Louquética

Incontinência verbal

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O conto da Ilha Desconhecida



“Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá -me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era a das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldabra de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar, Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha a pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrário, até chegar ao rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não, conforme estivesse a maré”. (SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 5-9)

Antes de seguir, ressalto aos que não estão familiarizados com a escrita de José Saramago que os trechos aqui transcritos seguem as opções gramaticais do autor. Por isso, há supressões de pontuação e a fusão de diálogos, além de formas muito próprias de condução da linguagem literária.
Num desses intervalos das obrigações – ou não necessariamente, já que escolhi ler na viagem de ida ao trabalho – resolvi ler O conto da ilha desconhecida, de José Saramago. Excelente conto (exceto pelo final, logicamente, porque às vezes acontece de faltar linearidade ao tempero posto na criação imaginativa que dá a tônica ao andamento do que é narrado. Eis o caso!).
Para mim, salta aos olhos a ironia quanto à burocracia da vida política, aliás, da vida do país – queixume corrente quanto ao Estado português, que entendo como sendo extensiva e própria ao estado brasileiro; e que muito me lembra minha vida enquanto militar, com a infinidade de hierarquias inúteis que poderia se resumir entre quem manda e quem obedece, ou quem delibera e quem executa, evitando cargos igualmente inúteis.
Também as intercambiações de sentido no tocante à relação de poder entre quem comanda e quem obedece, entre quem depende de quem são trazidas à tona: “Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhe pertencerá tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar.” (p. 18)
Iríamos muito longe na composição metafórica da arquitetura do palácio e suas portas específicas, mas a porta das decisões é que aparece (ao lado das portas das petições) em papel preponderante. O resto da narrativa é um exercício filosófico, conforme podemos observar: “Não queres vir comigo conhecer o barco por dentro, Tu disseste que era teu, Desculpa, foi só porque gostei dele, Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar. (p. 32)
Indo ao máximo a seguir: “(...) mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és (p.40).
Não há nada demais no trecho. É conhecido, é claro, é clichê... mas é encantador pela forma como o óbvio é dito, como é reconhecido pelo narrador , que brinca com a figura do provável filósofo do rei, a quem caberia pensar tais coisas.
E indo do político ao filosófico, deságua no encontro amoroso entre o homem que queria um barco e a mulher da limpeza, em seus diálogos, no sonho que o homem tem e que mostra sua união com aquela mulher. Pequenos encantos, na verdade, que a gente trilha e cruza com o extraliterário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário