Louquética

Incontinência verbal

sábado, 30 de dezembro de 2023

O fim de ano e outros recomeços

 



Não me queixo do ano que está acabando, apenas reclamo do cansaço das causas acumuladas. Posso dizer que de setembro para cá foi época de cansaço mental, de desgastes psíquicos e encargos emocionais. Nada se compara aos meus dez dias frequentando (vivendo, permanecendo) um hospital para ficar com meu tio doente. Isso significou oferecer a ele segurança, dar garantias e assistência psicológica de que o mundo dele não iria desintegrar e que ninguém da família iria decidir por ele os rumos de seus pequenos bens. Mas, até este fatídico novembro, muita água rolou sob a ponte da minha vida.

E deixei o hospital, suas filas, burocracias, negligências e tragédias, sem trazer meu tio comigo – ele morreu após uma cirurgia.

Não sou uma pessoa alienada a ponto de agradecer pelas tragédias, mas sou grata mesmo a Deus por ter sobrevivido a tantas coisas – prejuízos materiais, acidentes terceirizados, porque foram coisas que resvalaram em mim e, portanto, foram causas indiretas de perdas materiais e, claro, meu luto amoroso que me faz defrontar comigo mesmo no espelho, a duvidar de minha sanidade, porque não faz o menor sentido gostar de quem não tem o mínimo qualitativo emocional, isto é, maturidade.  Aprendi que, de fato, renunciar causa o maior peso ao ser humano. Entendi melhor porque dói escolher entre duas pessoas, entre várias opções de qualquer coisa. Devo frisar que o pessoal do poliamor resolveu isso simplesmente acumulando gente. Decerto, não sai de graça. A estrutura emocional que gira nessa assumida ausência de estabilidade, é para quem aguenta. Se a dois a gente já não tem estabilidade nem garantias, já corremos o risco de sermos trocados, deixados e preteridos, imagine quando se envolvem mais pessoas. Entretanto, é ótimo viver na sinceridade e tanto não precisar mentir, quanto não ouvir mentiras. Poliamor não exclui o respeito. Porém, ao invés de escolher uma pessoa, fica-se, em comum acordo, com quem está e quem mais vier.

Enfim, pelo cansaço também estou avaliando largar umas coisas. Também entendi que há distinções severas entre a perseverança, a persistência e a teimosia. Sob esta última está minha (e nossa) necessidade de renúncia.

Renunciar é difícil, sim. É dizer não àquilo que a gente quer e deseja. É um exercício terrível que justapõe o que se quer, o que se pode, o que convém e o que é melhor para a gente. Renunciar é desistir, mas uma desistência consciente, nobre porque faz parte da autopreservação, mas não menos dolorosa.

 Fim de ano não é fim de mundo. É somente rito de passagem.Deixa o calendário rodar

domingo, 26 de novembro de 2023

Luto e convicções

 


Eu sei que tenho convicções muito firmes. Estou aqui para confirmar o que eu digo por convicção há tempos: eu não sei de onde as pessoas tiraram a conclusão de que a dor é um estímulo à escrita. Sei que tem certa pertinência nisso de angústia e literatura, mas, para mim, a dor paralisa. Eis porque parei de escrever estes tempos.

Depois de cruciantes dez dias em hospital, o meu tio único faleceu. Estou num luto doloroso e o primeiro alívio que tive foi de ontem para hoje, quando finalmente consegui dormir por cinco horas seguidas – e cá estou, escrevendo.

Meu sono existia, mas vinha entrecortado e sob stress.

Na primeira noite em que dei socorro ao meu tio, ele, um senhor de 80 anos recém completados, fui obrigada a ficar em claro, numa UPA, em companhia dos gemidos dele.

De lá, sete da manhã, ainda sem dormir e em fuga assumida, fui à casa de meu pai, contar o ocorrido. Nunca dirigi sem dormir. Perdi o caminho porque havia obras e desvios no trânsito. Foi um dia horroroso.

Meu tio foi para o Hospital Geral Clériston Andrade. Estava atento e vivaz, fazendo planos e ameaças às enfermeiras. Fez um exame. Ficou sob observação por 03 dias. No quarto dia, optaram pela cirurgia. O resultado final foi óbito, com parada respiratória e infecção generalizada, num sofrimento absurdo e negligenciado de mais seis dias. O fígado se desintegrou de tanto antibiótico.

Se fosse aqui um relato técnico de causa mortis, estaria tudo bem. O que não se conta é o clima mórbido e depressivo de frequentar o hospital. É aquela fila para a visita ou para entrar como acompanhante e ver outros tantos doentes e as hienas vorazes da religião protestante querendo ganhar adeptos, fazendo um teatro de horrores...E as acompanhantes profissionais, que se dizem cuidadoras, se lançando sobre nós, os parentes, como fontes de renda, de maneira inconveniente e fria.

Foram dias traumatizantes. Foram dias em que a mão fria da morte pousava em meu ombro cansado. Encostava o peso da foice em mim.

O tempo do hospital é outro tempo: o agora dura 04 horas; o daqui a pouco dura 6, tudo se arrasta em angústias delongadas.

O que também não se conta são os telefonemas assustadores e a pouca habilidade da assistência social, que liga às 03h da manhã a pretexto de pedir a identidade do paciente – ora, claro está que o paciente morreu. A falsa delicadeza não funciona.

Não entendi quando li no informativo das obrigações do paciente, que ele ‘deve deixar o hospital logo que tiver alta’. Pensei se poderia haver quem ali quisesse permanecer. Mas, olhei para os lados e percebi que, graças ao governo do Estado da Bahia, é preciso reconhecer a obra de Rui Costa (ora continuada por Jerônimo), o hospital dá seis refeições ao paciente e ao acompanhante; dá um teto e saneamento básico, um banheiro e um lugar para dormir. Assim, num país pobre, como é o nosso, o hospital provê sobrevivência. E até amigos meus de boa condição financeira e plano de saúde particular, vão ao HGCA para cirurgias específicas de que o Hospital é referência na área.

O sepultamento foi igualmente uma cerimônia dolorosa, que confirmou minha pouca resistência a lutos.

Ainda estou muito abalada. Chorei até adoecer, com crise de rinite e mais distúrbios do sono.

Não consegui trabalhar. Meu pai se preocupou demais comigo, me obrigou a sair, a atender às condolências, a responder à vida burocrática quanto me fosse possível – ele, que estava comigo e com meu tio, está muito abalado também.

Por ser espírita, tenho uns consolos, mas a falta não se apaga.

Já me considero beneficiada por terem se passado nove dias desde o sepultamento de meu tio, porque só o tempo atenua a dor. Considero, assim como recomenda a doutrina espírita, o esquecimento como uma dádiva de Deus. Nunca fui a favor de regressão e seus similares. Precisamos de memória, sim, para muitas coisas; e precisamos do esquecimento para aliviar a dor do que passou.

Com dor eu não escrevo. A dor é inimiga da escrita.


domingo, 22 de outubro de 2023

Neste mundo

 


Nunca me causou tanto enjoo ouvir clichês como os de hoje em dia. Dá vontade de morrer só em ouvir “Crenças limitantes”, “personalidade narcisista”, “Transtorno de sei lá o quê”, uma profusão de repetições aleatórias de gente que se diagnostica pelo Google, se especializa em Tik tok, se pós-gradua em YouTube e faz pós-doutorado em livro de autoajuda e curso com picareta de todo tipo.

