Milan Kundera morreu
após quase um século de vida. Nenhum livro dele foi melhor que A insustentável leveza do ser. Nenhum
outro livro teve tal influência sobre a minha vida a ponto de ser o que ele é
para mim e para meu contexto. Li aos 23 anos. Li outras três vezes no decurso
de minha vida; e a cada leitura o encantamento persiste, o amor continua e se
consolida com o tempo.
Quem quer romance,
vai encontrar romance em A insustentável
leveza do ser. Vai encontrar filosofia, história, cultura, música...eu, encontre
tudo isso e encontrei a mim mesma.
Partindo de paradoxo
formulados com a filosofia de Nietzsche (peso que esmaga, leveza que deixa solto à mercê do vento) deságua na
pergunta do narrador composto por Kundera: “Então, o que escolher? O peso ou a
leveza”.
A trama amorosa que liga
Tomaz, Tereza, Sabina e Franz costura-se ao tecido da política, às existências
de escolhas, crises e acasos.
Tomaz cria regras
para si mesmo: não ter mais que três encontros com uma mulher, não compartilhar
o sono com nenhuma mulher. Tereza torna-se a exceção:
“Ele estava mesmo
surpreso. Agia contra seus princípios. Há dez anos, quando se divorciara da
primeira mulher, viveu seu divórcio numa atmosfera de alegria, como outros
comemoram um casamento. Compreendeu então que não nascera para viver ao lado de
uma mulher, qualquer que fosse ela, e que só poderia ser um celibatário.
Esforçava-se, portanto, cuidadosamente para organizar seu sistema de vida de
maneira tal que nenhuma mulher jamais viesse se instalar com mala em sua casa.
Por isso só tinha um divã. Se bem que fosse um divã largo, dizia às suas
companheiras que incapaz de adormecer na mesma cama com quem quer que fosse, e
levava-as sempre de volta depois da meia-noite.” (KUNDERA, 1988, p.15)
Para ele, há sinceridade
nos afetos próprios – o mesmo que o faz declinar dos ‘vagos sentimentos de
paternidade’ ao perceber o jogo de chantagens que a ex-esposa fazia, marcando e
desmarcando encontros entre pai e filho, manipulando e implementando alienação
parental. Todavia, é evidente a fuga do amor – por isso, ele cria regras que
equivalem a obstáculos para o germe de sentimentos.
Experimentando, ao
longo do romance, vários casos sexuais fortuitos, instaura em Tereza a dor da eterna
insegurança pelas traições sofridas, testemunhadas e presumidas. Entretanto, quando
é ele a sentir ciúmes, de causas imaginárias e projetivas, sofre intensamente:
“Não havia nada mais
fácil do que imaginar Tereza e esse jovem colega como amantes. Era essa
facilidade que o magoava. O corpo de Tereza era perfeitamente imaginável num
abraço amoroso com qualquer corpo de homem, e essa ideia o deixava de mau
humor. Tarde da noite, quando voltaram, ele revelou-lhe que estava com ciúmes.
Esse ciúme absurdo, nascido de uma possibilidade toda teórica, era prova de que
ele considerava a fidelidade dela um princípio inatingível. Mas então, como poderia
ele ter raiva do ciúme que ela sentia de suas amantes mais do que reais?”
(KUNDERA, 1985, p 23)
“Esse estranho encantamento melancólico durou até domingo à noite. Na segunda-feira tudo mudo. Tereza irrompeu no seu pensamento: sentiu o que se passar com ela ao escrever a carta de adeus; sentiu como suas mãos tremiam; podia até vê-la segurando com uma das mãos a pesada mala e, com a outra, a correia de Karenim; imaginava-a girando a chave na fechadura do apartamento de Praga, e sentia em seu próprio coração a desolação que lhe aflorou ao rosto quando abriu a porta.
Durante esses dois belos dias de melancolia, sua compaixão (essa maldição da telepatia sentimental0 tinha se acalmado. A compaixão dormia como um trabalhador das minas num domingo, depois de uma semana de dura labuta, para poder voltar a trabalhar com intensidade na segunda-feira.” (KUNDERA, 1988, pp. 36-37)
Acompanham esses
episódios outros tantos de decepção com o sistema político, com retrospectos na
História, que formam um mosaico lógico na narrativa: “Todos os crimes do Império Russo foram perpetrados à sombra de uma
discreta penumbra. A deportação de um milhão de lituanos, o assassinato de centenas
de milhares de poloneses, a eliminação dos tártaros da Criméia, tudo isso ficou
gravado na memória, sem provas fotográficas, como uma coisa indemonstrável,
sujeita mais cedo ou mais tarde a passar por mistificação. Ao contrário, a
invasão da Tcheco-Eslováquia em 1968 foi fotografada, filmada e guardada nos
arquivos do mundo inteiro.” (KUNDERA, 1988, p. 72).
Discussão densa que deixou para nós, mesmo agora, pistas consideráveis sobre a situação atual da Criméia – a anexação. Sob a ficção, tantas verdades; sob a narrativa em prosa, tanta poesia; sob a poesia, tantas músicas (de Beethoven, sobretudo), imagens, ideias...um grande livro de particular significado para mim.
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