Depois de muitos
anos, mudei a foto de perfil do Facebook.
Que não se conclua que não o fiz antes por
aquelas razões banais, do tipo aparentar estar anos mais nova: tive amor à
foto, tirada por Marluce. Tenho um respeito imenso por quem me fotografa, quem
pacientemente entra no jogo das imagens, com interesse, carinho...
Não sou mais aquela
pessoa, aquela mulher no espelho: é uma foto bonita, de um momento em que me
libertei de um grande e único amor vivido. Era alforria. Era a foto do soldado
que volta vivo e vitorioso da guerra, mas com feridas e traumas.
Respeito minhas
guerras e meus hematomas.
Olho, com espanto,
meu pai e meus ex-professores usando fotos de 30 anos atrás nos perfis de
Facebook, de What´s App, e penso que eles estão como Cecília Meireles, a
perguntar “em que espelho ficou perdida a minha face”. Creio que é uma das
coisas mais tristes da vida, esse momento em que a pessoa não reconhece a si
mesmo no corpo que o tempo transformou. Esta não-identidade que leva a
loucuras, do tipo dizer que “a juventude está na cabeça”, para driblar a
decrepitude inevitável do ser.
Não quero aparentar
desleixo. Adoro a vaidade estética e acho que todo dinheiro gasto em se sentir
melhor, mais bonito ou mais jovem, vale a pena. Mas é preciso aceitar a idade
que se tem.
Pode não parecer,
mas os homens sofrem mais com isso: não somente pelos cabelos que o tempo leva,
pelas rugas que o tempo traz, pela diminuição da resposta física ao sexo, mas
porque eles fingem que só as mulheres envelhecem. Traem, portanto, à percepção
de si mesmos e esse é um escudo frágil.
Sorte da novinha que
um dia puder envelhecer e contar de seu passado feliz.
Sorte dos homens que, ao desejarem uma mulher, se interessam por ela, antes de verificar critérios cronológicos e, que se se importam com isso, assumem, desistem e procuram outras mais afinadas com seu gosto particular, sem necessariamente, caírem na má educação.
Sorte da gente, que
segue a trilha da vida, prezando por estar em seu melhor possível.
Foi muito difícil
ter 16 anos. Pode ser gostoso no tocante a estar novo. Contudo, para mim, pouco
adiantou: eu era frágil, desprotegida, muito responsável precocemente, insegura
e não tinha independência real.
Não foi fácil ter
25, mas passei a existir no momento em que obtive meu emprego fixo, por menos
atraente que ele me fosse.
Depois, veio o
Mestrado e o amor: duas experiências que nos envelhecem por dentro. Não tive a
menor dificuldade em fazer minha dissertação e muito menos em fazer minha tese
de doutorado que, aliás, terminei antes do tempo. Meu problema era a vida, eram
as buscas, eram as respostas...
Não que eu não tenha
sentido medo, pânico, pavor, mas encarei a vida com o máximo de coragem
possível. Essas coisas, de que não contam os retratos, são as que me definiram,
são as que dão minha imagem real.
Sei que mudei, que
sou mais segura e menos negativa; que sei renunciar e persistir, amparar e
bater, ignorar e me defender...Ah, sim, sei muito mais sobre sexo e sou mais
feliz no sexo hoje em dia.
Reitero aquela
passagem que tanto amo um conto de Rubem Braga, porque tenho afinidade
literária e me identifico com as palavras dele, porque ‘bendito seja’ tudo que
me fez ser quem eu sou.
"Ela conta a história de uma freira que a atormentava no
internato, em seu tempo de menina; de um homem que a fez viver longamente entre
o desespero e o tédio, a revolta e a humilhação. E fica meio magoada porque a
tudo eu sorrio, porque eu não pareço participar do sentimento com que ela fala
contra essa gente que passou. Afinal ela também sorri: "Você é meu amigo
ou amigo da onça?"
Sou seu amigo. Mas rico ri à toa, e eu me sinto
vertiginosamente rico porque essas histórias, alegres ou tristes, ela me conta
de mãos dadas, junto de mim. Digo-lhe isso; mas não lhe confesso que aprovo e
abençoo todas as coisas e pessoas que povoaram seu passado, e tenho vontade de
dizer:
"Benditos teu pai e tua mãe; benditos os que te amaram
e os que te maltrataram; bendito o artista que te adorou e te possuiu, e o
pintor que te pintou nua, e o bêbedo de rua que te assustou, e o mendigo que
disse uma palavra obscena; bendita a amiga que te salvou e bendita a amiga que
te traiu; e o amigo de teu pai que te fitava com concupiscência quando ainda
eras menina; e a corrente do mar que te ia arrastando; e o cão que uivava a
noite inteira e não te deixou dormir; e o pássaro que amanheceu cantando em tua
janela, e a insensata atriz inglesa que de repente te beijou na boca; e o
desconhecido que passou em um trem e te acenou adeus; e teu medo e teu remorso
a primeira vez que traíste alguém; e a volúpia com que o fizeste; e a firme determinação,
e o cinismo tranquilo, e o tédio; e a mulher anônima que te vociferou insultos
pelo telefone; e a conquista de ti por ti mesma, para ti mesma; e os
intrigantes do bairro que tentam te envolver em suas teias escuras; e a porta que
se abriu de repente sobre o mar; e a velhinha de preto que ao te ver passar
disse: "moça linda..."; bendita a chuva que tombou de súbito em teu
caminho, e bendito o raio que fez saltar teu cavalo, e o mormaço que te fez
inquieta e aborrecida, e a lua que te surpreendeu nos braços de um homem escuro
entre as grandes árvores azuis. Bendito seja todo o teu passado, porque ele te
fez como tu és e te trouxe até mim. Bendita sejas tu." (Rubem Braga em "A mulher e seu passado")
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