A propósito, takiupariu com esse povo carente a ponto de abraçar qualquer picareta que pareça com consolos vagos e promessas de prosperidade. Pior: qualquer um se diz terapeuta, num país que acha que terapia é sinônimo de psicologia ou psicanálise. Sinceramente, é sob este ponto que eu creio que quem cai nessas ondas está buscando um pai, uma autoridade de pai, uma reencenação do cuidado de uma família, recompensas de amor, cuidado e conselhos e, por isso, paga para obter as fórmulas milagrosas que possam sanar feridas.

Moro neste mundo aqui – provavelmente, é o mesmo em que você mora. Porém, tem muita gente que deve morar no mundo da lua. Não sei onde é que a gente compra paz, amor, felicidade, prosperidade e onde é que a pessoa vai para nunca mais ter sofrimentos, nem sentir angústias. Garanto, porém, que não faltarão os que queiram nos vender os mapas para achar esses caminhos. Os mais astutos, obviamente, vão logo estampar o nome de Jesus, puxar aquela credibilidade que os nomes sagrados subscrevem...e para quem está perdido, qualquer lugar é caminho. Os desencaminhados inventam até salvadores na política, os grandes pais severos e conservadores, que irão consertar tudo isso que está aí...velhas necessidades de punição para um povo com tendência à autoflagelação. Sofrimento e dor não ensinam nada. Se ensinassem, seríamos todos sábios, já que não existe quem não tenha passado por dores e sofrimentos.

Semana passada, brinquei com meus alunos, dizendo que na Mitologia está tudo bem, até o momento em que deuses e mortais se encontram. Claro, vai dar em tragédia. Exemplifiquei que um deus do Olimpo tem poderes, tem tudo. Mas, olha para os mortais e sente inveja de alguma coisa. Repliquei um meme de Zeus, em que ele, cercado de deusas lindas, estica os olhos para a Terra, desejoso: “Hum, mortais!!!Quero uma!”. Eu disse que mesmo tendo as deusas a seu alcance, ele nunca está satisfeito.

A brincadeira tem este tom de verdade: somos seres da falta. Todos nós. Ao conquistar o que se quer, passa pouco tempo e já criamos novos quereres. Faz parte. É o estar aqui, é o viver no mundo que faz com que, coletivamente, tenhamos angústias, desejos, anseios, sofrimentos, variando bem pouco conforme a cultura e as maneiras particulares de cada povo pensar e se expressar. Tarefa pessoal do existir. Clichê humano.


quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Palavrinhas e palavrão


 

Há várias situações que podem despertar interesses entre as pessoas, mas por essa eu não esperava: saí de um evento político reivindicatório e fui apresentada a um novo professor, de outro curso da mesma universidade em que trabalho. Somente este seria o fato novo dentro de um contexto sem maiores surpresas. Para mim, era ele uma pessoa comum, um filho de Deus como qualquer outro sobre a Terra. Ocorre que, numa dada explicação em mesa de bar, pedi licença para tacar um sincero palavrão, porque achei ser questão de honestidade me expressar para além de qualquer palavra educada sancionada por minha condição de pessoa letrada e com doutorado. Ora, sei muitas palavras, tenho educação formal. Isso não me isenta de descer a palavra chula que melhor represente minha indignação. Pluft!: falei o palavrão, com prévia licença. Acho que isso soou como palavra mágica, ao ouvido do dito professor.

Poderia ter sido um poema, poderia ter sido “abracadabra!”, poderia ter sido uma fórmula qualquer, um dito filosófico ou versículo da bíblia, mas o que me credenciou ao generoso olhar do outro foi um palavrão.

Só notei o contexto quando recebi um convite do Tal em uma rede social (não, não tenho Instagram, não tenho interesse, não sei usar, adoro não estar lá quando tentam fuçar meus passos). Aceitei o convite e só após notar a empolgação do Tal, dei por mim que aquilo tinha um contexto.

Conto outro caso, bem recente: Campeã que sou eu em pequenas gafes que consistem em achar que, a priori, todo homem que se aproxima de mim é gay e que se algum deles elogiar a minha roupa é porque desejaria me despir e sair usando meu vestido, incorri no mesmo deslize e me abri como jaca que cai do oitavo andar, presumindo estar de conversa de comadre e não em flerte com um outro cara. Só faltei pedir a ele dicas de como colar cílios postiços, até que ele me chamou para ver um por de sol, num panorama totalmente romântico. Agora, que fiquei muda, mais de surpresa do que por timidez, o coitado desse outro deve estar sem entender nada. Penso em, sinceramente explicar, mas vai que ele possa se ofender, não é?

Já vi quem se encante por palavras, mas por palavrão, foi a primeira vez...


segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Quem vem com tudo não dança?

 



Até tentei escrever em setembro, mas não houve tempo. Refiro-me a tempo qualificado, não a essas migalhas de improviso cronológico.

Acumulam-se assuntos, acontecimentos, opiniões. Também foi um mês em que mudei muitas coisas em minha vida, tipo: topei um trabalho paralelo temporário, a ser pago em escambo direto, um serviço por outro serviço. Afirmo, contudo, que o meu é mais cansativo e demanda mais esforço, porque trabalho intelectual não existe sem o auxílio do corpo – sentar, pensar, escrever, organizar...

Outra coisa que fiz foi entrar num curso de dança do ventre. Nem era minha escolha, mas era o que havia de compatível com meu horário disponível. E daí começo esta postagem propriamente dita.

Sabemos que vivemos a ambiguidade de estarmos numa sociedade que prega a atividade física como questão saúde; mas que também oferece comodidades que acomodam e favorecem à preguiça.

Queremos fazer ginástica e congêneres (crossfit, musculação, treino funcional, etc.) para ficarmos bonitos, gostosos e sermos reconhecidos por isso. Não vale a pena mentir.

Nunca fui sedentária, mas só me dei conta disso durante uma conversa com o Homem de Capricórnio. Em especial, desde 2013 jamais larguei a academia. Durante a pandemia, eu treinava em casa como me era possível.

Nunca fui gorda, muito menos, preguiçosa. Porém, nunca vi refletidos em meu corpo os resultados de meus esforços. Acrescento que gosto de andar e ando; na academia, corro; em casa, percorro jardins com vários baldes de 12 litros cheios de água.

Como não gosto de ser mal agradecida com meu metabolismo, vou me conformar, dizendo que se a atividade física não melhora meu corpo, ajuda a não piorar. Mas, acho que entrego mais do que recebo. E eis a questão: vou reclamar onde? Já tenho a vantagem de não beber álcool; de não tomar refrigerantes nem ser louca por comidas gordurosas e clássicos como feijoada com cerveja.

Como outras coisas. Sou louca por pão e por café; por bolos e saladas de frutas cheias de caldinhas. Não sou da ortorexia alimentar. Ao contrário, morro de rir dessas histórias sobre reeducação alimentar e declaro que sou, portanto, mal educada.

Acho que vale a pena se movimentar.

Gosto de caminhar e nunca procurei atividades físicas com amigos e amigas. Odeio conversas paralelas. Gosto de estar só nessas ocasiões.

Agora que tenho que aprender a me contorcer com equilíbrio na dança do ventre, quero ver meu ventre livre.


quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Conservador pós-moderno

 


Não fui assistir ao filme da Barbie, devido às filas infinitas e ao meu pouco interesse na causa, apesar da curiosidade. Irei ver com Rosana, assim espero.

