Louquética

Incontinência verbal

domingo, 10 de agosto de 2014

Longe da vida ideal


Por mim a vida amorosa seria menos complicada. Decerto, no amor não há garantias e pouco se pode asseverar acerca de estabilidade.
Por mim, a vida em geral seria mais simples de resolver: se a gente não quer alguém ou alguma coisa, basta dizer-lhe não; se queremos quem nos quer, nada impede que as vontades se acertem e entrem em acordo benéfico para ambas as partes.
Se o que quero pode ser feito e não está fora da lei, qual o problema em realizar, concretizar?
Isso é no plano das ideias. A vida prática vai bem para longe disso, intercalando percalços, obstáculos, limites morais, vergonha, essas coisas.
Não tive, anteontem, meio de me expressar claramente àquela que pensa que tenho por amiga e dizer-lhe, sem deixar lastro de dúvidas: "Não, não quero que você me visite". Odeio contrariar minha própria vontade, mas é igualmente doloroso jogar na cara das pessoas o passado e a memória de mágoas, embora fosse o que interiormente eu quisesse fazer. Ademais, a pessoa a que me referi está se reestruturando após presumível avalanche financeira e coisas correlatas. Não cuspo na cara de quem caiu e não chuto o cachorro morto. No fundo espero que as pessoas tenham noção sobre o que nos fizeram e se toquem quanto à profundidade dos rancores e o espectro das consequências o que, não se aplicando a ela, me dá a sensação de que ela me julgue uma imbecil que perdoa tudo ou ache que o que ela me fez não teve importância.
Dos meus candidatos a amores só digo que são uma complicação, em que não só não tenho certeza de nada, como desconfio que há mais fetiches por parte deles, por conta de fantasiarem com a professora da universidade federal e outros fetiches embutidos em relação à minha independência. Em suma, não me sinto amada, mas desejada como um objeto exótico. Não digo objeto com a malícia clichê, de sentido comum, Foi uma coisa que me impressionou, também, com um outro público: ao encerrar as atividades de uma turma de literatura, na hora da foto tirada após uma apresentação teatral, um aluno implorou para puxar meus cabelos. Permiti, como quem dá pão a um faminto, mas era isso: um semestre inteiro aguardando a oportunidade de puxar meus cabelos e saciar um fetiche...Que coisa!
O amigo de F.J., a mesma coisa: fetiche por me ouvir falando em espanhol, porque me pegou cantarolando músicas de Manu Chao aqui em casa e achou minha pronúncia sensual. Resumindo: entre os meus candidatos a amores e o meu entorno em geral, ninguém presta atenção em mim, só aos meus pedaços, aos meus papeis. Decidi, devido à minha pouca importância e à parcialidade das relações, largá-los à deriva. Se alguém me quiser mesmo, sabe como me encontrar. Caso contrário, relações unilaterais não são relações.
Para arrematar meu quadro, na terça-feira passada, recebi meu ex aqui em casa, porque achei ele meio depressivo e no fundo do poço. Nunca deixei de ser amiga dela, apesar de tudo. E não é que já perto da meia-noite ele teve uma convulsão e eu pensei que era um AVC ou que ele estivesse morrendo? Na hora do pânico, tudo que a gente sabe de primeiros socorros vai para o ralo até que a gente pare de tremer e tome providências...
Mas foi assim: ele assistia a um filme na sala, enquanto eu terminava um trabalho no computador. Ao acabar, sentei no sofá, perto dele, que se queixava da velocidade das imagens.
Pouco depois, queixou-se de que estava vendo muitas luzes ao olhar a tela da televisão. Passou a me mostrar luzes que eu não via, numa outra direção, desenhando a trajetória das luzes imaginárias com os dedos, ate que virou para a parede branca, fazendo o mesmo e eu lhe disse: "Sim, isso existe, se movimenta e é uma aranha!", pois era isso mesmo.
Interiormente, desde o primeiro queixume, achei que ele iria sofrer alguma coisa, pois ver luzes à toa é prenúncio e curto-circuito cerebral (se isquemia,derrame, convulsão ou desmaios, tanto faz), mas calei-me pensando que era eu a alardeadora. Daí ele caiu aos poucos, sufocando e tremendo, se debatendo. para mim, a própria visão da morte, cena que não quero ver jamais, puro trauma.
Coloquei uma almofada sob a cabeça dele, liguei para o SAMU e para uns três números que não me atendiam.
Saí louca para abrir o carro e fui ligando para uma amiga realmente eficiente, que me tranquilizou quando pode, com medo de que eu não conseguisse dirigir. Ele foi se recuperando, sem lembrar nada...Depois de uns minutos, soube dizer quem era ele e quem era eu.
Fomos para o hospital e lá ficamos da meia-noite e vinte às dez horas da manhã, após ressonância e outros procedimentos que atestaram tudo como efeito da abstinência do álcool.
Um dia eu disse que achava que tinha dependência emocional dele. Não era isso. Ele teve muito mais de mim e ao sair do hospital pediu para ficar em minha casa e não com os pais dele. Permiti: nunca iria desamparar um enfermo, especialmente um que precisava de amparo emocional.
A mãe dele disse que se ele não estivesse comigo, poderia ter morrido, pois ela não veria a crise e, por conseguinte, não iriam dar tratamento. Seja como for, venho tendo dias pesados pois também meu outro flerte passou quatro horas, ontem, depositando em mim, sua confiança e seus segredos, para os quais é necessária a compreensão.
Ontem à noite eu nem saí. estava psicologicamente cansada. E hoje, que iria sair com umas amigas, presumi que brigaríamos a desisti. Mas era questão fácil: é que gosto de sair com gente concessiva. Sou concessiva para favorecer o convívio coletivo temporário e por isso acho um absurdo ter que ouvir pagode e músicas detestáveis ou mumificantes por horas, porque a dona do carro não quer ceder do seu 'gosto'.
Limito-me a tentar negociar, mas vou ouvir um 'ah, não" e dali depreender algo como "o carro é meu' e coisas congêneres. Fiquei em casa, fiquei em paz. Também tenho carro e sou concessiva, porque sair pressupõe manter bom astral e bom humor. Eu não teria isso.
Gosto da minha solidão, do meu lar, do meu tempo, de fazer minha rota...Tem coisas que eu gosto de fazer sozinha e ponto final. Companhia eu quero quando, de fato, contribui para meu bem-estar e a recíproca também.

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