Conversávamos sobre
organização e limpeza da casa; e do quanto, ainda que chateadas, gostávamos de
deixar a pia limpa antes de dormir, quando a minha amiga disse, como quem
discute tipos de xampú: “olha, eu nunca deixo pratos sujo na pia antes de dormir!
Nunca! Lembro de que minha tia e eu tivemos que lavar os pratos na cozinha
cheia de sangue, de manhã, com a Polícia Civil entrando e saindo, porque o
marido de minha outra tia assassinou ela. Os pratos ficaram lá; e a gente tendo
que lavar prato no meio do sangue, no outro dia. Depois disso, nunca mais deixo
pratos sujos para o outro dia”.
É preciso entender que
ela não banalizou o drama: a cabeça da então garota de 09 anos só conseguiu
registrar isso como associação, isto é, a tragédia e a sujeira no lar.
O sangue derramado da
mulher no lar, literalmente, foi metaforizado para driblar o trauma. É o que a
mente pode fazer para se proteger. Dá muita piedade ver o que há sob a
narrativa dela, que parece conto de Rubem Fonseca, mas não foi ficção.
São formas, também, de
reduzir o impacto do trauma. A lembrança que fica é uma forma de desviar da
causa maior, das dores, de um contexto extremamente pesado e violento. Imaginem
isso para uma criança.
Aprendemos formas de
falar, eufemismos para desviar de dramas. Para alguns, por exemplo, estupro é
apenas quando há violência física e penetração. Por outro lado, vejo certa
inadequação em expressões como abuso sexual e molestar sexualmente alguém. Acho
pouco para o tamanho da violência. Todavia, numa sociedade de base patriarcal,
como a nossa, em que sexo foi concebido como ‘obrigação matrimonial’ da mulher,
não é de se estranhar.
Vamos ao segundo ato
do mesmo drama: minha costureira é uma mulher ímpar. Primeiro, porque ela é
rica, tem dinheiro e é dinheiro dela, do trabalho dela – tem um filho
igualmente rico, que a cobre de mimos absurdos do mundo da ostentação, tipo uma
televisão maior do que a parede. Ela continua sendo costureira porque quer e gosta.
Dentro dessa ‘imparidade’,
acrescento que ela mora num condomínio luxuoso, ricamente decorado, mas vem
para o ateliê simples (simples é sem luxos ou nada equivalente), que fica perto
de minha casa. Geralmente, ela faz reparos e consertos, não necessariamente
todo o processo de corte e costura de roupas.
Em conversas nossas de
muito tempo descobri que o ateliê é um pretexto para não estar em casa, não
somente em vida ociosa, mas à disposição de um marido que viu nela uma serviçal
a quem pode requisitar pratos, dar ordens e controlar. Dito assim nem parece
nada demais. Porém, ela (agora mais que antes) falou comigo sobre o quanto se
sente anulada, menosprezada, ferida por ele. Queixou-se do desdém, da má
vontade, da falta de mínimo carinho que se tem até por bichos domésticos e, se
aqui poupo palavras é para encurtar a profusão de dores descritas e sofridas
por ela.
É com o ateliê,
desaprovado por ele, que ela consegue escapar parcialmente do duro convívio e
do script de vida que seria ditado por ele.
Há pessoas que não têm
a mínima ideia do que seja ser mulher, do que seja existir...há os que não
sabem nada sobre a vida no lar; e há muitos e muitas que julgam que em
determinada idade e tempo, as mulheres só aspiram à morte, não querem nada de
seus casamentos, não sonham além das paredes do lar – e lar com dinheiro é tudo
para muitos.
Admito que me
solidarizo tristemente com ambas e com as muitas que aqui não citei – os meus
relatos biográficos de coisas similares estão aí, em outros textos deste blog.
Onde terá sido fácil
ser mulher?
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