Não me furto a ver com indignada surpresa o quanto as pessoas esperam encontrar filosofia, sabedoria e neutralidade num filme sobre bonecas. E embora tenha muitas críticas excelentes, pelo que vi em pequenos trechos, esse povo que protesta, reclama e quer dar lição de moral sobre uma ficção da indústria do entretenimento, realmente é um povo que desloca o foco de coisas realmente relevantes, para poder cercear e exercer controle sobre mulheres, crianças e espectadores, porque, afinal, um filme cuja censura é de 14 anos  pode desencaminhar o público. O mais interessante é que esse povo panfletário aí não desencaminha ninguém com seus gestos de misoginia, estupidez, machismo, racismo e com as hipocrisias de comportamento que as crianças e adolescentes presenciam. Quem vê, pensa que antes da Barbie era todo mundo inocente, puro e casto.

Vamos admitir: os conservadores querem conservar a culpa nos outros e conservar seus próprios poderes de oprimir; ou querem conservar o quê, afinal? Porque se for preservar os costumes, o brasileiro tem o costume de ter várias mulheres simultaneamente; tem o costume de tratar o mais fraco como otário e tem o costume de tirar vantagem de quem ele puder – e não só de pessoas, mas dos cargos que ocupa, das instituições a que tiver acessos e coisas que você só entende quando vislumbra que certos  políticos (eleitos por causa de pautas conservadoras) já roubaram tanto, já estão milionários e continuam roubando, numa sede que nunca é saciada. Conservando-se no poder...Mas, como é o povo que coloca tais figuras lá, vê-se bem que conservador é o eleitor que se conserva votando igual, ajudando a conservar os mesmos sobrenomes da política e, obviamente, conservando a impunidade. Conservar é manter e repetir – repetir que ‘foi um caso isolado’ embora ocorrido pela centésima vez, por exemplo...velhas desculpas sempre acatadas em silêncios cúmplices.


terça-feira, 18 de julho de 2023

Os estranhos na casa do EU

 


Vivo a pedir a Deus para poder esquecer os homens de quem gostei. Os meus relacionamentos sempre chegam a esse ponto. Reclamo de mim mesma, protesto, faço promessas internas, me apego aos defeitos do meu par; revisito situações desagradáveis e, depois, perplexa, me pego em conversas francas com Freud, lembrando que ele disse que “ O EU não é senhor em sua própria casa” -  pois é, há camadas desconhecidas, irracionais, inconsciente, subconsciente e um monte de inquilinos ocultos a dar ordens e tomar cômodos e incômodos e “sub-locar” a casa do Eu. Há momentos, porém, que a casa do meu EU se converte numa pensão barata sempre a desafiar o senhorio.

Pois, bem: foi esquisito e super esquisito constatar que eu não quero nada com o Poeta – sim, o poeta, este de quem nada se fala, de quem pouco se fala e que, a bem da verdade, significa tanto para mim quanto o futuro do Benfica em uma partida contra o 15 de Piracicaba, isto é, insignificante, improvável e fora de cogitação. Mas, acontece que ele fez malabarismos telefônicos para tratar comigo. Naturalmente, os tédios matrimoniais e o peso das angústias bateram certeiro nele. Não sou a solução para isso. Porém, não aguento mais a insistência e os rituais previsíveis. Não é mera questão de repetir o ‘não’, mas a coisa estranha em que se torna esse não querer e esse não gostar. Não gosto mais dele. Mal me lembro de quando gostava. Lembro, entretanto, das dores da separação.

Sexualmente, ele foi o homem que me trouxe maturidade sexual. Muito importante para mim, para a minha vida. Talvez ele tenha se apegado a esse quadro da parede das memórias.

Isso me causa angústias.

Tenho histórias por demais acumuladas para contar sobre outras personagens – deixei de escrever porque o tempo estava escasso.

O Poeta deveria saber que nunca seríamos o que um dia fomos. Ele casou com outra. Isso tira o glamour, tira camadas de matéria do desejo, estabelecendo em mim uma anulação, como se ele não fosse mais homem -  admiro a obra dele, acho ele bonito e etc., mas  o afeto foi embora e deu carona para o desejo. Ele se tornou uma figura pesada, um lar para onde não se volta- entendo o “Mas, já não há caminhos para voltar” – e mesmo que não se tratasse simplesmente de um homem casado que se entediou do casamento, eu jamais voltaria à casa dele, aos encontros de antes. Acho que romanticamente, por eu não assumir relacionamento com ninguém após nossa separação, em 2020, ele acredite que estou disponível e à espera dele; pode pensar que disputo vaga e aguardo convocação. Nós, mulheres, passamos essa impressão porque tratamos com Amor a quem gostamos, amamos ou queremos. Devo ter transmitido extrema confiança afetiva a ele. Todavia, não dá, não tenho interesse no contato, se bem desejasse ser amiga. Amiga é amiga com AMIZADE  e sem SEXO.

Vivo a pedir a Deus que me livre dos meus sentimentos pelo Homem de Capricórnio, de quem ainda gosto e não deveria gostar, não quero gostar. E quando deixo de gostar fico com um incômodo absurdo, com um cômodo vazio, com a vaga no coração...e o EU, que não é senhor em sua própria casa, espera novos inquilinos. Meu EU: imóvel.


MILAN KUNDERA: O adeus insustentável

 



Milan Kundera morreu após quase um século de vida. Nenhum livro dele foi melhor que A insustentável leveza do ser. Nenhum outro livro teve tal influência sobre a minha vida a ponto de ser o que ele é para mim e para meu contexto. Li aos 23 anos. Li outras três vezes no decurso de minha vida; e a cada leitura o encantamento persiste, o amor continua e se consolida com o tempo.

Quem quer romance, vai encontrar romance em A insustentável leveza do ser. Vai encontrar filosofia, história, cultura, música...eu, encontre tudo isso e encontrei a mim mesma.

Partindo de paradoxo formulados com a filosofia de Nietzsche (peso que esmaga, leveza que  deixa solto à mercê do vento) deságua na pergunta do narrador composto por Kundera: “Então, o que escolher? O peso ou a leveza”.

A trama amorosa que liga Tomaz, Tereza, Sabina e Franz costura-se ao tecido da política, às existências de escolhas, crises e acasos.

Tomaz cria regras para si mesmo: não ter mais que três encontros com uma mulher, não compartilhar o sono com nenhuma mulher. Tereza torna-se a exceção:

“Ele estava mesmo surpreso. Agia contra seus princípios. Há dez anos, quando se divorciara da primeira mulher, viveu seu divórcio numa atmosfera de alegria, como outros comemoram um casamento. Compreendeu então que não nascera para viver ao lado de uma mulher, qualquer que fosse ela, e que só poderia ser um celibatário. Esforçava-se, portanto, cuidadosamente para organizar seu sistema de vida de maneira tal que nenhuma mulher jamais viesse se instalar com mala em sua casa. Por isso só tinha um divã. Se bem que fosse um divã largo, dizia às suas companheiras que incapaz de adormecer na mesma cama com quem quer que fosse, e levava-as sempre de volta depois da meia-noite.” (KUNDERA, 1988, p.15)

Para ele, há sinceridade nos afetos próprios – o mesmo que o faz declinar dos ‘vagos sentimentos de paternidade’ ao perceber o jogo de chantagens que a ex-esposa fazia, marcando e desmarcando encontros entre pai e filho, manipulando e implementando alienação parental. Todavia, é evidente a fuga do amor – por isso, ele cria regras que equivalem a obstáculos para o germe de sentimentos.

