Louquética

Incontinência verbal

sexta-feira, 12 de março de 2010

E Deus fez a mulher


"Benditos teu pai e tua mãe; benditos os que te amaram e os que te maltrataram; bendito o artista que te adorou e te possuiu; e o pintor que te pintou nua, e o bêbado da rua que te assustou, e o mendigo que te disse uma palavra obscena; bendita a amiga que te salvou e bendita a amiga que te traiu; e o amigo do teu pai que te fitava com concupiscência quando ainda eras menina; e a corrente de mar que ia te arrastando; e o cão que uivava a noite inteira e não te deixava dormir; e o pássaro que amanheceu cantando em tua janela, e a insensata atriz inglesa que de repente te beijou na boca; e o desconhecido que passou em um trem e te acenou um adeus; e teu medo e teu remorso a primeira vez em que traíste alguém; e a volúpia com que o fizeste; e a firme determinação, e o cinismo tranquilo, e o tédio; e a mulher anônima que te vociferou insultos pelo telefone; e a conquista de ti por ti mesma, para ti mesma; e os intrigantes do bairro que tentam te envolver em suas teias escuras; e a porta que se abriu de repente sobre o mar; e a velhinha de preto que ao te ver passar disse: "moça linda..."; bendita a chuva que tombou de súbito em teu caminho, e bendito o raio que fez saltar teu cavalo, e o mormaço que te fez inquieta e aborrecida, e a lua que te surpreendeu nos braços de um homem escuro entre as grandes árvores azuis. Bendito todo o teu passado, porque ele te fez como tu és..."

Deixo aqui este fragmento de Rubem Braga, de"A mulher e seu passado", em tardia homenagem pelo Dia Internacional da Mulher, especialmente para minhas amigas que nem sabem que tenho blog, porque os afetos podem ser assim, anônimos;
Ofereço, ainda, esta homenagem às mulheres que já passaram por muitos casamentos, por vários homens ruins, por vários homens bons a quem elas não quiseram, às que nunca assumiram seus sentimentos, às que amam seus cunhados, às que têm pensamentos impuros ou impróprios, às que não quiseram ser mães, às mães cujos filhos são manipulados pelos pais para atingí-la, às mulheres comuns, às fora dos padrões de beleza, às que arriscam, às loucas, louquéticas, neuróricas, histéricas, às superprotetoras, às medrosas, às solitárias, às celibatárias, às puritanas, e ao meu passado, ao passado de todas nós, a cada dia vivido, a cada experiência que, por fim, nos tornaram o que somos.

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