Há um tempo, não mais que dois meses, eu discutia
com a minha turma de Literatura Contemporânea quem realmente teria autoridade
para representar e ficcionalizar o drama dos marginalizados. Não obstante,
partimos da máxima de Maria Carolina de Jesus, segundo a qual “Só quem passou
fome pode falar de fome”.
Bom, de antemão eu já disse aqui que discordo da
ala radical que dá exclusividade temática aos sujeitos que têm respaldo
empírico para falar das coisas associadas. Outrossim, brinco e digo que só quem
pode falar de negro é negro; só quem pode falar de mulher é mulher; só quem
pode falar de gay, é gay... E só quem pode falar de morte é defunto!
Falácias deste tipo se sustentam porque durante
muito tempo as chamadas minorias não falavam por si. Não que não tivessem voz –
ou, como quis o brilhante e humilde intelectual Hugo Achugar, um “balbucio” (isso
o intelectual uruguaio reproduz para desconstruir as ideias dominantes nos
Estados Unidos e Europa de que os colonizados das Américas Ibérica e Latina não
tem voz intelectual, não falam, não formulam pensamentos, não têm coesão no
pensamento e só balbuciam – mas é que se a minoria tem voz, a maioria faz
barulho. Daí que a minoria jamais seria escutada.
Minorias têm voz, mas o espaço da voz é político e
ideológico. Como conquista, e não como concessão, dá medo de perder o que foi
ganho. Acontece, porém, que a ala radical, devido aos antecedentes históricos
que norteiam estas questões, crê que para o negro ter voz, é preciso que o
branco se cale; para a mulher ter voz, é preciso que o homem se cale; para o
gay ter voz, é preciso que os heterossexuais se calem. E, por conseguinte, quem
pode falar de cada categoria é apenas ela, por ter conhecimento de causa.
Não creio nisso: um problema de mulher, é um
problema de homem, pois se vivemos em sociedade, tudo passa a ser relacional.
Aplico este mesmo princípio para as demais categorias. Se torcemos para que cresça
a conscientização política de cada membro atingido pelo preconceito e suas
consequências (cerceamentos profissionais, econômicos, educacionais, sociais,
além dos efeitos psíquicos), deveríamos, igualmente, acreditar que parcelas
consideráveis daqueles que exercem o preconceito e a opressão podem evoluir em
sua conscientização, de modo a perceber os próprios erros em relação ao
comportamento dominante. Seria, pois, uma postura soberba imaginar que uma
parte evolui politicamente, enquanto outra se mantém retrógrada. Chamamos aos
retrógrados de conservadores. Isso não é à toa: o conservador quer conservar o
seu lugar; quer conservar o preconceito e quer determinar um lugar para os
demais a quem ele julga (e subjuga).
Não é preciso ser gay para defender os gays, nem
ser pobre para defender o pobre. É preciso defender o que é justo mesmo que não
seja a gente a sofrer a injustiça – qualquer um de nós tem noção do que é certo
e do que é errado, do que é justo e do que é injusto.
Também minhas turmas ficavam estupefatas ao
perceberem o preconceito horizontal: preconceito horizontal é aquele que
acontece ombro a ombro, como por exemplo: você pode ser filiada a um movimento
feminista, mas ter posturas machistas e, ainda, ser branca e discriminar uma
mulher negra; e você pode ser negra e discriminar à outra negra cujos cabelos
são quimicamente alisados. Deste modo, num mesmo enquadramento de minorias
estão submersas várias identidade cuja pluralidade pode ser captada como
elemento passível de discriminação interna – estendendo a discussão, o pobre letrado
pode discriminar ao iletrado; o negro do sudeste pode discriminar o negro nordestino
e assim sucessivamente. As pessoas, e, neste caso, minhas turmas, realmente
achavam esquisita esta reprodução. Uma pena que ela exista e dela nós podemos
depreender que a capacidade que o ser humano tem de discriminar é infinita e,
em linhas gerais, nenhum de nós está isento de sofrer ou praticar
horizontalmente estas discriminações.
Passa a ser, portanto, ainda mais esquisito, que,
diante de tantas pessoas que pelo menos verbalmente, querem um mundo melhor e
não têm preconceito, ele ainda exista com tanta força, para várias situações e
tipos sociais. Pior é concluir que nada disso se cura com teorias, mas com
atitudes introjetadas... E isso demora tanto que dizem que até o Einstein disse
que “É mais fácil destruir um átomo que um preconceito”.
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