Louquética

Incontinência verbal

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A mão do pai


O fardo sobre o ser humano é grande. Ainda mais por ser saber humano, falho, imperfeito, inacabado e tendente ao erro - coisas que todas as religiões reforçam. Ai de nós, ensinados a não guardar mágoas, a amar a todos, a desculpar, a perdoar, a ser superior mediante a sublimação de nossos sentimentos mais originais...E volto a repetir: nunca criei inimizade com quem quer que fosse gratuitamente; não há em mim um só ódio ou mágoa sem justa causa. No seio da família, então, é talvez onde a gente mais sofra ou, pelo menos em meu caso. Não me vejo neles, não me entendo com eles, embora isso não signifique necessariamente a falta de amor. Mas é amor pisoteado, magoado, cheio de recordações de dores...É amor daqueles que a gente chega perto já com a caixa de curativos, porque sabe que não vai sair ileso, sem feridas, sem cortes, sem dores. Umas feridas virão por palavras, outras pelo comportamento e muitas pelo estranhamento.
Não sei o que eu fui fazer ali, naquela família.
Tento negociar com Deus, zerar as contas, implorar para que nenhuma futura encarnação aproxime a gente de novo.
Tentei fazer com que tudo fosse diferente, mas a verdade é que estamos bem quando estamos distantes. Sábio é quem diz que família é ótima, na fotografia. E cedinho, a filha mais velha de minha madrasta falou e explicou: "Parente é carne no dente, ou seja, incomoda!".
Especialmente com meu pai, que se tornou um grande vigia do meu comportamento no Facebook, a relação piorou a olhos vistos.
Nós havíamos nos reaproximado há uns anos, porque também Andréia me convenceu de que, se agora meu pai era presente e interessado, que eu aceitasse a nova configuração dele, porque esta era a forma de incentivar a ser melhor e que eu considerasse o esforço envidado.
Agora ele me acha metida a besta. Ele vê, na minha página, onde vou e o que eu publico e deve lembrar muito bem que eu sou doutora, que escrevo coisas que ele não entende, que somos muito diferentes, eu e minha família fútil, acostumada a ser milionária há cinco décadas e desprezar o estudo; hoje, miseráveis ainda que com alguma pompa, falam, em seu português lamentável e desapegado de flexões, sobre passado e sobre a inutilidade prática do meu conhecimento, pois que doutor, para eles, é como nas novelas da rede Globo: epíteto de quem tem dinheiro. Todo doutor de novela Global é apenas alguém com poder financeiro.
Meu pai acha um absurdo eu não ser mais militar. Critica minhas escolhas, comemora minhas derrotas como se elas fossem uma confirmação da razão dele sobre as opiniões que tem.
Ele gosta de carros caros e os tem e mede a vida a partir dos bens. Sempre foi assim...
Decidi aceitar que não tenho pai. Não quero conta, nem farei mais os teatros comemorativos do natal, do aniversário, do dia dos pais.
Ele foi meu pai até os meus sete anos. Depois, não. A figura que escolhi para ilustrar esta postagem, lembra o dia em que el me levou para a escola, em meu primeiro dia de aula...Depois, foi pai por episódios, em curtas temporadas.
Vou também repetir o que eu aprendi com o Stuart Hall, em Da diáspora:identidades e mediações culturais, porque, para mim, o teórico que só teoriza no abstrato, geralmente está fazendo ciência de gabinete, isto é, nunca foi a campo, nunca acompanhou nem vivenciou o que descreve e analisa. Hall, no entanto, , na parte 5 de seu livro, em que concede uma entrevista transcrita nesta parte, fala a Kuan-Hsing Chen, que o entrevista formulando uma interessante pergunta, dentre tantas, sobre fragmentos da própria experiência pessoal de Hall frente aos seus objetos de discussão.
Depois de tratar da trajetória biográfica inicial e explicar que ele era diferente da família dele, seja pela cor, seja pela configuração psíquica e social, ele diz: " Por causa disso, fui sempre identificado em minha família como alguém de fora, aquele que não se adequava, o que era mais negro que os outros, o 'pequeno coolie', etc. E desempenhei esse papel o tempo todo. Meus amigos da escola, muitos dos quais provinham de famílias de classe média respeitáveis, porém mais escuros que eu, não eram aceitos em minha casa. Meus pais não achavam que eu estivesse fazendo amizade com as pessoas certas. Eles sempre me encorajavam a  relacionar-me mais com amigos da classe média, de cor mais clara, o que eu não fazia. Em vez disso, me afastei emocionalmente da minha família e fiz amizades em outros lugares. Passei minha adolescência negociando esses espaços culturais. "(HALL, 2006, p. 386(
Apenas confirmo meu afastamento emocional, já de longa data, a ponto de não sentir saudades de um ou outro senão após anos...ou por sublimar a possibilidade de sentir saudades. Mas não era isso que eu queria para mim, nem para eles. O desejável era uma relação boa que nunca terei. O desejável era que também eu não pensasse sobre meu pai aquilo que penso, pois o que penso é que ele é corrupto, desonesto, submisso na família da mulher dele e omisso na minha família. Penso que ele é covarde, que nunca enfrentou uma conversa comigo e que preferiu assim fazer, para não se deixar afetar pelas verdades de sua negligência paterna e da mediocridade explícita daquele caráter vicioso de quem eu ainda reluto em admitir que possa ter me transmitido o DNA, porque somos diferentes, estranhos...E porque psicanaliticamente, processei a morte do pai.

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