Experimentando, ao longo do romance, vários casos sexuais fortuitos, instaura em Tereza a dor da eterna insegurança pelas traições sofridas, testemunhadas e presumidas. Entretanto, quando é ele a sentir ciúmes, de causas imaginárias e projetivas, sofre intensamente:

“Não havia nada mais fácil do que imaginar Tereza e esse jovem colega como amantes. Era essa facilidade que o magoava. O corpo de Tereza era perfeitamente imaginável num abraço amoroso com qualquer corpo de homem, e essa ideia o deixava de mau humor. Tarde da noite, quando voltaram, ele revelou-lhe que estava com ciúmes. Esse ciúme absurdo, nascido de uma possibilidade toda teórica, era prova de que ele considerava a fidelidade dela um princípio inatingível. Mas então, como poderia ele ter raiva do ciúme que ela sentia de suas amantes mais do que reais?” (KUNDERA, 1985, p 23)

 Estranha a si mesmo, quando, tempos depois, após sete anos juntos, Tereza o deixa e volta para Praga. É a leveza...

“Esse estranho encantamento melancólico durou até domingo à noite. Na segunda-feira tudo mudo. Tereza irrompeu no seu pensamento: sentiu o que se passar com ela ao escrever a carta de adeus; sentiu como suas mãos tremiam; podia até vê-la segurando com uma das mãos a pesada mala e, com a outra, a correia de Karenim; imaginava-a girando a chave na fechadura do apartamento de Praga, e sentia em seu próprio coração a desolação que lhe aflorou ao rosto quando abriu a porta.

Durante esses dois belos dias de melancolia, sua compaixão (essa maldição da telepatia sentimental0 tinha se acalmado. A compaixão dormia como um trabalhador das minas num domingo, depois de uma semana de dura labuta, para poder voltar a trabalhar com intensidade na segunda-feira.” (KUNDERA, 1988, pp. 36-37)

Acompanham esses episódios outros tantos de decepção com o sistema político, com retrospectos na História, que formam um mosaico lógico na narrativa: “Todos os crimes do Império  Russo foram perpetrados à sombra de uma discreta penumbra. A deportação de um milhão de lituanos, o assassinato de centenas de milhares de poloneses, a eliminação dos tártaros da Criméia, tudo isso ficou gravado na memória, sem provas fotográficas, como uma coisa indemonstrável, sujeita mais cedo ou mais tarde a passar por mistificação. Ao contrário, a invasão da Tcheco-Eslováquia em 1968 foi fotografada, filmada e guardada nos arquivos do mundo inteiro.” (KUNDERA, 1988, p. 72).

Discussão densa que deixou para nós, mesmo agora, pistas consideráveis sobre a situação atual da Criméia – a anexação. Sob a ficção, tantas verdades; sob a narrativa em prosa, tanta poesia; sob a poesia, tantas músicas (de Beethoven, sobretudo), imagens, ideias...um grande livro de particular significado para mim.

 


quarta-feira, 14 de junho de 2023

O lugar do Outro

 


Fala-se muito que devemos nos colocar no lugar do Outro. Sabemos que assim procedemos para antever o impacto de nossas ações sobre os outros, mas nós nunca seremos eles.

De fato, é um bom recurso e não deve ser entendido apenas como um gesto cristão ou como um ato de educação. Colocar-se no lugar do Outro é, em certa medida, usarmos a nós mesmos como régua. Desta forma, pensamos: “e se fosse eu a ouvir isso?”; “e se fosse eu a passar por isso?”. Deveria servir para atenuar o peso do que vamos fazer ou dizer.

Parece difícil e complicado, porque também fazemos coisas aos outros e as ocultamos. Portanto, o que os olhos não veem não nos faz inocentes – nos faz sagazes.

Entretanto, excetuando que, no caso em questão, ocultamos algo não por malandragem deliberada, mas para poupar o Outro, significa que nos colocamos tanto no lugar dele, a ponto de adiar verdades, ocultar fatos, por receio de magoar. Então, é muito difícil comunicar ao parente que a gente não retornou à ligação recebida porque não quisemos, não gostamos dele, não queremos tal contato.

Como dizer a uma pessoa que nós não prezamos a mãe dela devido ao fato de que a genitora citada tem muito mal caráter? Naturalmente, me volto a situações que nos forçam a um contexto assim. Para as outras, escapamos escamoteando, evitando.

Quando se trata de flagrantes, eu, particularmente, jamais contaria sobre traições ou coisas de vida de casal, coisas particulares. Definitivamente, não somente não cabe como também pode ser artimanha de quem não procurou ser discreto: já flagrei marido de colega de trabalho em públicos desfiles com variadas amantes. Ele gostaria que alguém contasse à esposa dele, de forma a abreviar o término. Coitado! Nunca contei...

Quando sentimos inveja, nos colocamos no lugar do Outro: queríamos tanto merecer o que a pessoa X tem; viver o que a pessoa X vive; estar onde a pessoa X está. Achamos que somos mais dignos e mais merecedores que os invejados, sem lembrar que o Outro é o Outro e não cabe a nenhum de nós fazer julgamentos que favoreçam nosso ponto de vista. A vida tem injustiças, claro. Todavia, aquela é a vida do Outro, o contexto do Outro...E só fiz a comparação para poder mostrar os abismos que vivemos e de que ninguém está a salvo.

Achamos que estamos numa novela, com vilões e mocinhos – e nós, claro, somos gente boa, somos mocinhos – torcendo por justiças num final feliz. Não estou acima disso. Sou humana, tenho sonhos e tropeços.

Acrescento que sobre essas coisas, a psicanálise tem me feito muita falta. A viagem dolorosa para dentro de si, com espelhos e retrovisores voltados à nossa subjetividade, me faz muita falta e até hoje não me recuperei da morte de minha psicanalista.

Tentei outro profissional, já tratei dele aqui, porém, além de ter sido uma experiência ruim, oca e inútil, agravou meu luto por minha analista, a tal ponto que eu nunca mais procurei nenhum profissional da área.

E cá estou, me colocando no lugar de um Outro e segurando as rédeas de um cavalo bravo, que eu mal domino e que pode disparar. Não sou boa amazona e me vejo cansada de exercer a força e o equilíbrio que nem me são próprios.

Entendo quem toma álcool para tomar decisões – anestesia boa que, posteriormente, pode ser alegado em legítima defesa (ora, mas eu havia bebido!).

Neste momento, há várias pessoas com quem eu gostaria de romper, de vários setores de minha vida...E seria tão melhor se elas saíssem sozinhas, se percebessem a hora de ir, de deixar a festa, de encerrar a visita...Dou sinais de meu cansaço, bocejo, invento ocupações, evito coincidências sociais...

Será que elas se colocariam em meu lugar?

 


domingo, 7 de maio de 2023

Que tal um samba?



Fiz aniversário em 12 de abril. Não foi ruim. Foi um dia bem especial, com uma noite maravilhosa. Completei minha comemoração no domingo anterior, dia 30 de abril, quando fui ao show de Chico Buarque, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador.

Eu nunca havia ido a um show dele. Não paguei caro no ingresso, mas tive muitas despesas para estar em Salvador, já que moro a 115km de distância da capital baiana. Valeu tudo, todo tempo e todo dinheiro investidos. Show incrível, com uma banda soberanamente profissional e a presença marcante de Mônica Salmaso – ela, sozinha, já é uma orquestra de serafins.

