Minha analista (psicanalista,
para especificar redundantemente) morreu.
Não imaginei que a
dor desse luto fosse tão profunda, diferente, intensa.
Conforme eu já
afirmei aqui, antes, eu queria ser uma daquelas pessoas frescas que aproveitam
as dores para poder escrever e criar. Eu, não: a dor me paralisa. Eu fico como
meus gatos, enroscada, quieta, num silêncio de desertos.
Lêda G. morreu em 23
de maio do ano passado. Eu só soube há duas semanas. Soube porque precisei
voltar à psicanálise. Ao procurar por ela, as notícias na web me avisaram.
Fazia um tempo que
ela não morava mais na Bahia. Na ética da psicanálise, as pessoas não sabem quem é analisando de quem. O nome do cliente precisa ser resguardado. Logo, não
poderíamos ser avisados do óbito.
Doeu, em especial,
uma mensagem de um órgão da Sociedade Brasileira de Psicanálise, em que se
dizia do quão inacreditável era que não veríamos mais a ‘exuberância’ de Lêda
G.
Ela foi a mulher
mais inteligente que eu conheci. Sábia mesmo. Moça, jovem, alegre, doce, sensível.
Justa, cobrava menos ou cobrava nada de quem não podia lhe pagar. Foi humana
comigo e com minha amiga-mais-que-irmã, convertendo o valor de nossas sessões
em moedas ‘pagáveis’.
Linda Lêda, compreensiva.
Nunca ouvi falar no
luto por analistas. Observem: o analista não é apenas um confidente; não é
somente alguém com quem efetuamos trocas e transferências de papéis. Tem amor
ali. Tem temor. Tem a vontade de nunca mais voltar e a de não mais sair.
Tem aquela hora do
ódio, em que a sua responsabilidade sobre a sua vida cai no seu colo.
Tem aquele momento
em que é você quem é instado a confrontar
suas fraquezas, suas repetições, os desejos não declarados, as declarações não
desejadas...Tem os desejos de colo e os desejos frustrados e, acima de tudo,
tem um amor maior que não se compara ao de um parente, ao de um amor romântico...
Tem, também, a hora
em que você é estimulado a se perdoar, porque os seus erros foram o melhor que
você poderia fazer com os instrumentos que você tinha, com a pessoa que você
era, pela idade que você tinha, pelos recursos mentais, materiais e psicológicos
que você tinha. E assim são os analistas: dão a justa medida do que lhe cabe,
ajudam a ver ‘a dor e a delícia de (se) ser o que é’. Por isso somos gratos.
Lêda G. foi minha
professora na UEFS.
Antes de ser aluna
dela, acompanhava as palestras que ela proferia – isso em minha primeira
graduação também na UEFS.
A vida inteira eu a
admirei. Achava que ela era uma mulher linda – minha classificação de ‘linda’
não se volta à ideia de perfeição. Uma pessoa linda é um conjunto, inclusive os
desvios estéticos que a personificam. Linda e elegante. Gostava de usar o
perfume Accordes, no dia a dia; e J’adore e L’air Du
Temps em outras ocasiões. Já usava cabelos avermelhados no mesmo tempo que
eu. Antes de tudo isso, eu já achava que o perfume veste a pessoa. Continuo
achando. Gente sem cheiro é algo entre um cadáver fresco e uma pessoa nua e
nada sexy. Gosto e cheiro andam juntos, daí porque dizemos: ‘Cheiro gostoso”,
confundindo os órgãos do sentido – cheiro, paladar.
Sim, minha analista
era uma mulher sexy e exuberante, elegante na voz e na altura; nas palavras,
sobretudo.
Tem doído muito a
falta dela, a morte dela. Foi mais uma a ser devorada por um câncer – tal a minha
amiga-mais-que-irmã.
Fiz aniversário
ontem. Ganhei, dentre meus presentes, uma foto grande de minha amiga citada. Quem
me presenteou, me disse: “você merece mais que eu”. Concordei de outra forma:
eu preciso, caso eu não mereça.
E à minha analista,
que me fez ser quem eu sou; quem arrumou minha cabeça para eu arrumar minha
vida, deixo minha declaração de amor e de saudades. Que Deus, nosso Pai supremo
em misericórdia, sabedoria e amor dê a ela um doce repouso.
Ela, que traduzia minhas palavras, meu texto interior de angústias caladas e não-percebidas...ela, quem me faz falta e que me deixou sem palavras, leve a certeza de que foi amada e admirada. Ela, que me devolveu a vida, agora deixou a vida...e um vazio em minha existência.
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