Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 18 de julho de 2023

Os estranhos na casa do EU

 


Vivo a pedir a Deus para poder esquecer os homens de quem gostei. Os meus relacionamentos sempre chegam a esse ponto. Reclamo de mim mesma, protesto, faço promessas internas, me apego aos defeitos do meu par; revisito situações desagradáveis e, depois, perplexa, me pego em conversas francas com Freud, lembrando que ele disse que “ O EU não é senhor em sua própria casa” -  pois é, há camadas desconhecidas, irracionais, inconsciente, subconsciente e um monte de inquilinos ocultos a dar ordens e tomar cômodos e incômodos e “sub-locar” a casa do Eu. Há momentos, porém, que a casa do meu EU se converte numa pensão barata sempre a desafiar o senhorio.

Pois, bem: foi esquisito e super esquisito constatar que eu não quero nada com o Poeta – sim, o poeta, este de quem nada se fala, de quem pouco se fala e que, a bem da verdade, significa tanto para mim quanto o futuro do Benfica em uma partida contra o 15 de Piracicaba, isto é, insignificante, improvável e fora de cogitação. Mas, acontece que ele fez malabarismos telefônicos para tratar comigo. Naturalmente, os tédios matrimoniais e o peso das angústias bateram certeiro nele. Não sou a solução para isso. Porém, não aguento mais a insistência e os rituais previsíveis. Não é mera questão de repetir o ‘não’, mas a coisa estranha em que se torna esse não querer e esse não gostar. Não gosto mais dele. Mal me lembro de quando gostava. Lembro, entretanto, das dores da separação.

Sexualmente, ele foi o homem que me trouxe maturidade sexual. Muito importante para mim, para a minha vida. Talvez ele tenha se apegado a esse quadro da parede das memórias.

Isso me causa angústias.

Tenho histórias por demais acumuladas para contar sobre outras personagens – deixei de escrever porque o tempo estava escasso.

O Poeta deveria saber que nunca seríamos o que um dia fomos. Ele casou com outra. Isso tira o glamour, tira camadas de matéria do desejo, estabelecendo em mim uma anulação, como se ele não fosse mais homem -  admiro a obra dele, acho ele bonito e etc., mas  o afeto foi embora e deu carona para o desejo. Ele se tornou uma figura pesada, um lar para onde não se volta- entendo o “Mas, já não há caminhos para voltar” – e mesmo que não se tratasse simplesmente de um homem casado que se entediou do casamento, eu jamais voltaria à casa dele, aos encontros de antes. Acho que romanticamente, por eu não assumir relacionamento com ninguém após nossa separação, em 2020, ele acredite que estou disponível e à espera dele; pode pensar que disputo vaga e aguardo convocação. Nós, mulheres, passamos essa impressão porque tratamos com Amor a quem gostamos, amamos ou queremos. Devo ter transmitido extrema confiança afetiva a ele. Todavia, não dá, não tenho interesse no contato, se bem desejasse ser amiga. Amiga é amiga com AMIZADE  e sem SEXO.

Vivo a pedir a Deus que me livre dos meus sentimentos pelo Homem de Capricórnio, de quem ainda gosto e não deveria gostar, não quero gostar. E quando deixo de gostar fico com um incômodo absurdo, com um cômodo vazio, com a vaga no coração...e o EU, que não é senhor em sua própria casa, espera novos inquilinos. Meu EU: imóvel.


MILAN KUNDERA: O adeus insustentável

 



Milan Kundera morreu após quase um século de vida. Nenhum livro dele foi melhor que A insustentável leveza do ser. Nenhum outro livro teve tal influência sobre a minha vida a ponto de ser o que ele é para mim e para meu contexto. Li aos 23 anos. Li outras três vezes no decurso de minha vida; e a cada leitura o encantamento persiste, o amor continua e se consolida com o tempo.

Quem quer romance, vai encontrar romance em A insustentável leveza do ser. Vai encontrar filosofia, história, cultura, música...eu, encontre tudo isso e encontrei a mim mesma.

Partindo de paradoxo formulados com a filosofia de Nietzsche (peso que esmaga, leveza que  deixa solto à mercê do vento) deságua na pergunta do narrador composto por Kundera: “Então, o que escolher? O peso ou a leveza”.

A trama amorosa que liga Tomaz, Tereza, Sabina e Franz costura-se ao tecido da política, às existências de escolhas, crises e acasos.