Depois deste show, a que fui sozinha e saí com 5 novos amigos e uma amiga em particular, dei graças a Deus por aquele público ser daquela forma, com um perfil educado e amistoso. Decerto, fui advertida sobre isso, mas coloquei na conta de preconceitos e estereótipos. Não, não era. Era um público diferenciado mesmo. Parece que, de fato, não há como ser fã de Chico Buarque e ter certas práticas...Não era caso de classe social, não. Era caso de perfil cultural. Embora se localizassem bolsominions na plateia – revelados pelos palavrões proferidos diante da execução de “Que tal um samba?”, nos versos:

"Depois de tanta mutreta
Depois de tanta cascata
Depois de tanta derrota
Depois de tanta demência

E uma dor filha da puta, que tal?”

Diante do que, me perguntei o que um ser sofredor deste tipo fazia ali, num show de um homem lúcido de Esquerda e com uma plateia com aversão aos dogmas da Extrema Direita (gente de Esquerda que acredita em ciência, defende vacinas, não compactua com discriminações de gênero, etnia, religiosidade, etc). E chamo de ser sofredor porque é um ser humano deslocado, que luta contra a realidade e possivelmente lute consigo mesmo para conciliar o gosto musical e a discordância ideológica. Sofredor, também, porque entre as palavras, opiniões e conclusões de Chico Buarque e um cantor sertanejo de mídia contemporânea, há imensa discrepância e, sinto muito, mas há uma profunda diferença cognitiva, de modo que eu nunca deixaria de dar crédito a Chico Buarque, para dar àquele lá, cujo nome estou me esforçando por lembrar...Ah, Gustavo Lima (eu ai dizer que era Luan Santana, porque também não sei nome de ninguém e acho todos eles iguais).

Voltando ao caso: não tive vontade de ir a show mais algum durante a semana e muito menos ontem, quando teve show de Vanessa da Mata. Gosto dela, mas ainda estou saboreando o show de Chico. Ainda estou com aquele sabor remanescente de um prato saborosamente experimentado.

E, juntando as partes desta nossa prosa, queria também dizer que mudei muito e pude perceber isso no decurso do meu mês de aniversário. Não foi somente envelhecer, foi ver a vida com os filtros dos olhos adultos – mais maduros e também mais cansados; mais seguros, mas levemente embaçados, abrindo, fechando, pestanejando como cabe ao vivos, meus olhos vivos.


domingo, 19 de março de 2023

Temos nosso próprio tempo

 


Dar um tempo. Quem nunca disse ou nunca ouviu isso de alguém? Porém, o tempo é nossa maior moeda e a gente não anda dando essa riqueza assim como pensamos, não. Principalmente, para nós mesmos. Somos econômicos em dar um tempo para nós.

Logicamente, a expressão ‘dar um tempo’ é mera desculpa para a gente se desembaraçar de alguém, de acabar discretamente um relacionamento – espera-se que o outro entenda isso; e é um modo de se desvencilhar de alguém, deixando-o em stand by, porque a gente dá um tempo para viver outras coisas com outras pessoas e, se der errado, teremos alguém à nossa espera. Porém, à parte minha ironia e sincericídio, dar um tempo para nós não é simplesmente reservar uma parte do dia para cuidar do cabelo ou ler um livro: é ter mesmo paciência consigo mesmo.

Quando a gente ama quem não deveria amar e, finalmente, se toca da necessidade de cortar o vínculo e esquecer, somos impacientes com nosso processo de luto e de esquecimento.

Não há cronogramas fixos, mas a gente sabe que é sempre proporcional ao tempo do relacionamento e à intensidade do que foi vivido. Mas, um ano é um bom tempo. Eu já disse, aqui, minha exceção: levei dois anos e sete meses para esquecer completamente o Ex-Grande Amor da minha Vida. Foi um esquecimento real, de um amor real. Durou demais o amor em mim.

Ficamos impacientes conosco mesmos por uma questão lógica: queremos acabar com o sofrimento, queremos seguir em frente, queremos que a angústia passe.

Por vezes, como não se sentir otário, um completo imbecil, por sabermos que deveríamos esquecer a pessoa, termos interesse em esquecer, mas nenhuma condição real de esquecer e somos surpreendidos, perdendo tempo ao pensar em quem sabidamente não deveríamos pensar?

Nos primeiros meses, normal é ser lento para esquecer: ainda há esperança de que o Outro reconheça nossas qualidades; que ele se modifique, que algo aconteça para regenerar o afeto e a relação...então, jogamos o esquecer-esperar.

Reforço: não seja besta de achar que amar a quem te ama, amar e ser correspondido, garante sucesso no amor, na relação. Pode acordar: amor é apenas um aspecto de um relacionamento – acrescento, ainda, que tem gente amiga que eu amo muito, mas não quero conta, não quero amizade, não quero perto de mim. E mais: tem parente que eu amo, amo bem de longe, porque de perto só dá briga. Portanto, peço desculpas em nome de quem te enganou e vendeu a receita errada. Amor, para dar certo, precisa mais do que amor (respeito, afinidades, reciprocidades, acordos, etc).

A hora de desistir depende de campo de visão, de esgotar dentro de si todas as esperanças, de se convencer de que basta, que nada mudará. Mas, é um percurso seu, particular. E dói muito deixar quem a gente ama e quem a gente quer. A meu tempo, doeu largar um emprego cujo salário eu amava. Tenho muitas saudades daqueles proventos, mas não me fazia bem. Há custos emocionais, custos do bem-estar psicológico, que não tem dinheiro que pague.

Não é fácil pedir exoneração, não é fácil terminar, não é fácil dizer um não, porém, muitas vezes, é o caminho da cura.

Tenha paciência consigo. Temos nosso próprio tempo. Não há como acelerar esquecimentos com áudios de hipnose, nem com remédios, nem com outras pessoas, nem com promessas. Mas, não está proibido tentar nenhum método. Às vezes,  a eficácia simbólica de fazer uma promessa ou de fazer qualquer coisa com o objetivo do esquecimento, ajudam. É uma ilusão ‘consciente’, como uma meta.

Remédio ajuda, caso a separação gere sintomas físicos, tipo perda severa de apetite ou insônia. É um recurso para manter a vida, mas tem tempo determinado para ser usado.

Sem querer repetir fórmula pronta, afirmo que atividade física ajuda mais do que se pode imaginar: se mexer é fundamental; ter uma rotina boa, de gasto de energia e de concentração, ainda que forçados, valem a pena. Incentivar a disciplina e incorporar um novo hábito ajuda a dar outra cor ao seu dia.

Não caia na loucura da autoajuda e nos delírios gratiluz: pensamento, sem ação, é sonho vago. Ninguém vai resolver a sua vida por você. Ela é sua. Ler vai ajudar, viajar vai ajudar, procurar outras fontes de prazer vai ajudar...a esquecer? Não, a sobreviver.

O pensamento vai girar e cair no mesmo ponto, fazendo você lembrar de quem deveria esquecer. Não se desespere. Aceite. Olhe para si e reconheça se ainda ama, se quer a pessoa, se tem desejos de vingança...olhe para si com sinceridade e reconheça seus afetos. Não precisa contar aos outros, precisa identificar o que sente.

