Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O tempo e o anteontem

 


Algumas pessoas têm pautado suas percepções de tempo em função da pandemia. Desta forma, não há um ano novo, um tempo diferente porque estamos mudando os dias no calendário sem, efetivamente, voltarmos à vida de sempre, à vida normal.

Faz muito tempo que a gente experimenta coisas assim, tipo quando nos sentimos na rotina com um relacionamento longo; ou quando enjoamos do trabalho, das repetições do cotidiano, das mesmices. Particularmente, já defendi e defendo de novo, a ideia de que o “Cotidiano” (música de Chico Buarque) reporta mais ao quanto a gente se sente seguro com a rotina do que, necessariamente, concebe a rotina como chatice. Mas, é claro que a gente não aguentaria um caminho reto o tempo inteiro, mesmo reclamando dos perigos das curvas, de aclives e declives que a estrada da vida precisa ter.

Eu me irmano totalmente com quem acha que estamos, neste momento, nesta data (04/01/2022) vivendo a Terceira Temporada, episódios iniciais, de 2020. O cronograma subjetivo parou logo após os dois primeiros meses de 2020 e, sendo bastante sincera, desde 31/12/2019 eu acho que sequer o tempo passou. Mundialmente foram muitas as tragédias. Isso as coletivas! As individuais não caberiam aqui.

Não durmo como antigamente, não me comporto socialmente como antigamente, não me desloco pela cidade como antigamente e esse antigamente significa: há dois anos.

As coisas boas que aconteceram ficaram tal como escreveu Clarice Lispector no conto sobre a Senhora Raposo, “mudos fogos de artifício”. Não dá para estar bem em um mundo que não está bem.

Pior seria sem vacinação, mas mesmo com a erradicação do vírus, eu digo que precisaríamos de uma ressocialização – para todo mundo: sãos, imunes, ex-contaminados, negacionistas, terraplanistas, delirantes, extremistas, crentes, ateus, agnósticos, todo mundo mesmo, do melhor aos pior indivíduo do planeta, porque teremos que repensar a forma de viver coletivamente, reaprender a relação com o outro e com o planeta – vi amigos meus que moravam sozinhos, em outro Estado, passarem a viver novamente em família, fazendo o percurso oposto ao da maioria, após anos de distanciamento familiar (ele morava em Pernambuco, a esposa e os filhos pequenos moravam aqui em Feira de Santana, na Bahia), passando a morar juntos, num caos em que as individualidades se chocam; a privacidade passa a ser questionável e o amor pautado pela saudade vem a enfrentar o desgaste da permanência das presenças.

Vi a relação com animais domésticos começar ou melhorar; vi gente se aproximando e se afastando; vi a vida sexual dos amigos (e a minha própria) mudar; vi o comportamento religioso mudar e também vi o desconforto de quem alegava falta de tempo para qualquer coisa, agora com tempo de sobra, se perder em anacronismos e ambivalências.

Para mim, foi um alívio o pretexto do distanciamento, para a esfera familiar. Confesso que não gosto de família exceto como visita esporádica, com data e hora para ir embora. No mais, cumpro rituais e invento mil desculpas para ficar sozinha, sem fazer nem receber visitas.

Saí poucas vezes a lazer. Não me sinto tranquila, não obstante a pandemia, porque não vejo gente alegre: vejo irresponsáveis, gente mal-educada ou depressivos querendo forçar a normalidade que não temos. O que eu quero dizer é que não há naturalidade, nem espontaneidade naqueles risos, naquelas festas, naquele cinema – e isso independe de protocolos sanitários.

A gente se deixa afetar porque o entorno social implica muito em nosso bem-estar, em nossa identidade, nas subjetividades – nas formas de amar, desejar, querer, ser, sentir, etc. E como não vi graça em sair no réveillon, não sairia de forma alguma, todavia cogito ir à praia num quinta-feira, fora dos dias de aglomeração presumível, para, pelo menos, me reconciliar com um lazer de que gosto: água e sol. Sei que vai demorar para minha paisagem interior mudar, sair do clima atual que nem é tão atual: como uma página de anteontem no livro da minha vida ou nos calendários de fim de mundo. Talvez eu viva, agora, o paradoxo da Legião Urbana: "Todos os dias quando acordo não tenho mais o tempo que passou, mas tenho um outro tempo" e igualmente, "Não temos tempo a perder" e mesmo com todos esses versos, a música se chama Tempo perdido.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário