Louquética

Incontinência verbal

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Zero Grau

Ontem o mundo não acabou. Não será dia 21 que ele vai acabar. Aliás, já cansei dessas conversas de fim do mundo e não sei como alguém pode perder seu tempo acreditando nisso. Mas, quem somos nós se não acreditarmos em nada?
Isso é também um contrassenso se a gente limitar esta pauta aos aspectos da credulidade espiritual, pois há os que não acreditam em Deus mas acreditam na Humanidade.
Niemeyer morreu recentemente e, sendo ateu, com certeza está mais próximo dos preceitos divinos do que muita gente que se pensa crente. É absurda a perseguição aos ateus, a discriminação e a intolerância – li até um relato pessoal lá no blog do Júlio Ávila, o que me faz presumir que a intolerância é em escala mundial e não exclusividade da América católica que, aliás, é América Evangélica Protestante há muito.
Sei que o nosso mais famoso arquiteto era generoso, dividia seus bens, seus tostões não apenas com os partidários políticos como com qualquer um que precisasse de ajuda. Comunismo praticante é coisa rara, pois em geral prega-se uma coisa e vive-se outra. Bem conhecemos aquela máxima que diz que “A política é como um violino: Toma-se com a esquerda, toca-se com a Direita”, para os bons entendedores.
Mas estou aqui porque ontem, cerca de duas da manhã, um corno torcedor do São Paulo (e olha que este é o time pelo qual torço também), empolgado com a vitória do time, inventou de colocar o som do carro a dois mil decibéis na minha porta. Acordei e como não conseguia dormir, resolvi ler. Agora, compartilho a última crônica que li antes de dormir e de que gosto muito:
Zero grau de Libra (Caio Fernando Abreu)
O Sol entrou em Libra. E porque tudo é ritual, porque fé, quando não se tem, se inventa, porque Libra é a regência máxima de Vênus, o afeto, porque Libra é o outro (quando se olha e se vê o outro, e de alguma forma tenta-se entrar em alguma espécie de harmonia com ele), e principalmente porque Deus, se é que existe, anda distraído demais, resolvi chamar a atenção dele para algumas coisas. Não que isso possa acordá-lo de seu imenso sono divino, enfastiado de humanos, mas para exercitar o ritual e a fé – e para pedir, mesmo em vão, porque pedir não só é bom, mas às vezes é o que se pode fazer quando tudo vai mal.
Neste zero grau de Libra, queria pedir a isso que chamamos Deus um olho bom sobre o planeta Terra, e especialmente sobre a cidade de São Paulo. Um olho quente sobre o mendigo gelado que acabei de ver sob a marquise do cine Majestic; um olho generoso para a noiva radiosa mais acima. Eu queria o olho bom de Deus derramado sobre as loiras oxigenadas, falsíssimas, o olho cúmplice de Deus sobre as jóias douradas, as cores vibrantes. O olho piedoso de Deus para esses casais que, aos fins de semana, comem pizza com fanta e guaranás pelos restaurantes, e mal se olham enquanto falam coisas como “ você acha que eu devia ter dado o telefone de Catarina à Eliete?” – e o outro grunhe uma resposta.
Deus, põe teu olho amoroso sobre todos os que já tiveram um amor sem nojo nem medo, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem – nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa.
Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem pelo rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon over Bourbon Street, na voz de Sting, e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel dão duro como garçonetes nos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de táxi que confessa não ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto – olha por todos aqueles que queriam ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra vida que não a que vivem.
Não esquece do rapaz que viajando de ônibus com seus teclados para fazer show na capital, deita teu perdão sobre os grupos de terapia e suas elaborações da vida, sobre as moças desempregadas em seus pequenos apartamentos na Bela Vista, sobre os homossexuais tontos de amor não dados, sobre as prostitutas seminuas, sobre os travestis da República do Líbano, sobre os porteiros dos prédios comendo sua comida fria nas ruas dos Jardins. Sobre o descaramento, a sede e a humildade, sobre todos os que de alguma forma não derma certo (porque, nesse esquema, é sujo dar-certo), sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma – sobre esses que sobrevivem a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões.
Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio – Não.
Derrama sobre elas o teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça. Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo o dia sem desistir, envia o teu Sol mais luminoso, esse do zero grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário