Vítor, filho da minha amiga, precisou de uma
consultoria online em Literatura. Devo dizer que este online limitou-se aos
trinta e poucos minutos de ligação telefônica. O fato é que gostei de recordar
uns trechos interessantíssimos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis. Guardadas as distâncias temporais entre a nossa época e a do romance,
ainda acho lamentável que para os estudantes de agora o livro pareça uma
sentença de morte: difícil, chato, pesaroso!
Mas Vítor, por temer a reprovação, até que se envolveu
com o livro. Deu as respostas certas, ainda que com uma boa medida de
insegurança.
Zero Dois ficou me olhando ao telefone: eu, com um
livro na mão, toda atenção, toda ouvidos, a citar Memórias Póstumas. Ele, alimentando
fetiches, achando erótico eu estar em meu papel de professora, a falar as
palavras que ele ignora. E não porque ignore significados, mas contextos. Até
chegou a cogitar indiretas dentre as coisas que eu formulava ao telefone... E
depois, despregou as palavras do contexto ignorado, rasurou e deu-lhes sentidos
próprios... Ou, aliás, distorceu sentidos, fez um nonsense.
Ah, claro, não voltei para o Zero Dois que, aliás,
neste dia soube que era o Zero Dois e que veio aqui em casa por ter me visto
com o Zero Um. Não foi isso que revelou a novela passional, mas meu telefonema
posterior, com a amiga: ele colou o ouvido na conversa e quando ela me
perguntou quem estava em minha casa e eu disse: “Zero Dois”, ele entendeu. O
romance deixou de dar certo, eis o caso. Nem em doses homeopáticas eu quero
mais. Quis, é verdade, no momento, porque afinal foi consensual. Sensual. Ah,
meu Deus! O ponto sempre foi esse: compatibilidade sexual... E o Zero Dois é
sagaz, inteligente. Ficou vendo um filme comigo, todo feliz pela situação e
todo sem jeito com meus episódios de rinite, em minhas crises de asma que
interrompe a respiração e os beijos.
Mas, voltando ao Machado de Assis, tínhamos que
traçar uma analogia entre os desejos de glória do Capítulo O emplastro e aquele
que se chama Conquanto. Era uma questão de trechos, mas não resisto a
reproduzir a quase totalidade destas partes, respectivamente;
“Essa ideia era nada menos que a invenção de um
medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar nossa
melancólica Humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a
atenção do governo para este resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei
aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um
produto de tamanho e tão profundo efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro
lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto
de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas
caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplastro Brás Cubas. Para que
negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas.
Talvez os mais modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me
hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as
medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e
lucro; de outro, sede de nomeada. Digamos: amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava
dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem
cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos mais
antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a cousa mais
verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína
feição”.
(MACHADO DE ASSIS, 1979, p. 27).
Não só me rendo a esta genialidade, mas à
atualidade desta obra de mil oitocentos e cacetadas: não obstante, se houvesse
um emplastro desses, eu recomendaria à minha amiga, mãe de Vítor. Eis que a
Humanidade deixou de ser melancólica para ser depressiva, o que dá na mesma,
com os pequenos agravantes farmacológicos e o showbizz dos que se dizem
depressivos para ganhar carinhos e ver perdoadas as mediocridades, afinal este
troço está na moda. Mas faz tempo que a humanidade está doente.
Encanta-me essa assunção da vaidade, do desejo da
glória assumido pelo narrador só após a morte. Conheço muita gente humilde
assim, especialmente no ramo da Literatura, das Letras, em que as pessoas se
travestem de modestas, humildes e despretensiosas, mas estão em buscar de Óscar
e glorificação. Talvez só admitam ao morrer.
E a outra parte que disseca a hipocrisia social de
todo dia – e olha que aqui estou a alfinetar as colegas que empurram seus
filhos para os cursos de Direito e Medicina que impedem que suas filhas namorem
ou se casem com pessoas de classe inferior à sua – é justamente no capítulo
Conquanto:
“-Conquanto o que?... Interrompi eu, imitando-lhe a
voz.
- Ah! Brejeiro! Conquanto não te deixes ficar aí
inútil, obscuro, e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não
ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o
nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos,
mas se fosse necessário começar vida nova, começava sem hesitar um só minuto. Teme
a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por
diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros
homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...” (p. 72).
E daí que não é um mau exercício discutir Machado
de Assis. Nem mesmo julgá-lo longe demais do nosso tempo. Ou ele se adiantou ao
tempo ou os homens não mudaram nada de lá para cá. Assim é: desejos de glória,
interesses, status quo. E tudo exposto com base na ironia machadiana, de que
sou adepta e fã declarada. Hipocrisia é um troço difícil de engolir, porque
sempre se refere a algo que está presente, que é praticado, que todos fazem e
que todos sabem, mas que ninguém declara.
Coincidentemente, nesta postagem vão embutidas
muitas situações que envolvem gente interesseira, das quais a mãe de Vítor que
declarou ter casado por interesse mesmo, “para ser madame” – pelo menos, não
alimentou a hipocrisia... O casamento acabou, os bens continuam, a vida
continua... E por falar em vida, vou ali cuidar da minha.
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