Louquética

Incontinência verbal

sábado, 19 de setembro de 2009

A água da lágrima da tua mágoa



O título deste texto é, na verdade, um verso de um poema de Odete Semedo, escritora da Guiné Bissau que esteve presente na XXII edição da ABRAPLIP (Associação Brasileira de professores de Literatura Portuguesa), ocorrido na UFBA, universidade em que estudo.
Além de linda, (e devo frisar, uma mulher negra linda, porque ao contrário de reforçar os preconceitos, é necessário trazer todas as adjetivações possíveis para que fique bem claro que estou falando de uma mulher negra), a criatividade e a poeticidade de sua postura são impressionantes.
Claro, o sobrenome de Odete já permite um trocadilho: Semedo, Sem Medo.
Veja que supremacia!!!Que ser humano pensaria em tão linda versificação que me impregnou a memória, os ouvidos: "A água da lágrima da tua mágoa"...não prestei atenção em mais nada. O que haveria além disso? mas, que verso tamanhamente suficiente que não precisa de mais nada!
Nem, Gil, cantando "A lágrima clara sobre a pele escura". Não, Odete é incrível. Aliás, quem se pensa poeta deveria ir lá, assistir a essa apresentação.
Se eu fosse ela, já teria validado toda minha existência por ter criado este verso. Esta seria minha contribuição para o mundo...
Ora, sim, as literaturas africanas pós-coloniais em Língua Portuguesa não podem se ajustar à proposta universalizante de serem apenas literatura. Não dá: a força da experiência da colonização, as sequelas deixadas e sentidas e a forma como oprimido e opressor viveram tudo isso suscita uma outra ordem de coisa e uma outra experiência literária.
Dirão, quiçá, que bom é Fernando Pessoa lastimando a travessia portuguesa e dizendo do Atlântico "Quanto do teu sal/ são lágrimas de Portugal". Ele é canônico. Ele pode. A experiência histórica de uma nação portuguesa que precocemente centraliza seu governo e se lança às navegações, esta sim, pode ser lembrada.
A literatura africana, não: é coisa de negro fundamentalista e seus movimentos - assim pensam tantos que ignoram os percursos e as histórias.
Mas fico feliz e emocionada em ver aquela mulher negra e linda, representante da intelectualidade negra letrada, sim, porque é preciso pontuar a necessidade de ter os instrumentos da cultura dominante e seus códigos... agora me venham com a universalidade, essa criação burguesa do século XIX, se me cérebro estiver certo! não, meus amigos, a experiência literária - que decerto não corresponda às biografias, não repita obrigatoriamente contextos e vivências - é diferente para cada eixo, para cada escritor (se é que eles existem conforme foi pensado antes de decretada a morte do escritor, em seus termos correntes antes de Barthes).
Nesta mesma apresentação, devido ao meu torpor, não sei se ela falava de um poema seu ou se repetia os versos de um outro escritor, mas a força da imagem ficou: a moça que envelheceu na adolescência. Este poema, lido em crioulo e em português narra a história de uma mocinha que lavava roupas na beira de um rio e que foi violentada por um colonizador... ah, absolutamente doloroso e lindo o poema. Nada sei sobre ele. Poesia boa é assim mesmo: anestesia os sentidos, faz com a gente o que bem quer, iluminando uns versos, umas imagens, tornando opacos outros...que bom, se percebo isso é porque sou gente!
Nunca irei esquecer: A água da lágrima da tua mágoa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário