Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Doa a quem doer

 



 

Se você acha que comportamento abusivo dentro de um relacionamento  diz respeito apenas a situações injuriosas, humilhações, subestima, dominância psicológica, controle e retirada da autonomia financeira e outras situações mais explícitas, por favor, acrescente mais um item, porque quando uma pessoa coloca o sofrimento do Outro sob o rótulo de drama ou ridiculariza a dor de que esse Outro se queixa, manifesta, sim, uma conduta abusiva.

A dor de cada pessoa é a maior dor do mundo. Não interessa as causas. Dor não se mede por critérios objetivos. Costumamos até perguntar a alguém, por exemplo, se ‘depilação com cera, dói?” e obter como resposta que: “Sim, mas é uma dor suportável” ou dar dimensões metafóricas sobre dores. Faz parte da conduta humana dizer que dores de perdas, de lutos, são dores maiores que outras. Isso se volta ao critério de que há dores temporárias e outras que são reversíveis, especialmente as de cunho material. Em contrapartida, as dores existenciais ou a dor pela perda de um parente, tanto não têm cura, quanto não têm tamanho. Porém, são formas de falar. Qualquer dor é legítima se é reconhecida enquanto tal. Não se pode subestimar a dor do fim do primeiro amor de um adolescente; nem dizer que a dor de uma mulher é um drama.

Há quem grite de dor, assim como há quem silencie e viva sua dor calado, num canto. Há até quem transforme dor em canto (em poesia, em arte)...Mas, nem todo mundo é Fernando Pessoa; e cada pessoa precisa ser respeitada em sua dor.

Os amigos dizem logo: “Não sofra por uma pessoa dessas!” – já ouvi tanto isso! – e sabemos que esse imperativo, essa ordem, esse conselho, é um gesto de amor e solidariedade de quem gosta da gente.

Assim como não se pode determinar a quem iremos amar ou não, não podemos escolher que algo não vá doer. A dor não é opcional. A maneira de encarar a dor, sim. Gente madura emocionalmente sabe disso: quem não quer anestesia ou analgésico na hora da dor? Quem não reza para uma dor passar? A gente quer se livrar, mas sabe que a dor passará...E outras dores virão e também passarão.

E se a gente aprende o que faz doer e onde dói, estaremos prevenidos de despertar certas dores.

As falácias mais absurdas são tomadas como grandes verdades – citei essa aqui, sobre ‘a dor ser opcional’ e reitero o absurdo da outra, amplamente aceita, a de que ‘não se deve criar expectativas’. Ora, sem imaginação, sem expectativa; sem expectativa, sem esperança. Não dá para viver sem sonhos, sem transcender, sem ultrapassar o presente. A vida não é um filme de ação e aventura que a cada cena traz grandes novidades. A vida tem é muita repetição e tédio. E se a gente não puder nem sonhar, não ter sequer expectativas de que haja diferenças no amanhã, que a dor de hoje passe; que o amor de agora melhore; que ao estudo se sucedam boas oportunidades de emprego; que a cura venha, que algo melhore, como será viver? Não falo da positividade tóxica, que ignora a realidade ou coloca elementos mágicos em coisas que dependem de nossa condição de agente e coisas do tipo. Falo do crer, do querer, do esperar...


Onde é que dói na minha vida,

para que eu me sinta tão mal?

quem foi que me deixou ferida

de ferimento tão mortal? 

(Fragmento do poema de Cecília Meireles, "Rimance"


domingo, 9 de janeiro de 2022

Reeducação de financeira não é mágica

 


Vamos falar desse calo moral pessoal que é a Economia.

Você não precisa entender Teoria Econômica, nem saber sobre indexadores, nem sobre mais nada: economia, a gente ‘nasce sabendo’.

Podemos nos confundir com preço e com valor, com capital e com dinheiro, mas desde cedo a gente sabe o que é comprar e tem uma vaga ideia do que seja gasto, pagamento e dinheiro.

Saindo dessas abstrações de infância, vamos lá: desde que você possua alguma renda, mesmo que flutuante (ou seja, sem recebimentos fixos de um salário, um provento qualquer), ao colocar a mão em dinheiro é necessário ter o domínio sobre ele.

Difícil fazer as despesas caberem no dinheiro que se tem? Dificuldade que todo mundo tem.

Um grande amigo meu, que ganha bem, estava se queixando dolorosamente, isto é, sofrendo de verdade, por ter prestações de um empréstimo consignado, no valor de R$ 2.300,00 mensais, a serem pagos em 60 meses!

