Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 4 de maio de 2010

"Desta água não beberei"


Acho que não há decisão que nos isente de pagar um preço por ela.
Dicidir não é fácil: se pedimos uma opinião, muitas vezes queremos mais um cúmplice do que necessariamente uma ajuda.
Outras decisões são compulsórias: têm que ser aquilo. São decisões moralmente determinadas, são aquelas de que depende nossa integridade moral, nosso bem-estar psíquico, nossa dignidade.
Desta água não beberei: disse comigo mesma. E de fato, aquela água não me serve.Por que ter vergonha disso, de declinar do que nos desagrada, mesmo em face de certas necessidades? por que confundir com orgulho a salvaguarda do nosso desejo (não-desejo)? por que?
Lembrei de quando eu tinha 11 anos e morava com minha madrasta: um mendigo pediu comida, na hora do almoço e nós fomos solícitos, mas minha madrasta nunca foi uma pessoa redutível e complacente. Então me lembro que uma das filhas dela perguntou - ou o mendigo se apressou em dizer - que não gostava de macarrão.
Eu só esperei a Terra cair.
Mas a filha de minha madrasta - e não sei se ela também - diante de minha cara perplexa, disse que era isso mesmo, que tinha gente que não gostava de macarrão.
Eu julguei o provável julgamento daquela família, julguei a interpretação dada às necessidades do faminto. Se estamos com fome, qualquer coisa serve?
Não, não serve.
A admirável integridade do mendigo mostrou que ele tinha escolha, que ele tinha gosto, que não era qualquer comida que servia.
Eu já devia ter me desfeito daquela minha cara duplamente chocada, daquele meu ar de antagonista do conto de Clarice Lispector, Felicidade Clandestina, porque sei que encarnei uma criança má, ao entrar na lógica provável dos adultos dali - entendi, conforme a prática e o raciocínio da casa, que na necessidade qualquer coisa serve.
Foi uma boa decepção, moralmente válida.
Sei, hoje, que para quem está sozinho, não é qualquer companhia que serve;
Que não é qualquer emprego que serve para quem está desempregado;
Que podemos dizer: "desta água não beberei", porque não me serve. Isso, menos por orgulho do que por assumir opções.
Estou em conflito com muitas águas que não me servem e com as minhas próprias necessidades.
Há preços que não devemos pagar - custam caro demais, custam seu sono, seu bem-estar, sua consciência, sua saúde, seu prazer, seu ócio, seu orgulho, sua paz, seus dias...
Ah, e como tenho sede!

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