Sou uma pessoa cheia de angústias, mas a maioria
delas eu administro com estratégia e boa vontade, a fim de não criar pedras
imóveis no universo psíquico ou acomodações prejudiciais, do tipo de ir
deixando para amanhã ou para terceiros a resolução do que me aflige. Também
aprendi cedo que eu nunca seria uma pessoa de remédios tarja-preta, porque esta
conveniência de engolir um fármaco para provocar bem-estar, atenuando efeitos
para fugir da resolução com as causas, definitivamente não estava em meus
planos nem seria uma opção. Lógico que entendo e até concordo que se a pessoa
passou por um trauma grave, uma perda irreparável ou foi afetada emocionalmente
de tal forma que paralisou, não come, nem dorme, precisa mesmo se entupir de
remédios, dormir e ir recobrando a independência posteriormente. Não sou
médica, mas penso que isso é coisa que pode se sustentar por três dias a três
ou quatro semanas. Passou disso, vira dependência. Entendo que a pessoa vai
ganhando tempo frente ao trauma, amadurecendo a emoção (neste mundo horroroso a
gente lida com violência, assassinato, roubo, tortura, estupro, humilhações,
lutos afetivos e muita coisa ruim mesmo!), de modo a se fortalecer para cair na
realidade e admitir que perdeu, que passou por aquilo, mas, justamente, é
necessário ter a consciência de que já passou e ir sepultando o vivido – o que
não equivale a esquecer, mas seguir em frente ‘apesar de’.
Assim tento viver o meu hoje, que contém, lógico,
os saldos emocionais das coisas vividas que convive, em contrapartida, com
minha forma de administrar a vida.
Hoje tenho uma reunião a que não vou. Não vou
porque não quero ir e tenho outras coisas mais úteis a fazer, no meu outro
lugar de ensino. Por incrível que pareça, não falto a reuniões para vagabundar:
vou a outra reunião às três, vou fazer novas xérox para reconstituir os módulos
de disciplinas levados pelos ladrões do assalto de que fui vítima na
terça-feira passada.
Mas não quero ir e dizer não é uma tarefa difícil.
As segundas-feiras são meu único dia de folga na semana. Daí que a reunião será
às 16 horas, em Salvador. Lá eu não vou. Mas como neurótica que sou, não tenho
muita criatividade e cara-de-pau para lançar mão de desculpas. Penso, porém,
nelas, para não ‘me queimar’ com quem pode mais que eu. Preferia ser sincera:
não deu. Vou ser estratégica – e, por conseguinte, mentirosa. E está aí um
rótulo que não me cabe, porque prefiro multiplicar inimigos a ter que viver o
faz-de-conta.
Falando nas mentiras ou na ocultação da vida
privada, não sou uma pessoa de assumir relacionamentos. Acho que é porque não
me sinto namorada de X ou de Y e vejo como uma bruta responsabilidade vincular
o nome de alguém ao meu nome, naquela pertença que muito me persegue: “Mara de
Ninno”, por exemplo, como um dia foi.
Mas, sim, me enrolei toda: não obstante me meter na
casa de FJ para esperar que ele se arrumasse para nossa saída, lá vem a família
cada vez mais entrando em minha intimidade, ou seja, me incluindo como a
namorada dele. E vem sobrinha, irmã, mãe, primos... Decerto, me tratam com
deferência e naturalidade, mas fica confirmado o que eu não admito e não
assumo. Vejo que sou covarde para isso.
Na manhã do domingo, contrariando minhas expectativas,
meu pai veio à minha casa e não houve como deixar de ver o carro de FJ na
garagem. Respondi à bateria de perguntas do meu pai, tendo ir atendê-lo
deixando meu par no sofá sob a recomendação de que não saísse dali de jeito
nenhum.
Quantas vezes usei a provável visita do meu pai nas
manhãs de sábado e de domingo para fazer com que FJ fosse embora bem cedo? E
isso se devia ao fato de que eu queria dormir só e que sempre aparece alguma
coisa, pessoa ou vizinho que põe em risco meus segredos da vida particular que
me impelem a não dar mole com gente em casa. Além disso, não gosto de namorados
e afins em minha casa. Mas dancei: respondi ao meu pai, encarei os ciúmes e
curiosidades dele: “Quem é? Faz o que? Mora onde? Estudou o que? É filho de
quem? Tem futuro? E Zero Um, como vai ficar?” e etc...
Pior seria se eu inventasse uma desculpa para não
ir à reunião e desse de cara com outros colegas passeando pelo shopping. Fui
obrigada a assumir uma situação, uma relação, mesmo sem mudar o status no
Facebook – que não mudarei mesmo. Minha relação assume, cada vez mais, o status
de ‘relacionamento sério’ e FJ vai deduzindo que pode assumir os ciúmes dele –
paranoia tão grande que ele inventa desculpas para ‘dar boa-noite’ às minhas
amigas no telefone, durante minhas ligações, para confirmar que estou falando
mesmo com elas. Também andou questionando meus prováveis flertes na academia –
não, eu não os tenho. Mas, sim, eu encontro quem queira flertar comigo – e insinuou
o interesse do Amigo dele por mim. Já vi que tudo se confunde e sei que estou
enrolada num relacionamento enrolado, na berlinda da angústia das decisões. Vou
fazer como os viciados quando em tratamento e tentar viver ‘só por hoje’ o que houver para viver – quem
sabe eu deixo de tentar prever e controlar o futuro? Mas para isso não há
remédio nem receitas também.
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