Se o empréstimo foi algo emergencial, imprescindível, necessário, não importa. Antes de contrair o empréstimo, deve-se avaliar o impacto financeiro da prestação. Este, entretanto, é um calabouço, porque a pessoa que divide tudo em prestações minúsculas e parcela no cartão, se afunda sem sentir, iludida pelo baixo impacto da prestação irrelevante. Mas, voltando ao meu amigo: propus a ele que se fosse conveniente quitar antecipadamente a dívida, ele deveria parar onde está. O exemplo que eu dou serve para qualquer ser humano atolado em dívidas – exceto com agiota, que aí, nem sua vida lhe pertence mais e essa, sim, é uma operação financeira de alto risco. Vamos lá: para parar o circuito do endividamento, primeiramente é necessário ter uma ideia sobre os gastos fixos.

A seguir, observar os gastos paralelos - que passam a não ter prioridade.

Os supérfluos todos precisam ser eliminados.

As coisas, os preços, aumentam mais que os seus ganhos. Logo, se você gasta 500 reais no supermercado mensalmente; no mês seguinte, com a inflação real, vai gastar de 550 a 600 para os mesmos itens. Portanto, não faça a loucura de substituir produtos: se você confia numa marca, sabe da qualidade e da rentabilidade da mercadoria, compre menos, compre um volume menor, mas saiba que de nada adianta usar um sabão em pó barato e que não lava; nem a comida barata que é sem sabor...isso vai levar não somente à insatisfação, como também a um gasto de mais produto ruim a fim de que ele dê o resultado do bom produto. Portanto, a Economia pode ir por aí.

Você tem carro? Ótimo! Você precisa mesmo usar seu carro para se deslocar por um quilômetro ou dois? Pense em desgaste de peças, estacionamento e trânsito e, se puder, vá a pé.

Não corte seu lazer. É tipo dieta: não precisa cortar, eliminar alimentos, basta diminuir a porção.

Há outros cuidados com a vida que podem ser adaptados, dosados. Cada um pense em suas respectivas realidades – isso inclui a parte fixa, tipo contas da casa.

O que sobrar, seja um real ou um milhão, deverá ser deixado sob reserva. Não precisa ser tudo: no primeiro mês, guarde aquilo que uma vez reservado não será sacado de modo algum. Pode não ser o melhor investimento, mas a poupança inicialmente ajuda muito. Depositou lá, esqueça!

Nos meses seguintes, force a barra e aumente o valor do depósito, seja quanto for.

Se lhe sobrar tempo, faça hora extra, serviço extra, seja o que for também. Inclusive, seu dinheiro de férias deve ser depositado, em pelo menos setenta e cinco por cento do valor líquido, em suas reservas.

A ideia é gastar menos e guardar mais, a longo prazo.

Não tire os prazeres de sua vida, mas tenha responsabilidade com seus ganhos e com seus gastos.

Vamos à outra parte da conversa com meu amigo, que também serve para qualquer um: depois de muita planilha com a vida, cálculos inclusive com os aumentos de salário que virão, caso ele realmente antecipe o pagamento do empréstimo, quitando tudo, dei aquele banho de água fria nele. Propus: se você pode pagar, ainda que sofrendo, uma prestação de R$ 2.300,00, agora você vai guardar R$ 1500,00 todo mês, no mínimo, por 36 meses. Aqui abriu-se o precedente para investir em ações mesmo, em lances pequenos. Meu amigo entendeu, mas ficou irado comigo, achando que não iria conseguir, que eu propunha um absurdo.

Conclusão: é preciso que cada um de nós tenha compromisso financeiro consigo mesmo. Se você paga uma instituição bancária, aprenda a pagar a si mesmo, guardando. No caso de meu amigo, a meta é ter o suficiente para dar entrada numa casa própria. Vejam bem: a pessoa se compromete por cinco anos com um banco, mas não se compromete consigo mesmo em guardar...

É treinamento, condicionamento, a recuperação financeira e a poupança. Ninguém reclama de existir reeducação alimentar, mas berra contra reeducação financeira.

Deixe seu dinheiro ganhar musculatura, não se meta em altos riscos; não gaste tudo o que tem e veja a diferença: ao incorporar o hábito de poupar, a gente fica mais seguro e mais tranquilo. Fica a dica!


