Louquética

Incontinência verbal

sábado, 9 de janeiro de 2016

Coração: antecedentes


Uma das primeiras coisas que ele me perguntou foi se eu já havia amado.
Eu respondi que sim. por duas vezes.
Eu deveria ter visto que se ele me perguntava, era porque sabia que amor mesmo é coisa rara. Ora, na minha idade, se eu nunca houvesse amado, seria uma anomalia.
Expliquei meio horrorizada o que foi o Ex-Grande Amor da Minha Vida, enquanto o carro subia o viaduto da Avenida João Durval, no sentido da casa dele...Isso foi bem simbólico para mim...Conduzir o homem, inverter os papeis e, enfim, conduzir...
Eu pergunto a mim mesma, hoje: "E Marcelo? E ele, o meu Ex-Grande Amor"? Por que ele ainda se importa comigo? por que liga para minha casa, acompanha a minha vida e aceita as migalhas que dou?
Não escondi isso do meu namorado atual. Eu sequer sabia que a gente ia namorar. Falei que a gente se viu há mais de um ano, por sexo, não por amor - por que ele, o atual, me perguntou se bateu algo diferente, se havia resquícios de amor... Não. Não tem. Eu até fugi os telefonemas, por duas semanas, a pretexto de viagens de fim de ano em lugar fora do planeta. Eu fui, de fato à Praia do Forte, mas inventei que me soquei na Reserva da Sapiranga e o sinal do telefone era quase inexistente. Tudo mentira. Ignorei. Desliguei o telefone de propósito...
Anteontem ele conseguiu falar comigo. Fui educada e alegre, quado tinha planejado escancarar que estava namorando e que nosso lance acabou de vez...Mas tive pena dele, da vida chata e formal dele. E concluí que ele estava longe, que nunca mais a gente vai se ver e que a distância resolveria muitas coisas, bastando mudar de telefone ou nunca atender.
Sou cheia de angústias. Na verdade, não queria namorar, queria apenas viver o romance de agora como um intervalo no tédio.
Quando eu penso: Tudo de novo! Gostar, querer, sentir ciúmes, sentir falta, construir histórias, terminar, entristecer, lidar com a perda, recomeçar...
E o desencanto? O desencanto é a coisa mais triste no amor.
Não há mais novidades, os defeitos pululam em nossa face, a ausência do outro traz alívio, quando deveria trazer saudades...
Até me decidir a entrar na dança, tive que ser honesta e riscar outras possibilidades (ah, Phillip!!!a fruta mais doce do jardim do paraíso...fruta que deixei no galho, à mercê de outrem)...E tive que encerrar a sinfonia inacabada com V.
E eu já não posso ser cínica e negar que amei V. Muito! A ilusão mais verdadeiramente destruidora que correu meus sentimentos e minha vida...Bem como diz o personagem Joaquim, do poema em prosa do João Cabral de Melo Neto, nos "Três mal amados"...

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

João Cabral de Melo Neto João Cabral de Melo Neto - Obra Completa. - grifos meus)

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