Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Curving, ghosting e amores líquidos

 


Fico deslumbrada quando uma ideia particular minha, ou um raciocínio, aparecem na fala de alguém que tem mais cabedal do que eu, porque, afinal, há coisas que são meros conceitos empíricos: vi e vivi, deduzi, formulei e cheguei à conclusão.

Dentre os muitos aí inclusos, achei um psicólogo incrível que, assim como eu, afirmou que amor não é tudo num relacionamento.

Claro que a ausência de amor, de certa dosimetria de afetos, reciprocidade, correspondência, impedem que o relacionamento aconteça – porque ninguém vai namorar a quem não gosta – mas, amor, sozinho, apenas amor, é insuficiente para sustentar uma relação.

Amor precisa de outros ingredientes, afinidades, compreensão, cumplicidade, combinações variadas, além de respeito e gestos de reconhecimento, gratidão, etc. Mas, vamos combinar: amar está difícil – embora nunca tenha sido fácil.

Achei interessante ver que ainda se recorre a receitas velhas, como deixar o outro no vácuo ou simplesmente desaparecer (ghosting)...visualizar e não responder...É cada infantilidade! Mas, nomear de curving o ato de deixar o outro na eterna espera, no pega-não-pega, no ‘a gente combina depois’, foi um negócio engraçado.

Para mim, curving é uma curva, é um modo de se esquivar, é como aquela pessoa que te deseja, que pode ter ficado com você uma vez, ambos curtiram, mas na hora de marcar outra vez ou de marcar o primeiro encontro, a pessoa empreende fuga, curva a esquina, dobra, se vai. Contudo, mantém a tornozeleira eletrônica dos esporádicos ‘oi, sumida!” ou de fortuitos “bom dia, como é que você está?!”. Infeliz de quem se põe à espera.

Há vezes em que somos nós esta pessoa. E foi por isso que passei a deixar certas pessoas em paz. Vi que eu não queria nada com o cara, nem que ele fosse minha última opção eu iria sair com ele...aí, deixei de falar com ele, desocupei a vaga e provavelmente perdi o amigo.

“Ulrich, o herói do grande romance de Robert Musil, era – como anunciava o título da obra – Der Mann ohne Eigenschaften: o homem sem qualidades. Não tendo qualidades próprias, herdadas ou adquiridas e incorporadas, Ulrich teve de produzir por conta própria qualquer qualidade que desejasse possuir, usando a perspicácia e a sagacidade de que era dotado; mas nenhuma delas tinha a garantia de perdurar indefinidamente num mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível.

O herói de seu livro é Der Mann Verwandtschaften – o homem sem vínculos, e particularmente sem vínculos imutáveis como os de parentesco no tempo de Ulrich. Não tendo ligações indissolúveis e definitivas, o herói de seu livro – o cidadão de nossa liquida sociedade moderna – e seus atuais sucessores são obrigados a amarrar um ao outro, por iniciativa, habilidades e dedicação próprias, os laços que porventura pretendam usar com o restante da humanidade. Desligados, precisam conectar-se... Nenhuma das conexões que venham a preencher a lacuna deixada pelos vínculos ausentes ou obsoletos tem, contudo, a garantia da permanência.” – Fragmento do prefácio e Zygmunt Bauman em Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. (Zahar editora, 2004).

A gente entrevê, nesta passagem, as muitas metáforas sobre a fisionomia dos comportamentos de hoje em dia. O problema é que todo mundo sofre e, para evitar sofrimentos de amor, descartam as pessoas, ou mantém um laço frágil, como se fosse uma corda-guia ao escalar um despenhadeiro...

Quando eu leio que “Ulrich teve de produzir por conta própria qualquer qualidade que desejasse possuir, usando a perspicácia e a sagacidade de que era dotado”, lembro de todos nós, que mentimos para conquistar alguém. Para mim, o grande parceiro do amor é mentira, porque talvez conheçamos nossos defeitos bem mais do que admitimos e precisamos esconder todos e cada um. Quem iria adquirir um produto sem qualidades? E como vender a si mesmo falando do que há de pior em si? Por isso mesmo, sabemos que o outro também mente.

Não falo de mentiras morais graves, mas do quanto fazemos nosso possível para parecermos melhores do que somos. Não acho isso errado. Talvez até nos sirva para melhorarmos.

Do quando ocultamos de nossas misérias e também de nossas conquistas (sim, às vezes a mentira é sobre coisas que temos e somos, mas que poderiam atrair gente interesseira ou até afugentar pretendentes que se julgassem abaixo de nós por questões de escolaridade ou posses), da realidade de nossas famílias ou dos martírios pessoais onde também se inscrevem nossa privacidade, fica uma resposta básica: nunca apreenderemos o total da existência de ninguém e não nos caberia. Amor também precisa ter limites.

O "mundo de sinais confusos" se aplica adequadamente aos nossos dias - antes, havia apenas SIM ou NÃO... e, ao menor, TALVEZ, traduzíamos o advérbio de dúvida como a certeza do NÃO. Entretanto, há quem julgue que significa PODE SER, ou QUEM SABE? O nome disso é curving.

 


3 comentários:

  1. Belo texto, gostaria que mais pessoas tivessem acesso a essa riqueza de informações, parabéns.

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  2. Belo texto, meus parabéns. Interessante seria se as pessoas tivessem acesso amplo a este tipo de informação de qualidade.

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    1. Obrigada por sua recepção gentil e generosa do texto! Abraços!

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