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O tempo e o anteontem

 


Algumas pessoas têm pautado suas percepções de tempo em função da pandemia. Desta forma, não há um ano novo, um tempo diferente porque estamos mudando os dias no calendário sem, efetivamente, voltarmos à vida de sempre, à vida normal.

Faz muito tempo que a gente experimenta coisas assim, tipo quando nos sentimos na rotina com um relacionamento longo; ou quando enjoamos do trabalho, das repetições do cotidiano, das mesmices. Particularmente, já defendi e defendo de novo, a ideia de que o “Cotidiano” (música de Chico Buarque) reporta mais ao quanto a gente se sente seguro com a rotina do que, necessariamente, concebe a rotina como chatice. Mas, é claro que a gente não aguentaria um caminho reto o tempo inteiro, mesmo reclamando dos perigos das curvas, de aclives e declives que a estrada da vida precisa ter.

Eu me irmano totalmente com quem acha que estamos, neste momento, nesta data (04/01/2022) vivendo a Terceira Temporada, episódios iniciais, de 2020. O cronograma subjetivo parou logo após os dois primeiros meses de 2020 e, sendo bastante sincera, desde 31/12/2019 eu acho que sequer o tempo passou. Mundialmente foram muitas as tragédias. Isso as coletivas! As individuais não caberiam aqui.

Não durmo como antigamente, não me comporto socialmente como antigamente, não me desloco pela cidade como antigamente e esse antigamente significa: há dois anos.

As coisas boas que aconteceram ficaram tal como escreveu Clarice Lispector no conto sobre a Senhora Raposo, “mudos fogos de artifício”. Não dá para estar bem em um mundo que não está bem.

Pior seria sem vacinação, mas mesmo com a erradicação do vírus, eu digo que precisaríamos de uma ressocialização – para todo mundo: sãos, imunes, ex-contaminados, negacionistas, terraplanistas, delirantes, extremistas, crentes, ateus, agnósticos, todo mundo mesmo, do melhor aos pior indivíduo do planeta, porque teremos que repensar a forma de viver coletivamente, reaprender a relação com o outro e com o planeta – vi amigos meus que moravam sozinhos, em outro Estado, passarem a viver novamente em família, fazendo o percurso oposto ao da maioria, após anos de distanciamento familiar (ele morava em Pernambuco, a esposa e os filhos pequenos moravam aqui em Feira de Santana, na Bahia), passando a morar juntos, num caos em que as individualidades se chocam; a privacidade passa a ser questionável e o amor pautado pela saudade vem a enfrentar o desgaste da permanência das presenças.

Vi a relação com animais domésticos começar ou melhorar; vi gente se aproximando e se afastando; vi a vida sexual dos amigos (e a minha própria) mudar; vi o comportamento religioso mudar e também vi o desconforto de quem alegava falta de tempo para qualquer coisa, agora com tempo de sobra, se perder em anacronismos e ambivalências.

Para mim, foi um alívio o pretexto do distanciamento, para a esfera familiar. Confesso que não gosto de família exceto como visita esporádica, com data e hora para ir embora. No mais, cumpro rituais e invento mil desculpas para ficar sozinha, sem fazer nem receber visitas.

Saí poucas vezes a lazer. Não me sinto tranquila, não obstante a pandemia, porque não vejo gente alegre: vejo irresponsáveis, gente mal-educada ou depressivos querendo forçar a normalidade que não temos. O que eu quero dizer é que não há naturalidade, nem espontaneidade naqueles risos, naquelas festas, naquele cinema – e isso independe de protocolos sanitários.

A gente se deixa afetar porque o entorno social implica muito em nosso bem-estar, em nossa identidade, nas subjetividades – nas formas de amar, desejar, querer, ser, sentir, etc. E como não vi graça em sair no réveillon, não sairia de forma alguma, todavia cogito ir à praia num quinta-feira, fora dos dias de aglomeração presumível, para, pelo menos, me reconciliar com um lazer de que gosto: água e sol. Sei que vai demorar para minha paisagem interior mudar, sair do clima atual que nem é tão atual: como uma página de anteontem no livro da minha vida ou nos calendários de fim de mundo. Talvez eu viva, agora, o paradoxo da Legião Urbana: "Todos os dias quando acordo não tenho mais o tempo que passou, mas tenho um outro tempo" e igualmente, "Não temos tempo a perder" e mesmo com todos esses versos, a música se chama Tempo perdido.