Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 19 de novembro de 2013

As mentes que gritam




Minha amiga, Mais-Que-Irmã, veio à minha casa ontem à noite, dizendo que queria se suicidar, mas que não queria morrer agonizante, com dor ou aos poucos. Disse que eu era a única pessoa que poderia compreendê-la.
Jogou-me à cara os pactos adolescentes que fizemos, de dar um jeito de libertar da vida qualquer uma de nós duas que se visse presa a uma cama, a uma doença, a uma enfermidade que limitasse nossa existência a um estado vegetativo. Disse-me, depois, que ela era tetraplégica do juízo, que sabia que a esquizofrenia tinha controle, mas não tinha cura e que já estava cansada de dez anos de psicanálise, dez anos de psiquiatria e dez anos de remédios que lhe deixavam gorda e parada, com um sono que não dá descanso.
Ela me pediu para apelar a Thales por um opiáceo, ou que eu procurasse Marcel com o mesmo fim. Ela deve lembrar-se das visões românticas que os nossos amigos drogados da universidade nos falava, de ‘morrer de prazer’ na codeína, na morfina, em qualquer coisa do gênero.
E eu ouvi tudo.
Ela fez questão de vir aqui a pé, tendo percorrido uns seis quilômetros, coisa que eu, que me julgo normal, tento fazer na academia em tempos de TPM exacerbada, porque preciso refrear a ansiedade causada pelos hormônios.
Foram horas angustiantes.
Ela dizia que ouvia vozes do mesmo jeito, há dez anos, que era como ter um rádio na cabeça, eternamente ligado num mesmo programa. Digo, de passagem, que o programa que ela ouve é de violência e gira em torno da morte do pai, da mãe e dos dilemas morais. Os pais dela estão vivos, donde há que se deduzir o medo do luto.
Depois de um tempo ela disse que as vozes silenciaram.
Ela estava indecisa: foi à cozinha, escolheu uns alimentos, depois me viu servir o jantar ao meu tio e quis experimentar. Pediu pimenta calabresa e experimentou o prazer da comida com uma taça de vinho que lhe deixou em torpor. Pronto: silêncio na cabeça.
Conversamos mais: entendi que ela busca um esteio, que vem à minha casa porque lhe passo segurança e não vou abandoná-la à própria sorte, como muitas vezes eu já provei. Também não faço observações dolorosas e sei que na análise (assim como eu) transferimos para a analista a amiga que fomos uma da outra. Temos a mesma analista, aliás, tivemos, porque estou longe há mais de um ano.
A doença psíquica de minha amiga me cansa.
Os vícios dos meus amigos me cansam.
A covardia e teimosia de outros amigos me cansam também.
Porém, muito raramente algum deles acolhe o meu cansaço. Não sou mais forte que eles, também tenho angústias. Fico feliz, porém, por atenuar os problemas que eles carregam, apesar dos cansaços; e tenho profundo respeito pelas coisas boas que vivemos juntos.
Para viver é preciso coragem mesmo. Aceitar a missão da existência não é para fracos. E todos somos frágeis, mas não fracos.
Ouvi, também, sem jeito, o telefonema de F.J., que se disse arrependido de protestar contra meu ritmo metódico: “Sua vida é organizada. A minha é um caos”, disse-me ele. E depois falou das escolhas que fizemos e disse isso como se fosse possível apagar as mágoas construídas nesses dias de desentendimento, quando também fiz outras escolhas no coração e na vida. Os homens e sua eterna falta de cuidado com as mulheres... Quem pode com isso?
Minha vida não é organizada, eu é que tento organizar as coisas. Porém, se tenho algo a cumprir, eu cumpro. Tenho que organizar a vida e as coisas e, por isso, não vejo a vida sem organização e método porque não sei viver no caos. O resto é casca, é aparência, é coisa do julgamento alheio sempre tendencioso a crer que sou mais do que sou, que posso mais do que posso, que tenho mais do que tenho... De vez em quando, me despedaço.

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