Louquética

Incontinência verbal

domingo, 1 de novembro de 2020

O tempo dos teus olhos


 

Demoramos muito a aprender o óbvio, ou a aceitá-lo. Recentemente, ouvi de um psicólogo que a gente não pode julgar a si mesmo com os olhos do presente. 

Decerto, quem nunca fez uma burrada de que se lamenta tempos depois? Quem nunca ficou indignado porque não deu aquela resposta que só apareceu depois que a briga acabou ou que a situação passou? Quem nunca se sentiu imbecil por uma amizade ruim, por se submeter a alguma exploração, por ter sido besta num relacionamento amoroso – aliás, acho que é onde a gente mais se arrepende, porque depois que o amor passa raramente a gente deixa de constatar, perplexos consigo mesmos, “como eu pude amar uma pessoa dessas? Onde eu estava com a cabeça?”...Mas, são coisas humanas.

Os nossos erros, as escolhas que nos parecem as mais imbecis, as coisas loucas e erradas já cometidas, talvez, naquele momento, não se apresentaram como erradas e loucas. Fizemos o nosso possível, dentro de nossas circunstâncias.

Isso de dizermos, com os olhos de hoje, que faríamos tudo diferente, é algo que não existe, não é justo e não cabe. Por que? Porque você, hoje, tem domínio sobre o passado. Você, agora, tem outros elementos, ferramentas, mentalidade, maturidade e saberes que no momento anterior não tinha. E é preciso se perdoar, a fim de não remoer. A fim também de se libertar, porque geralmente a gente fica discutindo em diálogo interior (monólogo interior é coisa de literatura. Na vida real a gente dialoga, responde a si mesmo com hipóteses), a gente questiona por que esticou a corda em dadas situações; por que se permitiu passar por determinada coisa; por que não fugiu, por que não gritou, por que não rompeu, por que não aceitou, por que prescindiu, por que não fez de outro modo aquilo que a esta altura já está feito...

Muitas circunstâncias não são definitivas, não são sentenças de morte: ainda dá tempo de ter outra profissão, de mudar, de fazer outras escolhas...Mas, o passado passou. Não é justo que o adulto de 35 anos, de hoje, julgue o jovem de 15 a 20 anos que ele foi.

As coisas irremediáveis e imutáveis mostram que o tempo não anda para trás, não tem retrocesso, não tem tecla backspace nem delete. Paciência! Está feito.

Eu mesma constatei, surpresa, que minha madrasta já não poderia mais me fazer mal, porque eu não sou mais uma criança de sete anos. Ela também já não é uma mulher de 33 anos...está velha, doente e não apenas não me amedronta como desperta em mim solidariedade e compaixão. Não somos os mesmos e isso não invalida a experiência. O que eu passei ficou em mim, durou, marcou, fez feridas...Mas, agora, a menina tem defesas, é forte e grande e não pode se comparar com seu próprio ontem.

Dificuldade em perdoar minha família eu tenho e não sou hipócrita. Contudo, preciso me resolver comigo, apesar de tudo.

No reino do óbvio, muitas vezes é preciso repetir: a minha vida é minha; a sua vida é sua. Se não, a gente fica de braços cruzados, dependentes da decisão dos outros, como se não tivéssemos o poder da escolha. 

Aquilo que não depende de nós – demandas da economia, circunstâncias externas mundiais, como a pandemia que enfrentamos, coisas fora de nossas esferas de decisão – precisa ser perdoado também em nós. O que lhe cabe, lhe cabe. Basta ter responsabilidade e não posar de vítima – se o concurso está cheio de candidatos apadrinhados, estude, para dar trabalho a quem quiser te reprovar, mas não desista antes de começar; se você quer ganhar na loteria, pelo menos jogue...crie condições para seus sonhos, em geral, fazendo a sua parte. E com o que não depende de nós, é seguir enxergando que não há nada que se possa fazer (extensivo aos amores não correspondidos, porque nem você tem culpa de amar, nem o outro tem culpa por não lhe amar e não lhe querer. A cada um, seu pedaço).

A vida da gente não pode acontecer sem nós. Também não devemos ser carrascos de nós mesmos, castigando quem fomos no passado. Era nosso possível. Não podemos ser mais um a apontar o dedo, acusando, condenando...

O tempo dos teus olhos não se revelam em marcas de expressão apenas: é preciso ter um olhar mais doce e compassivo com quem fomos e com tudo que fez de nós o que somos. O olhos do presente já viram mais do que à época pregressa poderíamos enxergar, o que nos faz videntes reversos, pois não enxergamos o futuro, mas enxergamos  A PARTIR do futuro...


Nenhum comentário:

Postar um comentário