Eu sei que tenho convicções muito firmes. Estou aqui para confirmar o que eu digo por convicção há tempos: eu não sei de onde as pessoas tiraram a conclusão de que a dor é um estímulo à escrita. Sei que tem certa pertinência nisso de angústia e literatura, mas, para mim, a dor paralisa. Eis porque parei de escrever estes tempos.
Depois de cruciantes dez dias em hospital, o meu tio único faleceu. Estou num luto doloroso e o primeiro alívio que tive foi de ontem para hoje, quando finalmente consegui dormir por cinco horas seguidas – e cá estou, escrevendo.
Meu sono existia,
mas vinha entrecortado e sob stress.
Na primeira noite em
que dei socorro ao meu tio, ele, um senhor de 80 anos recém completados, fui obrigada
a ficar em claro, numa UPA, em companhia dos gemidos dele.
De lá, sete da
manhã, ainda sem dormir e em fuga assumida, fui à casa de meu pai, contar o
ocorrido. Nunca dirigi sem dormir. Perdi o caminho porque havia obras e desvios
no trânsito. Foi um dia horroroso.
Meu tio foi para o
Hospital Geral Clériston Andrade. Estava atento e vivaz, fazendo planos e
ameaças às enfermeiras. Fez um exame. Ficou sob observação por 03 dias. No quarto
dia, optaram pela cirurgia. O resultado final foi óbito, com parada respiratória
e infecção generalizada, num sofrimento absurdo e negligenciado de mais seis
dias. O fígado se desintegrou de tanto antibiótico.
Se fosse aqui um
relato técnico de causa mortis, estaria
tudo bem. O que não se conta é o clima mórbido e depressivo de frequentar o
hospital. É aquela fila para a visita ou para entrar como acompanhante e ver
outros tantos doentes e as hienas vorazes da religião protestante querendo ganhar
adeptos, fazendo um teatro de horrores...E as acompanhantes profissionais, que
se dizem cuidadoras, se lançando sobre nós, os parentes, como fontes de renda,
de maneira inconveniente e fria.
Foram dias
traumatizantes. Foram dias em que a mão fria da morte pousava em meu ombro
cansado. Encostava o peso da foice em mim.
O tempo do hospital
é outro tempo: o agora dura 04 horas; o daqui a pouco dura 6, tudo se arrasta
em angústias delongadas.
O que também não se
conta são os telefonemas assustadores e a pouca habilidade da assistência social,
que liga às 03h da manhã a pretexto de pedir a identidade do paciente – ora,
claro está que o paciente morreu. A falsa delicadeza não funciona.
Não entendi quando
li no informativo das obrigações do paciente, que ele ‘deve deixar o hospital
logo que tiver alta’. Pensei se poderia haver quem ali quisesse permanecer.
Mas, olhei para os lados e percebi que, graças ao governo do Estado da Bahia, é
preciso reconhecer a obra de Rui Costa (ora continuada por Jerônimo), o
hospital dá seis refeições ao paciente e ao acompanhante; dá um teto e
saneamento básico, um banheiro e um lugar para dormir. Assim, num país pobre,
como é o nosso, o hospital provê sobrevivência. E até amigos meus de boa
condição financeira e plano de saúde particular, vão ao HGCA para cirurgias
específicas de que o Hospital é referência na área.
O sepultamento foi
igualmente uma cerimônia dolorosa, que confirmou minha pouca resistência a
lutos.
Ainda estou muito abalada.
Chorei até adoecer, com crise de rinite e mais distúrbios do sono.
Não consegui trabalhar.
Meu pai se preocupou demais comigo, me obrigou a sair, a atender às condolências,
a responder à vida burocrática quanto me fosse possível – ele, que estava
comigo e com meu tio, está muito abalado também.
Por ser espírita,
tenho uns consolos, mas a falta não se apaga.
Já me considero
beneficiada por terem se passado nove dias desde o sepultamento de meu tio,
porque só o tempo atenua a dor. Considero, assim como recomenda a doutrina
espírita, o esquecimento como uma dádiva de Deus. Nunca fui a favor de regressão
e seus similares. Precisamos de memória, sim, para muitas coisas; e precisamos
do esquecimento para aliviar a dor do que passou.
Com dor eu não
escrevo. A dor é inimiga da escrita.
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