Minha amiga, Mais-Que-Irmã, veio à minha casa ontem à
noite, dizendo que queria se suicidar, mas que não queria morrer agonizante,
com dor ou aos poucos. Disse que eu era a única pessoa que poderia
compreendê-la.
Jogou-me à cara os pactos adolescentes que fizemos,
de dar um jeito de libertar da vida qualquer uma de nós duas que se visse presa
a uma cama, a uma doença, a uma enfermidade que limitasse nossa existência a um
estado vegetativo. Disse-me, depois, que ela era tetraplégica do juízo, que
sabia que a esquizofrenia tinha controle, mas não tinha cura e que já estava
cansada de dez anos de psicanálise, dez anos de psiquiatria e dez anos de
remédios que lhe deixavam gorda e parada, com um sono que não dá descanso.
Ela me pediu para apelar a Thales por um opiáceo, ou
que eu procurasse Marcel com o mesmo fim. Ela deve lembrar-se das visões
românticas que os nossos amigos drogados da universidade nos falava, de ‘morrer
de prazer’ na codeína, na morfina, em qualquer coisa do gênero.
E eu ouvi tudo.
Ela fez questão de vir aqui a pé, tendo percorrido
uns seis quilômetros, coisa que eu, que me julgo normal, tento fazer na
academia em tempos de TPM exacerbada, porque preciso refrear a ansiedade
causada pelos hormônios.
Foram horas angustiantes.
Ela dizia que ouvia vozes do mesmo jeito, há dez
anos, que era como ter um rádio na cabeça, eternamente ligado num mesmo
programa. Digo, de passagem, que o programa que ela ouve é de violência e gira
em torno da morte do pai, da mãe e dos dilemas morais. Os pais dela estão
vivos, donde há que se deduzir o medo do luto.
Depois de um tempo ela disse que as vozes
silenciaram.
Ela estava indecisa: foi à cozinha, escolheu uns
alimentos, depois me viu servir o jantar ao meu tio e quis experimentar. Pediu
pimenta calabresa e experimentou o prazer da comida com uma taça de vinho que
lhe deixou em torpor. Pronto: silêncio na cabeça.
Conversamos mais: entendi que ela busca um esteio,
que vem à minha casa porque lhe passo segurança e não vou abandoná-la à própria
sorte, como muitas vezes eu já provei. Também não faço observações dolorosas e
sei que na análise (assim como eu) transferimos para a analista a amiga que
fomos uma da outra. Temos a mesma analista, aliás, tivemos, porque estou longe
há mais de um ano.
A doença psíquica de minha amiga me cansa.
Os vícios dos meus amigos me cansam.
A covardia e teimosia de outros amigos me cansam
também.
Porém, muito raramente algum deles acolhe o meu
cansaço. Não sou mais forte que eles, também tenho angústias. Fico feliz, porém,
por atenuar os problemas que eles carregam, apesar dos cansaços; e tenho
profundo respeito pelas coisas boas que vivemos juntos.
Para viver é preciso coragem mesmo. Aceitar a
missão da existência não é para fracos. E todos somos frágeis, mas não fracos.
Ouvi, também, sem jeito, o telefonema de F.J., que
se disse arrependido de protestar contra meu ritmo metódico: “Sua vida é organizada.
A minha é um caos”, disse-me ele. E depois falou das escolhas que fizemos e disse
isso como se fosse possível apagar as mágoas construídas nesses dias de
desentendimento, quando também fiz outras escolhas no coração e na vida. Os homens
e sua eterna falta de cuidado com as mulheres... Quem pode com isso?
Minha vida não é organizada, eu é que tento organizar
as coisas. Porém, se tenho algo a cumprir, eu cumpro. Tenho que organizar a
vida e as coisas e, por isso, não vejo a vida sem organização e método porque
não sei viver no caos. O resto é casca, é aparência, é coisa do julgamento
alheio sempre tendencioso a crer que sou mais do que sou, que posso mais do que
posso, que tenho mais do que tenho... De vez em quando, me despedaço.
Nenhum comentário:
Postar um comentário