Não sinta ódio por não conseguir atingir a meta do esquecimento. Quando você esquecer, mal perceberá: é como uma paisagem que vai ficando pequena conforme você se afasta. O outro vai ficando pequeno, diminuído, até desaparecer. E o afastamento não precisa ser material, físico, concreto: afastamento afetivo é o que faz, por exemplo, um casal viver juntos e não se gostar. Nem sempre o estar juntos significa amor; nem sempre o estar separado significa esquecimento, do mesmo modo que se pode estar sozinho numa relação a dois, em que o parceiro é distante. Geralmente, quem termina a relação já estava fora dela, já estava longe em sentimentos, a gente é que não viu. E assim, para nós, que já gostamos de outras pessoas e deixamos de gostar, sabemos que isso não dura a vida toda. Tudo passa. O que não vale é forçar a barra, porque você iria odiar ter que ficar ao lado de quem você não quer – seria o mesmo que manter na prisão aquele prisioneiro que já cumpriu a pena, num  castigo desnecessário e injusto, onde estar conosco é um recurso artificial para mandar na vontade do outro. Tenhamos dignidade.

Tenhamos paciência.



terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A exaustão das idades


Há aprendizados que só a idade traz. Claro que há pessoas adultas, idosas e babacas, mas estou aqui falando de todos nós que temos a decência de cuidar de nossa maturidade intelectual, moral, emocional/psicológica, ainda que sabendo que em alguns aspectos podemos ser infantis ou carregar traumas de infância.

Aqueles que fomos, às vezes, é somente uma marca no passado. Às vezes temos até vergonha de termos sido como fomos – e deste ponto, haja maturidade para se perdoar e entender que aprendemos a ser diferentes. A transformação a que me refiro não é aquela decorrente de querer agradar ao Outro, a tentar corrigir um defeito e ser como pai, mãe, namorados, gostariam...trato daquela outra transformação em que é você mesmo que vai girando o leme e colocando o barco em outra rota, naturalmente.

Quando escrevo aqui no blog, falo muito de mim mesma até quando estou tratando sobre os outros. Nem tudo é autobiográfico, mas quem escreve coloca muito de si, inclusive no modo que escolhe narrar, se expressar. Há uma assinatura invisível no que se conta – até no que se repudia, na forma como se manifestam indignações.

Já citei o quanto me entristece quando as pessoas que me são íntimas inventam de colocar em perfis sociais apenas as imagens de quando elas eram mais novas. Pequeno adendo: Este blog existe desde 2009. A foto que está aqui no perfil é daquela época e tem uma razão para isso, que é a minha vontade de deixar a imagem como registro de nascimento da página, de como eu era naquele tempo. Várias vezes deixei em postagens fotos mais recentes minhas. O caso não é querer parecer ser novo. O caso é que o relógio não gira para trás.

A suposta novinha de hoje, o novinho de hoje, se muito permanecerá novo não excederá uma década. É disso que eu quero falar: o processo é muito rápido.

Da infância para a adolescência, o tempo é pouco. Ter 11 anos é confortável. Ter 15 anos é a porta do caos. Ter 19 anos é o ápice das angústias, é o tempo dos ajustamentos e dos desajustamentos também. Agora, vou falar de mim mesma: eu não seria feliz se tivesse casado e tido filhos entre os 19 e os 25 anos, conforme a maioria de meus amigos. Deveria ter um decreto proibindo as pessoas de casarem antes dos 25 anos (estou brincando, viu, gente?!). Quem disse que você é adulto só porque o calendário avançou para 24, 25 anos? Adulto na idade, sim; maturidade consolidada, ainda não. E nisso, a vida segue: universidade, trabalho; mestrado...pluft! 30 anos. Hora da crise. Hora de quem casou, descasar; de quem é solteiro querer se enroscar; hora de questionar às próprias decisões; hora de se sentir perdido e idiota igual foi na adolescência...Hora de trocar de emprego, de ter carro ou de trocar o que tem. Opa: hora da maturidade sexual verdadeira. É o que geralmente acontece: o seu corpo finalmente é seu; passou a vergonha e passou os esforços para agradar aos outros; a pessoa passa a ser seletiva...35 anos, hora do doutorado (começar ou concluir) e hora de cuidar do corpo – acabou a brincadeira, chegam os cabelos brancos e as ameaças de barriga e de flacidez...

De repente, 40. Medo puro. Medo de se sentir velho e medo de estar velho. Começam os piores exames médicos do resto de nossas vidas e você já começa a reparar se o novembro é azul e se o dezembro é rosa...hora de consumir colágeno em pó (em cápsula nunca, pessoal!). Daí em diante, como dizem, é só ladeira a baixo. Sua cara vai mudar pouco dos 30 para os 40 – se você usar filtro solar, então...

Chegando aos 45-47 aí, sim, a sensação de ser ‘coroa’ – o espelho te fala cada coisa!

Mas, bem: para quem não morre, o destino é envelhecer.

Não tema, apenas se cuide.

Procure não ser o babaca que vive dizendo que a idade está na mente. Isso não é verdade, a idade está na gente todo. Temos a sorte de não aparentarmos tanto a idade como antes. Há até uns sites sobre como as pessoas eram velhas nos anos 80 do século passado – olha, nasci no século passado, no milênio passado...e daí?

A maturidade psíquica faz você não se ofender à toa. É chato terem tons depreciativos para tratarem comigo/conosco? Sim. Odeio ser chamada de ‘tia’, mas como professora, acho conveniente ser chamada de senhora.

Odeio a cultura machista, que coisifica as mulheres com as velhas piadas de ‘trocar uma de 40 por duas de 20’, como se os homens não envelhecessem; porém, essa implícita comparação com um carro me leva à outra: entre um carro e outro, o dono não envelhece?

As mulheres reciprocamente se depreciam, adotam a mesma lógica dos homens, chamando-se de velhas, louvando carecas e barrigas masculinas imensas. Mas, não deveria ser essa a guerra, não deveria haver vergonha em exibir datas de nascimento, (porém, há porque sempre haverá julgamento).

Novamente, lembro de um episódio da Família Dinossauro, chamado ‘O dia do arremesso”, em que a sogra de Dino, devido à idade, deveria ser jogada de cima de um penhasco – e dali o episódio conta várias coisas e traz metáforas fantásticas sobre o envelhecimento.

Meu medo da velhice é de ordem social: não poder mais andar de roupa curta e de cabelo comprido (a sociedade odeia mulher velha com cabelo comprido, não pode usar franja também); não poder ir às aulas de axé, nem usar patins, nem ir à musculação; nem cantar as músicas contemporâneas, nem usar batom vermelho-alaranjado; nem ostentar cores fortes nas roupas...nem ir a festas sozinhas ou sair para dançar...não pode, pelo menos no Brasil, não pode.


domingo, 26 de fevereiro de 2023

Pequenas histórias sujas

 


Há aspectos que nos lavam a alma, outros que nos limpam a mente – como bem dizem, há higiene mental - e, entre um e outro, o campo privativo de estar-se consigo mesmo, sozinho.

Poucas pessoas entendem a minha necessidade de ficar sozinha. Não entendo quem viva de grude nos outros ad eternum, como não entendo quem renuncia à privacidade, apenas por medo da solidão.

Gosto de abraços, de carinhos, do riso dos amigos, da comida compartilhada, de ter com quem comentar minhas impressões sobre um filme, de planejar sair, de planejar estar juntos, mas, nunca achei interessante viver em família, viver em casal. A pandemia mostrou o alívio que é, para um casal, precisar sair para trabalhar. Finalmente, um tempo longe uns dos outros para, de noite, um reencontro; para, num fim de semana, estar-se juntos.