Tomaz cria regras para si mesmo: não ter mais que três encontros com uma mulher, não compartilhar o sono com nenhuma mulher. Tereza torna-se a exceção:

“Ele estava mesmo surpreso. Agia contra seus princípios. Há dez anos, quando se divorciara da primeira mulher, viveu seu divórcio numa atmosfera de alegria, como outros comemoram um casamento. Compreendeu então que não nascera para viver ao lado de uma mulher, qualquer que fosse ela, e que só poderia ser um celibatário. Esforçava-se, portanto, cuidadosamente para organizar seu sistema de vida de maneira tal que nenhuma mulher jamais viesse se instalar com mala em sua casa. Por isso só tinha um divã. Se bem que fosse um divã largo, dizia às suas companheiras que incapaz de adormecer na mesma cama com quem quer que fosse, e levava-as sempre de volta depois da meia-noite.” (KUNDERA, 1988, p.15)

Para ele, há sinceridade nos afetos próprios – o mesmo que o faz declinar dos ‘vagos sentimentos de paternidade’ ao perceber o jogo de chantagens que a ex-esposa fazia, marcando e desmarcando encontros entre pai e filho, manipulando e implementando alienação parental. Todavia, é evidente a fuga do amor – por isso, ele cria regras que equivalem a obstáculos para o germe de sentimentos.

Experimentando, ao longo do romance, vários casos sexuais fortuitos, instaura em Tereza a dor da eterna insegurança pelas traições sofridas, testemunhadas e presumidas. Entretanto, quando é ele a sentir ciúmes, de causas imaginárias e projetivas, sofre intensamente:

“Não havia nada mais fácil do que imaginar Tereza e esse jovem colega como amantes. Era essa facilidade que o magoava. O corpo de Tereza era perfeitamente imaginável num abraço amoroso com qualquer corpo de homem, e essa ideia o deixava de mau humor. Tarde da noite, quando voltaram, ele revelou-lhe que estava com ciúmes. Esse ciúme absurdo, nascido de uma possibilidade toda teórica, era prova de que ele considerava a fidelidade dela um princípio inatingível. Mas então, como poderia ele ter raiva do ciúme que ela sentia de suas amantes mais do que reais?” (KUNDERA, 1985, p 23)

 Estranha a si mesmo, quando, tempos depois, após sete anos juntos, Tereza o deixa e volta para Praga. É a leveza...

“Esse estranho encantamento melancólico durou até domingo à noite. Na segunda-feira tudo mudo. Tereza irrompeu no seu pensamento: sentiu o que se passar com ela ao escrever a carta de adeus; sentiu como suas mãos tremiam; podia até vê-la segurando com uma das mãos a pesada mala e, com a outra, a correia de Karenim; imaginava-a girando a chave na fechadura do apartamento de Praga, e sentia em seu próprio coração a desolação que lhe aflorou ao rosto quando abriu a porta.

Durante esses dois belos dias de melancolia, sua compaixão (essa maldição da telepatia sentimental0 tinha se acalmado. A compaixão dormia como um trabalhador das minas num domingo, depois de uma semana de dura labuta, para poder voltar a trabalhar com intensidade na segunda-feira.” (KUNDERA, 1988, pp. 36-37)

Acompanham esses episódios outros tantos de decepção com o sistema político, com retrospectos na História, que formam um mosaico lógico na narrativa: “Todos os crimes do Império  Russo foram perpetrados à sombra de uma discreta penumbra. A deportação de um milhão de lituanos, o assassinato de centenas de milhares de poloneses, a eliminação dos tártaros da Criméia, tudo isso ficou gravado na memória, sem provas fotográficas, como uma coisa indemonstrável, sujeita mais cedo ou mais tarde a passar por mistificação. Ao contrário, a invasão da Tcheco-Eslováquia em 1968 foi fotografada, filmada e guardada nos arquivos do mundo inteiro.” (KUNDERA, 1988, p. 72).

Discussão densa que deixou para nós, mesmo agora, pistas consideráveis sobre a situação atual da Criméia – a anexação. Sob a ficção, tantas verdades; sob a narrativa em prosa, tanta poesia; sob a poesia, tantas músicas (de Beethoven, sobretudo), imagens, ideias...um grande livro de particular significado para mim.