavia preciso encarar que a realidade projetada será essa, independentemente de meu gosto pessoal.

Ao colocar a análise na mesa, inclusive sublinhando que ACM Neto tem a seu favor o império das comunicações – herança de família, bem gerida, reprodutora da Globo, além de aparatos variados de marketing, dinheiro, estratégica e influência – as pessoas enlouquecem de revolta. Um aluno meu ficou estupefato. E eu achando engraçada a forma como as pessoas tratam o tema, como se fosse questão de torcida. E não é... Do outro lado, os bobos de sempre, defendendo que o resultado de eleições são sempre culpa das elites...Como se nós tivéssemos mesmo uma elite tão cheia de gente, uma parcela tão grande da sociedade tão cheia de dinheiro. Não: o povo vota com a elite porque se identifica com ela, com seus ideais, com seus sonhos.

Vendedores de lojas de grife se sentem ricos como seus próprios clientes; empregada doméstica de casa de profissional liberal, de empresário, se sente privilegiada, dá razão ao patrão, vota como ele vota porque é dali que vem seu emprego. Portanto, o pobre mesmo, o pobre raiz, louva o empresariado, porque acredita que um empresariado forte que tenha lucros pesados é o suficiente para garantir empregos e salários para as classes mais baixas. Posso apostar que pobre nem sabe que é pobre; da mesma forma que negros e pardos nem sabem que o são.

Pobre tem outros valores, ainda mais quando são vinculados a alguma instituição religiosa: querem mais é agenda moral, com vigilância de comportamentos sexuais e todo rigor da palavra bíblica. Isso importa mais que o pão ou o preço da gasolina! Acho que sociólogos de outrora devem ficar desolados com o perfil do povo brasileiro atual.

Em um ano sem carnaval, mas com futebol e eleição em lide, a cara que o Brasil vai mostrar em 2022, com ou sem pandemia, será uma máscara para  nunca mais a gente esquecer.


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Hipnoses

 


Não sei como as pessoas, hoje em dia, não têm o menor escrúpulo de pegar o título “neurociência” para meter nas propostas mais abjetas, descabidas ou incongruentes. Há um processo de hipnose coletiva em curso, de que já tivemos exemplo paralelo quando se multiplicaram os empregos aleatórios de 'psico' qualquer coisa; ou o qualquer coisa "Quântico/Quântica". Certamente, isso concorre para atrair credibilidade, agregar valor científico a modas e picaretagens discursivas em geral.

Onde iremos parar com um rebanho de pretensos preparadores, que lançam mão de artimanhas de convencimento falsamente enaltecedoras de fracos, inseguros e de portadores de autoestima minúsculas? Esse povo que vende terreno na lua quer convencer às massas de que basta pensar da forma certa, que o Bem vem. O pensamento positivo, é aquele pensamento irresponsável que dá a entender que se você souber pedir, mentalizar, as coisas vão tomar corpo e se materializar em sua frente, e isso basta. Aí, quem não foi avisado acredita que há milagres e mágicas, que bons deuses se compadecem de quem pede com afinco. Seria bom se nossa vida se resolvesse somente com atitudes mentais. Não teríamos nenhuma responsabilidade e tudo estaria definitivamente resolvido sem o menor esforço. Assim são as propostas.

Por termos ego e precisarmos de reforços positivos, afagos, elogios, acreditamos que o autoconvencimento resolverá a vida. Não há processo que seja assim, porque tudo precisar ser bem elaborado. Logo, o domínio sobre uma situação (qualificação para o trabalho; coragem para encerrar um relacionamento; impetuosidade para aceitar propostas novas, etc.) passa pela lenta conscientização a respeito dela, como se fôssemos conhecer o objeto. Conhecer, pegar, medir, ver, pensar a respeito para distinguir e identificar, como se fôssemos crianças de cinco anos diante de uma caixa fechada. Às vezes, a caixa é a gente.

Então, conquistar coisas, alcançar metas, não é uma linha reta, não tem mapa, não tem receita, não tem tempo determinado. Tantas vezes, com planejamento e cronograma na cabeça, a gente se sente perdido? Quantas vezes o tempo nos faz duvidar da pertinência da decisão de outrora? Se nessas horas a gente lembrar que pode fazer as coisas diferentes, ótimo. Se a pessoa pode tomar outras decisões, ainda que não anulem as anteriores, eis um retrocesso que vale a pena.

Se seu casamento funcionou por 25 anos, mas ultimamente é puro tédio, não adianta aprender dança do ventre, nem tentar colar o que rasgou. Mas, se houver amor, ainda se pode negociar (negociar pode ser cada um morar em uma casa ou separar afeto e sexo, de modo a que cada um possa ter parceiros paralelos, se assim quiserem – há várias formas de amor e várias formas de amar); se seu emprego lhe causa náuseas, mas você fica ali porque acha que é o preço da estabilidade, você pode engolir os sapos e esperar a aposentadoria; mas você pode ir fazer outros concursos e cursos. Tem gente que diz: “imagine! Eu já vou fazer 40 anos! Se eu for começar algo agora, só me estabilizo com 50!’ – e perde de vista que terá 50 anos um dia, de todo modo, com o sem cursos novos, com ou sem concursos novos.