Não acho justo nem bonito que o nosso par nos veja depilando o buço, pintando o cabelo, com uma touca de hidratação na cabeça, sem o glamour que a gente exibe ao se encontrar com aquela pessoa. Aliás, é fonte de vida poder se arrumar para alguém...escolher a roupa, o perfume, se apresentar da melhor forma possível e não com os odores domésticos do cozinhar ou os suores das tarefas cotidianas.

Privacidade é fundamental, assim como higiene pessoal.

O Homem de Capricórnio odiava banho, mas sempre elogiava meus cheiros. Pegava em mim, feliz, por causa de texturas e cheiros e, provavelmente, só no último dia em que a gente se viu, ele percebeu o valor que eu dava à higiene. Nunca foi somente uma questão de higiene: era o bem-estar. A higiene dá segurança e conforto para todo mundo – cheiros repulsivos espantam; falta de banho é sujeira e porcaria mesmo, porque o corpo produz gorduras, secreções que, com o tempo e o contato com a atmosfera externa são repugnantes. Eu sei que no mundo dos fetiches há pessoas que gostam até de pés suados e de suores em geral. Eu não.

O Homem de Capricórnio me viu pegar um lenço umedecido e passar atrás da orelha dele, sob o pretexto de retirar um pelinho solto que, entretanto, grudava na pele. Ele comentou sobre minha diplomacia com a falta de banho dele, eu desconversei. No dia seguinte, ele já me encontrou após ter tomado banho.

No começo de nossos encontros, ele brincava e dizia que ‘ia tomar o banho da semana’ para me encontrar. Eu achava que era brincadeira. Até ir notando que ele deixava de me ver porque não queria ser compelido a tomar banho.

Eu fiquei muito triste ao perceber.

Lembro de nossa primeira viagem juntos, no inverno, com chuva, a uma praia. Tomei banho ao chegar, ao descer do barco. Tomei banho ao sair para a praia. Tomei banho ao voltar da praia naquele mesmo dia. Ele não se envolveu com a água do mar, muito menos com o chuveiro. Foi esquisito, decepcionante, mas não foi conclusivo para mim, porque, afinal, chovia e era inverno.

Certa vez, dei-lhe um beijo no pescoço e fui embora. Ao encontra-lo, três dias depois, vi uma marca de batom e comentei, enraivecida. Puxei o espelho e mostrei a ele, que não me disse nada. Ora, era a mesma marca que eu deixei...ele simplesmente não tomou banho por três dias.

Acredito que ele não goste mesmo de banho e muito menos de obrigação. Em todos os comentários dele, tipo: “não vou tomar banho para ir ao shopping porque quero contrariar a burguesia”, eu via brincadeira, nunca achei crível ou sério aquilo. Ainda mais em se tratando de um adulto, independente, elegante, doutor, culto...demorou para eu compreender. Uma coisa é o hábito, outra coisa é a doença.

Já comentei aqui sobre meu único tio paterno. Não é ficção, nem sensacionalismo, exagero ou mentira: meu tio fica nove meses sem banho. Sem banho é zero banho. Ele passa álcool nas mãos, ele lava apenas a cabeça, em caso extremo, por causa da pintura/tintura. E o faz na torneira do jardim. Banho, nunca. É para ele, uma tortura. Nem quando sai do hospital, nem quando está no hospital, meu tio JAMAIS toma banho. Posso responder agora mesmo a data do último banho que ele tomou: 06 de janeiro deste ano, ao ser conduzido ao hospital por mim. Porque eu exigi, pois eu não iria acompanhar um ser humano sujo, perfumado por colônias fortes que não abafam o mau cheiro.

Difícil não achar patologias sob a repulsa e o medo do banho - para eles, um pavor.

Não tomo banho por causa dos outros. É parte de um prazer, de estar sozinha, de um cuidado pessoal gostoso, de cantar no chuveiro ou emudecer em pensamentos íntimos e livres, é a delícia de escolher perfumes até para dormir...aliás, me dá muito conforto tomar banho para dormir.

Tomar café de manhã e tomar banho em seguida me desperta como que num ritual para me acordar para a vida, como um batismo para cada dia.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

As alianças e os aliados

 



Eles me puseram a pensar. Eles, quem? Um casal bem conhecido da mídia, que renovou os votos do matrimônio neste último fim de semana. Ora, um casamento não-monogâmico, isto é, sem pacto de fidelidade; com prévio escândalo público por ciúmes da parte da esposa para com outro homem (sim, um terceiro na relação), algo repleto de palavras injuriosas e palavrões e barracos.

Por vários motivos isso me deixou pensativa: qual a necessidade de confirmar, repetir e reforçar publicamente algo que, em sua primeira cerimônia, já se afirmou ser ‘até que a morte os separe?’ O que penso, verdadeiramente, é que isso funciona sob mesmo modus operandi de ter aquele filho que segura o casamento, o filho estratégico para a hora da crise, o filho para amarrar o outro. Poderia ser amor, mas é somente insegurança.

Soa, por outro lado, como um ‘desmentido’ à sociedade, como se procurasse afirmar que o casal está bem, junto e unido – a despeito de comentários sobre o término do relacionamento.

Interessante, também, é a conotação de gênero sob o cerimonial. Diz-se, com muita frequência, que isso é coisa de mulher; que espetáculos de matrimônio e cerimônias pomposas são coisas de mulher.

Isso tem raízes mais profundas: por quê tentar segurar ao seu lado quem já demonstra não lhe querer? Já ouvimos falar de ‘trabalho de amarração’, que é o equivalente a amarrar mesmo, ao seu lado, com você, alguém que não te quer; amarrar e fazer permanecer artificialmente; prender. Deixar na gaiola o pássaro cujo som, o pedido de socorro, você julga que é um canto, uma música. Novamente, se dirá que trabalhos de amarração são coisas de mulher.

Deixa.

É humano não suportar uma rejeição. Dói. Desintegra o amor próprio, que vira partículas, uma farofa, um pó. Mas, e a gente, nunca rejeitou ninguém? A gente nunca disse ‘não’ a quem não desejávamos e nunca quisemos nos ver livres de quem já não nos interessava? Então, é uma questão humana.

O que pode ter havido é um certo cuidado na comunicação disso ao outro. Amor passa. Sentimentos se modificam.

Vivemos no tempo das covardias emocionais: campanhas para pregar o desapego sentimental, ‘pegue e não se apegue’, ‘não crie expectativas’, ou seja, é proibido sonhar; é proibido se apaixonar ou, como diz o funk, ‘se se apaixonar, se prepara para o sofrimento’. Aí a música socialmente desprestigiada acertou em cheio: “se prepara para o sofrimento”, isto é, não há como viver e não sofrer, seja por amor, seja por frustrações e decepções. Não adianta ser linda, lindo, milionário: não tem analgésico contra as dores do existir.

Alguns dirão que é melhor sofrer no luxo do que sofrer na miséria; que uma dor de amor no boteco do subúrbio, chorado com cerveja barata é menos digno do que uma dor ricamente sentida sob o gosto da champanhe. Não, meu bem, não: a qualidade da janela não mudará a paisagem e a moldura não salvará o quadro. Dor é dor, só muda o quanto você pode ter acesso a bens. E quem está infeliz, estará em infeliz em Paris ou na favela. E que isso não seja interpretado como um conselho a que a pessoa, quando entristecer, fique em casa. Ao contrário: é preciso se movimentar.

