Louquética

Incontinência verbal

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Pequenas histórias sujas

 


Há aspectos que nos lavam a alma, outros que nos limpam a mente – como bem dizem, há higiene mental - e, entre um e outro, o campo privativo de estar-se consigo mesmo, sozinho.

Poucas pessoas entendem a minha necessidade de ficar sozinha. Não entendo quem viva de grude nos outros ad eternum, como não entendo quem renuncia à privacidade, apenas por medo da solidão.

Gosto de abraços, de carinhos, do riso dos amigos, da comida compartilhada, de ter com quem comentar minhas impressões sobre um filme, de planejar sair, de planejar estar juntos, mas, nunca achei interessante viver em família, viver em casal. A pandemia mostrou o alívio que é, para um casal, precisar sair para trabalhar. Finalmente, um tempo longe uns dos outros para, de noite, um reencontro; para, num fim de semana, estar-se juntos.

Não acho justo nem bonito que o nosso par nos veja depilando o buço, pintando o cabelo, com uma touca de hidratação na cabeça, sem o glamour que a gente exibe ao se encontrar com aquela pessoa. Aliás, é fonte de vida poder se arrumar para alguém...escolher a roupa, o perfume, se apresentar da melhor forma possível e não com os odores domésticos do cozinhar ou os suores das tarefas cotidianas.

Privacidade é fundamental, assim como higiene pessoal.

O Homem de Capricórnio odiava banho, mas sempre elogiava meus cheiros. Pegava em mim, feliz, por causa de texturas e cheiros e, provavelmente, só no último dia em que a gente se viu, ele percebeu o valor que eu dava à higiene. Nunca foi somente uma questão de higiene: era o bem-estar. A higiene dá segurança e conforto para todo mundo – cheiros repulsivos espantam; falta de banho é sujeira e porcaria mesmo, porque o corpo produz gorduras, secreções que, com o tempo e o contato com a atmosfera externa são repugnantes. Eu sei que no mundo dos fetiches há pessoas que gostam até de pés suados e de suores em geral. Eu não.

O Homem de Capricórnio me viu pegar um lenço umedecido e passar atrás da orelha dele, sob o pretexto de retirar um pelinho solto que, entretanto, grudava na pele. Ele comentou sobre minha diplomacia com a falta de banho dele, eu desconversei. No dia seguinte, ele já me encontrou após ter tomado banho.

No começo de nossos encontros, ele brincava e dizia que ‘ia tomar o banho da semana’ para me encontrar. Eu achava que era brincadeira. Até ir notando que ele deixava de me ver porque não queria ser compelido a tomar banho.

Eu fiquei muito triste ao perceber.

Lembro de nossa primeira viagem juntos, no inverno, com chuva, a uma praia. Tomei banho ao chegar, ao descer do barco. Tomei banho ao sair para a praia. Tomei banho ao voltar da praia naquele mesmo dia. Ele não se envolveu com a água do mar, muito menos com o chuveiro. Foi esquisito, decepcionante, mas não foi conclusivo para mim, porque, afinal, chovia e era inverno.

Certa vez, dei-lhe um beijo no pescoço e fui embora. Ao encontra-lo, três dias depois, vi uma marca de batom e comentei, enraivecida. Puxei o espelho e mostrei a ele, que não me disse nada. Ora, era a mesma marca que eu deixei...ele simplesmente não tomou banho por três dias.

Acredito que ele não goste mesmo de banho e muito menos de obrigação. Em todos os comentários dele, tipo: “não vou tomar banho para ir ao shopping porque quero contrariar a burguesia”, eu via brincadeira, nunca achei crível ou sério aquilo. Ainda mais em se tratando de um adulto, independente, elegante, doutor, culto...demorou para eu compreender. Uma coisa é o hábito, outra coisa é a doença.

Já comentei aqui sobre meu único tio paterno. Não é ficção, nem sensacionalismo, exagero ou mentira: meu tio fica nove meses sem banho. Sem banho é zero banho. Ele passa álcool nas mãos, ele lava apenas a cabeça, em caso extremo, por causa da pintura/tintura. E o faz na torneira do jardim. Banho, nunca. É para ele, uma tortura. Nem quando sai do hospital, nem quando está no hospital, meu tio JAMAIS toma banho. Posso responder agora mesmo a data do último banho que ele tomou: 06 de janeiro deste ano, ao ser conduzido ao hospital por mim. Porque eu exigi, pois eu não iria acompanhar um ser humano sujo, perfumado por colônias fortes que não abafam o mau cheiro.

Difícil não achar patologias sob a repulsa e o medo do banho - para eles, um pavor.

Não tomo banho por causa dos outros. É parte de um prazer, de estar sozinha, de um cuidado pessoal gostoso, de cantar no chuveiro ou emudecer em pensamentos íntimos e livres, é a delícia de escolher perfumes até para dormir...aliás, me dá muito conforto tomar banho para dormir.

Tomar café de manhã e tomar banho em seguida me desperta como que num ritual para me acordar para a vida, como um batismo para cada dia.


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