Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Bens da vida



Por aqui, pela Bahia, tem uma expressão peculiar que é ‘bem de vida’. Estar ‘bem de vida’ é não ser exatamente milionário, mas financeiramente estável, com fonte de renda, reservas, casa e carro.
Conheço várias pessoas bem de vida cuja vida não anda lá muito bem.
Desde que a sanidade e a saúde vieram a se tornar artigos de luxo, não passa um dia em que não haja a notícia ou o testemunho presencial da gente ante suicidas, a gente surtando – na universidade, o surto é seletivo: as pessoas escolhem bem com quem vão perder a cabeça.
E cada vez mais, “de perto, ninguém é normal”...lá se vão os filhos bem criados de nossos amigos e o frágil juízo daqueles coleguinhas problemáticos do nosso tempo de estudante, passando a impressão de que a vida piorou deveras.
Recentemente, recusei, educadamente, duas chances de ganhar um bruta dinheiro, dando aulas num fim de mundo que a Geografia não dá conta e em outro fim de mundo, num outro Continente.
Também quero ser e estar bem de vida, mas não a certos preços.
Parece soberba, orgulho, desvario, mas eu recuso, sim.
E se já fui fazer concurso em certos lugares, vislumbrei logo que não seria feliz ali.
Não posso me iludir: uma movimentação num cargo federal não sai a custas de qualquer alegação de parente doente ou depressão. Nem mesmo permuta.
Por isso, também, não faria concurso, jamais, para um estado pertinho daqui, que fica a 5 horas de minha cidade: não gosto de lá. Seria um ganho material que me traria angústia adoecimento mental, sofrimento psíquico.
Decerto, há quem fique na berlinda, entre morrer de fome, por estar sem emprego e sem dinheiro; e estar com emprego, num lugar afetivamente ruim.
O problema nem sempre é a distância.
Um emprego é um casamento litigioso: você quer a vaga, o emprego, a remuneração. Todavia, passando, você vai conviver compulsoriamente com seres não escolhidos, vai tolerar, ficar, morar...preços altos demais.
Onde eu trabalho, aluguei uma casa juntamente com dois colegas, a pedido deles.
Eles surtaram – eram usuários de remédios pesadíssimos, tarja-preta, com laudo psiquiátrico e tudo – cada um de uma vez, sendo o outro, hoje. Agora, vou ver como me desvencilho dos pepinos, porque entrei na empreitada desconhecendo o grau de alteração mental e comportamental de ambos.
São seres altamente delirantes, com mania de perseguição, distorção da realidade, megalomania e vícios igualmente pesados em cigarros.
Estou aqui gastando o meu restinho de sanidade para romper a sociedade da moradia, porque não sou pessoa de prolongar sofrimentos. Além disso, tenho uma paciência bem curtinha, que me poria em risco.
Eu não sabia que eles eram, literalmente, doentes mentais. Oferecem riscos, sim, à nossa paz, à nossa integridade física.
No caso dela, a colega de casa, o delírio foi feito de ofensas e xingamentos, em revide a imaginárias ofensas.
No caso dele, foi ódio por Maria Bethânia, a cantora baiana, devido à música “Ele falava nisso todo dia”, que o colega julgou ser indireta para ele.
Ele já estava irado por eu ter criticado o fato de Roberto Carlos ser apoiador de ditadores, a exemplo de Pinochet e dos cachorros loucos de setores da política brasileira atual, além de outros podres que justificam o temor do citado cantor, frente às biografias produzidas sobre ele.
Fé e hipocrisia, a dupla inseparável, constatadas diante de meu coleguinha, fez ele enlouquecer ainda mais: ele ama o Rei. Não estava preparado.
A fragilidade psíquica das pessoas faz de qualquer coisa um gatilho para crises. Daqui a pouco a gente será uma sociedade a dizer: “Fora do antidepressivo não há salvação”; “ sem tarja preta, sem vida”. E eu ainda acho pouco que alterações neuronais, que a química do lítio e sei mais do que, possam ser responsabilizadas por tudo.
Para estar bem de vida é preciso estar bem...bem longe de problemas.
Uma vida de bem, os bens da vida, na verdade, resume-se à paz.


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