Quando esses assuntos que se associam a coisas de mulher passam a ser vividos no masculino, o resultado da rejeição é morte e violência. Os homens são ainda menos preparados para o sofrimento e pior ainda para a rejeição.

Quantas vezes lemos e ouvimos o famoso PORQUE NÃO ACEITAVA O FIM DO RELACIONAMENTO? Esse clássico que alicerça tentativas de homicídios e homicídios qualificados está sob os casos de feminicídio, essa coisa de ser humano despreparado para o sofrimento, para o luto, para as perdas, para um mundo que não quer obedecer à sua vontade e que parece não ter sido feito para isso.

Mas, desde criança, se o cachorrinho morre, mamãe compra outro. Aí evita a dor da perda, substitui e deixa a criança achar que pode comprar tudo, que tudo é objeto. Ela não processa a falta, nem elabora a perda. Ou, ao contrário, escuta um ‘ENGULA O CHORO!’ e um ‘SE CHORAR, APANHA!’, que resulta em nova subtração de experiência emocional real.

O que tudo isso aqui aponta é para a manipulação das emoções. Obviamente, a gente tenta se proteger. Crescemos e temos noção sobre bem, mal e consequências...e sabemos que cálculos morais nunca são exatos e plenamente previsíveis. Justamente  por isso, não podemos ser inconsequentes.

Há coisas que são particulares, individuais, e cada um responde de uma forma a tais coisas – o que traumatiza um, fortalece ao outro e, até, pode ser insignificante para um terceiro. A qualidade da experiência, a forma lúcida com que as coisas são percebidas, essas, sim, influem sobre o amadurecimento emocional de alguém – o resto é infantilidade, é batizado de boneca.




sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Boas vindas, boas vidas!

 

Eu quero, verdadeiramente, desejar um excelente 2023 aos meus leitores - os eventuais, os acidentais e os assíduos.



Espero que vocês tenham suficiente condições e disciplina para conquistar o que desejam e o que precisam - que saibam diferir o que DESEJAM e o que PRECISAM e que, a essa altura da vida, tenham consciência de que 'nada vem de graça, nem o pão nem a cachaça', como cantou Zeca Baleiro. As coisas boas não virão sozinhas. Se o acaso te favorecer, ajude-o!

Desejo que façam bom usa da liberdade e da independência!

Desejo, ainda, que o bem-estar do país esteja acima das divergências, dos delírios e das vaidades.

Quanto a mim, escrevo quando posso e espero poder mais neste ano!

Feliz ano novo, gente!

Culpa no Cartório

 




Escolhi utilizar as palavras e expressões que se segue, a fim de me fazer compreender e não porque concorde com elas. Então, vamos lá!

Namorei, ao longo da minha vida, três filhos sem pai. Eram pessoas maravilhosas e cientes de que aquela ausência de um nome paterno no Registro Civil e em suas derivações (RG, por exemplo) significava que a mãe ficou sozinha com a gravidez e a responsabilidade pela criação do filho. Elas não eram exceção.

Muitos dos que hoje defendem à família, se ausentaram dos seus papéis paternos – entre famosos e anônimos, entre aqueles que fugiram ou negaram a paternidade. Tinham culpa no Cartório, como diz aquela velha expressão disseminada no tecido cultural do brasileiro. O Cartório de Registro Civil de Nascimentos, naturalizou as ausências - filho de pai desconhecido (como se a mãe houvesse tido sexo com alguém sem nome, com um estranho, com um qualquer).

Em 2013, terminei com um homem ao saber que ele não assumiu seu papel de pai. Sei que é impossível dar o amor que não temos por alguém. Também sei e concordo que o laço de consanguinidade não traz o afeto obrigatório. Todos sabemos que há parentes que nos são indiferentes, outros com os quais não estabelecemos relações de confiança e amor; e, no geral, também sabemos que JAMAIS PERDOAMOS MÃES que não amam seus filhos ou que agem como os homens que citamos acima. Até nisso o machismo protege aos homens.

Reconheço, entretanto, que se um homem se propõe ao sexo com uma mulher, a proposta é o sexo. Desejar sexo não é desejar filhos. Propor sexo não é propor filhos. Imagino que um homem saiu para o pagode ou para o carnaval... Saiu folião e voltou pai. Eis um fator que não foi considerado na conta e na sentença.

Então, a consequência fora dos planos é responsabilidade dos dois – exceto quando a mulher é ludibriada, porque alguns homens retiram o preservativo sem que a mulher note. Para a legislação atual, em dados contextos em que isso ocorre, se configura estupro.

Não seria justo esquecer as tantas mulheres desonestas e sabotadoras que furam preservativos e armam situações, fingindo tomar pílula ou usar D.I.U., para engravidar e salvar seus relacionamentos, prendendo o homem. Ou obtendo a vantagem de uma pensão que igualmente possa lhe auferir lucros e garantias.

O que a gente deve sempre lembrar é que há mau caráter de todo tipo, gênero, credo, classe, religião. Assim, uma pessoa inteligente pode ser mau caráter; homem pode ser mau caráter, mulher pode ser mau caráter; gay, lésbica, trans, negro, branco, oriental, indígena, católico, protestante, ateu, não interessam as identidades: ao Humano nada escapa de sua condição de ser humano, em aspectos bons e em aspectos maus.

Fugindo às generalidades e ao contorno psicanalítico da discussão aqui trazida – excetuando, também, os pais presentes e significativos que, por infortúnios diversos, morreram ou foram mortos – a ausência do nome do pai é uma falta que dói. Para além da questão social de um nome num documento, é como ter um parente desaparecido: uma cara que não se sabe qual é; um paradeiro desconhecido; uma indefinição fantasmagórica que assusta – não se sabe se está vivo, se está morto, se está próximo...

O que eu percebi nesses homens que eu namorei e que não conheceram seus respectivos pais, foi um maior respeito às mães. Um respeito piedoso de imaginar a mãe como uma mocinha apaixonada, de 15, 18 anos, se entregando de corpo e de coração a um homem, sofrendo as reprimendas e castigos dos pais, os olhares condenatórios de vizinhos, amigos e familiares; em muitos casos, sendo expulsas de casa ou cedo abandonando sonhos de formação e de profissão, tendo, além de toda execração social, que carregar a dor de não ter sido amada por aquele homem que a deixou sozinha. Muita dor para um só ser. Em várias circunstâncias, uma dor no momento da fragilidade da gravidez, com dores físicas junto às dores psicológicas de um luto pelo amor que se foi – e a decepção por notar a covardia do homem amado.

Eu escolhi não ser mãe. Pago o preço social disso, porque sempre quiseram me obrigar a querer o que não é meu desejo. Tenho pai, que nesse quesito foi mais corajoso do que minha mãe – fui criada com ele – mas noto a leve decepção da parte dele, que constata que a filha única (eu) não renderá herdeiros. Fico, porém, com a declaração de um destes filhos sem pai que eu namorei um dia: “VOCÊ PODE SER ÚTIL À HUMANIDADE DE OUTRAS MANEIRAS”. Eu tinha 23 anos quando disse isso – confirmando o que eu já pensava aos 13 anos, como convicção de vida. Penso exatamente a mesma coisa hoje em dia e tenho o máximo respeito ao homem que entendeu e aceitou minha escolha.