Dois momentos em que os seres humanos são frágeis: ao começar algo e para encerrar/concluir algo. É clássico, praticamente ninguém escapa. Porém, concluir é mais difícil que começar – quantos livros começados, que ficaram por ler? E os regimes? E os planos? E as decisões? “Deixa como está para ver como é que fica!”

Entre começos e fins, o fim das férias me traz uma melancolia diferente: não é porque interrompe meu relativo ócio, mas porque já sobrecarrega minha mente, que antecipa o peso das ocupações.

Trabalho porque preciso, mas nunca é apenas uma questão de sustento. Tem sempre mais. Tem sempre aquele peso do bem-estar, dos relacionamentos interpessoais, mesmo que essas pessoas não sejam tão ‘inter’ assim... Tem uma má relação com o tempo, que parece tomar o calendário todo, em semanas e meses. Porém, se tem algo que o trabalho faz é segurar questões existenciais mais densas – porque, afinal, não dá nem tempo para sofrer; e quando a gente quer mergulhar em si, para elaborar aquela questão profundamente, nunca consegue ficar sozinha, porque sempre aparece alguém grudando na gente. Em meu caso, tenho a dor adicional de precisar me meter num ônibus, viajar por três horas e ficar em contato com as vulnerabilidades e dissabores da trilha pelas rodovias; e a hospedagem, que seja como for, é um foco de perigos no meio de uma pandemia. Mas, é como se o ano estivesse começando agora, para mim: ajustado pelo calendário letivo; pelas imposições da vida prática, em um período que eu ainda não soube o que são férias no sentido lúdico. Trabalhar, então, passa a ter outro peso, diante do contexto em que estamos – não, não consigo achar normal; nem acredito em novo normal...e  será que ainda existe gente normal?


sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Doa a quem doer

 



 

Se você acha que comportamento abusivo dentro de um relacionamento  diz respeito apenas a situações injuriosas, humilhações, subestima, dominância psicológica, controle e retirada da autonomia financeira e outras situações mais explícitas, por favor, acrescente mais um item, porque quando uma pessoa coloca o sofrimento do Outro sob o rótulo de drama ou ridiculariza a dor de que esse Outro se queixa, manifesta, sim, uma conduta abusiva.

A dor de cada pessoa é a maior dor do mundo. Não interessa as causas. Dor não se mede por critérios objetivos. Costumamos até perguntar a alguém, por exemplo, se ‘depilação com cera, dói?” e obter como resposta que: “Sim, mas é uma dor suportável” ou dar dimensões metafóricas sobre dores. Faz parte da conduta humana dizer que dores de perdas, de lutos, são dores maiores que outras. Isso se volta ao critério de que há dores temporárias e outras que são reversíveis, especialmente as de cunho material. Em contrapartida, as dores existenciais ou a dor pela perda de um parente, tanto não têm cura, quanto não têm tamanho. Porém, são formas de falar. Qualquer dor é legítima se é reconhecida enquanto tal. Não se pode subestimar a dor do fim do primeiro amor de um adolescente; nem dizer que a dor de uma mulher é um drama.

Há quem grite de dor, assim como há quem silencie e viva sua dor calado, num canto. Há até quem transforme dor em canto (em poesia, em arte)...Mas, nem todo mundo é Fernando Pessoa; e cada pessoa precisa ser respeitada em sua dor.

Os amigos dizem logo: “Não sofra por uma pessoa dessas!” – já ouvi tanto isso! – e sabemos que esse imperativo, essa ordem, esse conselho, é um gesto de amor e solidariedade de quem gosta da gente.

Assim como não se pode determinar a quem iremos amar ou não, não podemos escolher que algo não vá doer. A dor não é opcional. A maneira de encarar a dor, sim. Gente madura emocionalmente sabe disso: quem não quer anestesia ou analgésico na hora da dor? Quem não reza para uma dor passar? A gente quer se livrar, mas sabe que a dor passará...E outras dores virão e também passarão.

E se a gente aprende o que faz doer e onde dói, estaremos prevenidos de despertar certas dores.

As falácias mais absurdas são tomadas como grandes verdades – citei essa aqui, sobre ‘a dor ser opcional’ e reitero o absurdo da outra, amplamente aceita, a de que ‘não se deve criar expectativas’. Ora, sem imaginação, sem expectativa; sem expectativa, sem esperança. Não dá para viver sem sonhos, sem transcender, sem ultrapassar o presente. A vida não é um filme de ação e aventura que a cada cena traz grandes novidades. A vida tem é muita repetição e tédio. E se a gente não puder nem sonhar, não ter sequer expectativas de que haja diferenças no amanhã, que a dor de hoje passe; que o amor de agora melhore; que ao estudo se sucedam boas oportunidades de emprego; que a cura venha, que algo melhore, como será viver? Não falo da positividade tóxica, que ignora a realidade ou coloca elementos mágicos em coisas que dependem de nossa condição de agente e coisas do tipo. Falo do crer, do querer, do esperar...


Onde é que dói na minha vida,

para que eu me sinta tão mal?

quem foi que me deixou ferida

de ferimento tão mortal? 

(Fragmento do poema de Cecília Meireles, "Rimance"