Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Tende piedade de nós!


Senhor, tende piedade de nós!
Oh, doce, sempre Virgem, Maria, tende de piedade de nós.
Cordeiro de Deus,que tirai o pecado do mundo, tende piedade de nós.
Muito bonito rogar a piedade dos santos. Precisamos.
Mas já faz um tempo que a gente procura não ter piedade de ninguém, não ter pena de ninguém, como se ter piedade, pena, compaixão, fosse humilhar o outro.
E é.
E pode ser.
Se a gente fabrica esta piedade em detrimento do outro e ainda lhe diz: "és digno de pena!".
Saída de mestre do nosso mundo frio isso de ter vergonha de ter pena do outro, de ter pena de si mesmo. Se é seu caso, nem venha na minha casa. Sou gente de verdade e sinto. E das coisas que eu sinto, eu sinto pena.
Esvazie agora mesmo o meu discurso e exponha com profundida seu ponto de vista certo e inquestionável: quem tem pena é galinha. Ôpa, profundidade do pires, como diria um finado amigo meu!
Quem te ensinou isso, menina, de que não é digno ter piedade do outro? quem te disse que é feio se compadecer da dor alheia? isso tudo é ânsia para se tornar incapaz de se colocar no lugar do outro? quem não consegue se pôr no lugar do outro, não pode ter lugar nenhum - não se desloca, não sai de si, não se irmana com o outro, não toma suas dores, não se permite...Mas logo você que reza tão bem! Logo você, em suas ladainhas nesta sua existenciazinha medíocre-repetitiva-segura-falsificada? assim a gente não conversa.
"Todas as línguas derivadas do latim formam a palavra "compaixão" com o prefixo com - e a raiz passio, que originariamente significa "sofrimento". Em outras línguas, por exemplo em tcheco, em polonês, em alemão, em sueco, essa palavra se traduz por um substantivo formado com um prefixo equivalente seguido da palavra "sentimento" (em tcheco: soucit; em polonês: wspol-czucie; em alemão: Mitgefuhl; em sueco: med-kansla).
Nas línguas derivadas o latim, a palavra compaixão significa que não se pode olhar o sofrimento do próximo com o coração frio (...) Uma outra palavra tem mais ou menos o mesmo significado: piedade ( em inglês pity, em italiano pietà, etc.)"
O trecho acima foi transcrito do livro da minha vida, claro, A insustentável leveza do ser, de Millan Kundera. O exemplo literário, claro, é só para confirmar meu amor por esta obra e mostrar sua pluralidade, mas a piedade está acima dos conceitos formados. Não precisa ler para saber o que é.
Não quero ter olhos indiferentes diante da dor de ninguém nem esconder de mim minha auto-piedade, quando ela ocorrer.
Couraças de proteção anti-sentimental todo mundo usa. Se não usasse, também, não sobreviveria a uma ida na esquina nem a um instante parado no semáforo, mas deixemos de exagero que a gente sabe muito bem em que lugar se encontra o assunto agora!
Não lembro que teórico ao certo, mas desconfio que foi o Edouard Glissant quem escreveu que é preciso defender o oprimido, que não se deve ter vergonha de defender o mais fraco, de se apiedar e de se compadecer da dor do outro. Eu apenas concordo, porque não tenho os argumentos elaborados para endossar com maior firmeza este pensamento de que também comungo.
Outras coisas de que sou menos capaz, aprendo com Ilmara Valois, a exercitar e a compensar, nas coisas que ela não me diz, mas que me ensina com maestria e afinco, como cabe a um bom mestre a uma pessoa sábia:que é preciso prescindir da espera pelas desculpas por parte do outro, porque estas desculpas não virão sob a forma de palavras, mas de gestos e que, por isso, eu não cobre mais: aquilo ali é o máximo a que a pessoa pode chegar.
Está bem, amiga: aprendi. Não sei se perdoei, mas aí é falta de prática de minha parte, mas superei...
Eu também fui cobrada e entendi que não poderia dar o que não tenho. No segundo caso, entendi que a outra pessoa só tinha mesmo aquilo para dar - aquele era seu pedido de desculpas, era seu sinal de que havia visto seus enganos, sua injustiça para comigo. Tudo bem. Valeu o gesto: era tudo o que ela tinha para me dar. Aceitei sem orgulhos, como aceito o que você me ensina.

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