Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O lugar do Outro

 


Fala-se muito que devemos nos colocar no lugar do Outro. Sabemos que assim procedemos para antever o impacto de nossas ações sobre os outros, mas nós nunca seremos eles.

De fato, é um bom recurso e não deve ser entendido apenas como um gesto cristão ou como um ato de educação. Colocar-se no lugar do Outro é, em certa medida, usarmos a nós mesmos como régua. Desta forma, pensamos: “e se fosse eu a ouvir isso?”; “e se fosse eu a passar por isso?”. Deveria servir para atenuar o peso do que vamos fazer ou dizer.

Parece difícil e complicado, porque também fazemos coisas aos outros e as ocultamos. Portanto, o que os olhos não veem não nos faz inocentes – nos faz sagazes.

Entretanto, excetuando que, no caso em questão, ocultamos algo não por malandragem deliberada, mas para poupar o Outro, significa que nos colocamos tanto no lugar dele, a ponto de adiar verdades, ocultar fatos, por receio de magoar. Então, é muito difícil comunicar ao parente que a gente não retornou à ligação recebida porque não quisemos, não gostamos dele, não queremos tal contato.

Como dizer a uma pessoa que nós não prezamos a mãe dela devido ao fato de que a genitora citada tem muito mal caráter? Naturalmente, me volto a situações que nos forçam a um contexto assim. Para as outras, escapamos escamoteando, evitando.

Quando se trata de flagrantes, eu, particularmente, jamais contaria sobre traições ou coisas de vida de casal, coisas particulares. Definitivamente, não somente não cabe como também pode ser artimanha de quem não procurou ser discreto: já flagrei marido de colega de trabalho em públicos desfiles com variadas amantes. Ele gostaria que alguém contasse à esposa dele, de forma a abreviar o término. Coitado! Nunca contei...

Quando sentimos inveja, nos colocamos no lugar do Outro: queríamos tanto merecer o que a pessoa X tem; viver o que a pessoa X vive; estar onde a pessoa X está. Achamos que somos mais dignos e mais merecedores que os invejados, sem lembrar que o Outro é o Outro e não cabe a nenhum de nós fazer julgamentos que favoreçam nosso ponto de vista. A vida tem injustiças, claro. Todavia, aquela é a vida do Outro, o contexto do Outro...E só fiz a comparação para poder mostrar os abismos que vivemos e de que ninguém está a salvo.

Achamos que estamos numa novela, com vilões e mocinhos – e nós, claro, somos gente boa, somos mocinhos – torcendo por justiças num final feliz. Não estou acima disso. Sou humana, tenho sonhos e tropeços.

Acrescento que sobre essas coisas, a psicanálise tem me feito muita falta. A viagem dolorosa para dentro de si, com espelhos e retrovisores voltados à nossa subjetividade, me faz muita falta e até hoje não me recuperei da morte de minha psicanalista.

Tentei outro profissional, já tratei dele aqui, porém, além de ter sido uma experiência ruim, oca e inútil, agravou meu luto por minha analista, a tal ponto que eu nunca mais procurei nenhum profissional da área.

E cá estou, me colocando no lugar de um Outro e segurando as rédeas de um cavalo bravo, que eu mal domino e que pode disparar. Não sou boa amazona e me vejo cansada de exercer a força e o equilíbrio que nem me são próprios.

Entendo quem toma álcool para tomar decisões – anestesia boa que, posteriormente, pode ser alegado em legítima defesa (ora, mas eu havia bebido!).

Neste momento, há várias pessoas com quem eu gostaria de romper, de vários setores de minha vida...E seria tão melhor se elas saíssem sozinhas, se percebessem a hora de ir, de deixar a festa, de encerrar a visita...Dou sinais de meu cansaço, bocejo, invento ocupações, evito coincidências sociais...

Será que elas se colocariam em meu lugar?