Faz um tempo que a
arte existe, muito antes das teorias e dos críticos; muito antes de o ser
humano se dar conta de que aquilo que ele fazia era arte...Sem contar aquilo feito com outros fins e transformado, através dos tempos, em arte.
Finalmente, temos
que conviver com a vigilância política da arte e da palavra.
Temos que conviver
com gente que hostiliza ator e atriz na rua, porque não sabe distinguir o
trabalho artístico desempenhado dentro de uma obra de ficção e o cidadão real,
de carne e osso que empresta-se e presta-se a um papel, por instantes,
perfazendo seu trabalho.
É esse mesmo povo
que prega que as novelas degeneram a sociedade.
Ora, a sociedade, tem gays, homens,mulheres, crianças, gente tímida, gente violenta, traições, roubos, amores,
sonhos, aventuras, enganos...Tudo que há no mundo.
Entretanto, alguém precisa escrever nos caracteres
finais das novelas: “esta é uma obra coletiva de ficção...” e se resguardar das
coincidências. Quantas vezes dizemos que nossa vida parece uma novela? Quantas
vezes nossa vida familiar e amorosa parece drama mexicano ou filme de Almodóvar?
“O artista observa o
mundo e recolhe aquilo que, por algum motivo, o interessa. Trata-se de um
percurso sensível e epistemológico de coleta: o artista recolhe aquilo que de
alguma maneira toca sua sensibilidade e porque quer conhecer. Às vezes, os
próprios objetos, livros, jornais ou imagens que pertencem à rua são coletados
e preservados. Em outros casos, é encontrada uma grande diversidade de
instrumentos mediadores, como os cadernos de desenhos ou anotações, diários,
notas avulsas para registrar essa coleta que pode incluir, por exemplo, frases
entrecortadas ouvidas na rua, inscrições em muros, publicidades, fotos ou
anotações de leitura de livros ou jornais. Esse armazenamento parece ser
importante, pois funciona como um potencial a ser, a qualquer momento, explorado;
atua como uma memória para obras.” (SALLES, 2008, p.
51).
Mas, aí vem a outra
parte dos descontrolados e pede para que a obra de arte seja fidedigna e
comprometida socialmente.
Vem alguém e cobra
fidelidade testemunhal e impõe que apenas mulheres podem escrever, representar
ou ficcionalizar sobre mulheres, gays, negros e qualquer minoria.
Cortam-se as asas da
liberdade criativa. Não pode mais haver eu-lírico. Chico Buarque não pode mais
ensejar cantigas de amigo, primeiro porque ele não viveu o período medieval;
segundo, porque ele não é mulher. Sequer pode advertir: “Mirem-se no exemplo
daquelas mulheres de Atenas”!
Nem Jorge Amado, que
não era negro, poderia fazer ficção sobre a cultura e o povo negro, porque não
teria a devida qualificação testemunhal para isso.
Claro que há
cooptações de obras de todos os segmentos para fins escusos.
Claro que as obras
têm selos ideológicos embutidos por seus contextos (tempo, obra, moda, valores,
etc)... Mas vamos muito mal, sim.
Há a
obrigatoriedade, também da boa recepção e simpatia por obras de autoria de
representantes de qualquer minoria. Antes da obra, vêm a vinculação do autor e,
desta forma, é preciso ser simpático, pois o contrário seria discriminação –
como se as minorias não fossem compostas por seres humanos tão humanos quanto
quaisquer outros que, por isso mesmo, estão vulneráveis ao erro, à imprecisão,
aos defeitos...
Já lemos bastante as
teorias da estética. Não vamos fingir que não fazemos escolhas e que não
sabemos distinguir isso daquilo. Se não, não escolheríamos nem a fruta na
feira, nem a roupa do trabalho.
Gosto existe, sim.
Moldado culturalmente?
Com certeza!
Mutável em certa
medida? Também.
Intrínseco? Claro
que sim, porque ninguém, nenhuma moda, força ou teoria, podem fazer você gostar
de jiló, se você não gostar de jiló; nem gostar de verde, se você não gosta de
verde.
As culturas se
interpenetram; as artes fazem intercâmbios; conceitos e gostos se entrecruzam.
Não há cultura
isolada, pura, essencial.
Zangar-se porque um
objeto sagrado na sua cultura é usado como adereço na cultura dos outros, é
descurar-se de todos esses fatos e da transitoriedade de usos, acepções e concepções
de objetos culturais.
Uma coisa é o
desrespeito descabido; outra coisa é a ressignificação.
As invenções de uma
cultura costumam ser amplamente utilizadas em larga escala por outras – pense aí se alguém te disser que
você não pode usar o alfabeto, porque é uma invenção fenícia; nem usar
eletricidade; nem caneta esferográfica; nem fazer ressonância, nem usar
recursos baseados em substâncias químicas desenvolvidas por
estadunidenses...Nem usar tal perfume, porque é francês e, portanto, seria
apropriação cultural...Já pensou?
Agora, pense o
oposto: pense lá à moda do Major Quaresma, do livro de Lima Barreto, “Triste
fim de Policarpo Quaresma”, que devemos usar (da palavra à comida) apenas
coisas brasileiras? Pois, até mesmo o protagonista do livro chega à
decepcionante conclusão que o que ele julgara ser autenticamente nacional é
fruto do trânsito cultural.
Fora o fato desses
sujeitos do discurso purista ignorarem que existe também uma indústria cultural
muito interessada em moldar seus gostos, fazendo com que sob um calor infernal
um nordestino use jeans ou que as dietas sejam substituídas por comidas nada
típicas e bebidas gaseificadas com sabor artificial de coisas que nem sempre
estão num pomar...
É muita ingenuidade
deixar de ver que os segmentos de minorias são também enxergados como nichos
consumidores – lucrativos eventos, rentáveis modas, coisas especializadas que
jogam com a ideia de identidade...Assim se faz o mundo - e o mundo é bem maior do que a gente pode perceber!
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