Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 18 de julho de 2023

MILAN KUNDERA: O adeus insustentável

 



Milan Kundera morreu após quase um século de vida. Nenhum livro dele foi melhor que A insustentável leveza do ser. Nenhum outro livro teve tal influência sobre a minha vida a ponto de ser o que ele é para mim e para meu contexto. Li aos 23 anos. Li outras três vezes no decurso de minha vida; e a cada leitura o encantamento persiste, o amor continua e se consolida com o tempo.

Quem quer romance, vai encontrar romance em A insustentável leveza do ser. Vai encontrar filosofia, história, cultura, música...eu, encontre tudo isso e encontrei a mim mesma.

Partindo de paradoxo formulados com a filosofia de Nietzsche (peso que esmaga, leveza que  deixa solto à mercê do vento) deságua na pergunta do narrador composto por Kundera: “Então, o que escolher? O peso ou a leveza”.

A trama amorosa que liga Tomaz, Tereza, Sabina e Franz costura-se ao tecido da política, às existências de escolhas, crises e acasos.

Tomaz cria regras para si mesmo: não ter mais que três encontros com uma mulher, não compartilhar o sono com nenhuma mulher. Tereza torna-se a exceção:

“Ele estava mesmo surpreso. Agia contra seus princípios. Há dez anos, quando se divorciara da primeira mulher, viveu seu divórcio numa atmosfera de alegria, como outros comemoram um casamento. Compreendeu então que não nascera para viver ao lado de uma mulher, qualquer que fosse ela, e que só poderia ser um celibatário. Esforçava-se, portanto, cuidadosamente para organizar seu sistema de vida de maneira tal que nenhuma mulher jamais viesse se instalar com mala em sua casa. Por isso só tinha um divã. Se bem que fosse um divã largo, dizia às suas companheiras que incapaz de adormecer na mesma cama com quem quer que fosse, e levava-as sempre de volta depois da meia-noite.” (KUNDERA, 1988, p.15)

Para ele, há sinceridade nos afetos próprios – o mesmo que o faz declinar dos ‘vagos sentimentos de paternidade’ ao perceber o jogo de chantagens que a ex-esposa fazia, marcando e desmarcando encontros entre pai e filho, manipulando e implementando alienação parental. Todavia, é evidente a fuga do amor – por isso, ele cria regras que equivalem a obstáculos para o germe de sentimentos.

Experimentando, ao longo do romance, vários casos sexuais fortuitos, instaura em Tereza a dor da eterna insegurança pelas traições sofridas, testemunhadas e presumidas. Entretanto, quando é ele a sentir ciúmes, de causas imaginárias e projetivas, sofre intensamente:

“Não havia nada mais fácil do que imaginar Tereza e esse jovem colega como amantes. Era essa facilidade que o magoava. O corpo de Tereza era perfeitamente imaginável num abraço amoroso com qualquer corpo de homem, e essa ideia o deixava de mau humor. Tarde da noite, quando voltaram, ele revelou-lhe que estava com ciúmes. Esse ciúme absurdo, nascido de uma possibilidade toda teórica, era prova de que ele considerava a fidelidade dela um princípio inatingível. Mas então, como poderia ele ter raiva do ciúme que ela sentia de suas amantes mais do que reais?” (KUNDERA, 1985, p 23)

 Estranha a si mesmo, quando, tempos depois, após sete anos juntos, Tereza o deixa e volta para Praga. É a leveza...

“Esse estranho encantamento melancólico durou até domingo à noite. Na segunda-feira tudo mudo. Tereza irrompeu no seu pensamento: sentiu o que se passar com ela ao escrever a carta de adeus; sentiu como suas mãos tremiam; podia até vê-la segurando com uma das mãos a pesada mala e, com a outra, a correia de Karenim; imaginava-a girando a chave na fechadura do apartamento de Praga, e sentia em seu próprio coração a desolação que lhe aflorou ao rosto quando abriu a porta.

Durante esses dois belos dias de melancolia, sua compaixão (essa maldição da telepatia sentimental0 tinha se acalmado. A compaixão dormia como um trabalhador das minas num domingo, depois de uma semana de dura labuta, para poder voltar a trabalhar com intensidade na segunda-feira.” (KUNDERA, 1988, pp. 36-37)

Acompanham esses episódios outros tantos de decepção com o sistema político, com retrospectos na História, que formam um mosaico lógico na narrativa: “Todos os crimes do Império  Russo foram perpetrados à sombra de uma discreta penumbra. A deportação de um milhão de lituanos, o assassinato de centenas de milhares de poloneses, a eliminação dos tártaros da Criméia, tudo isso ficou gravado na memória, sem provas fotográficas, como uma coisa indemonstrável, sujeita mais cedo ou mais tarde a passar por mistificação. Ao contrário, a invasão da Tcheco-Eslováquia em 1968 foi fotografada, filmada e guardada nos arquivos do mundo inteiro.” (KUNDERA, 1988, p. 72).

Discussão densa que deixou para nós, mesmo agora, pistas consideráveis sobre a situação atual da Criméia – a anexação. Sob a ficção, tantas verdades; sob a narrativa em prosa, tanta poesia; sob a poesia, tantas músicas (de Beethoven, sobretudo), imagens, ideias...um grande livro de particular significado para mim.

 


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