Louquética

Incontinência verbal

domingo, 17 de março de 2013

As meninas


Tem coisas que só há na Bahia. Não falo aqui de tudo de bom que há nas paisagens, no potencial turístico, na recepção inteligente às diferenças culturais que, na verdade, é parte estratégica da sobrevivência do seu povo – amarrado à injusta fama de se derramar em preguiça e que, inteligentemente se aproveitou disso para oferecer descanso (e festas) aos turistas que subestimam a capacidade criativa e intelectual desse povo. Falo da estranheza que o povo baiano tem acerca do ser feminino, do hábito tacanho de antecipar a sexualidade das meninas, de tratar meninas como mulheres e de responsabilizar essas meninas pelo mau destino da exploração sexual precoce, seja nas tais ‘casas de família’ onde vão trabalhar as meninas da roça, na função doméstica; seja na exploração urbana-padrão, de natureza similar.
Não vou falar de ficção. Vou dar nome aos bois: Sheyla, aos onze anos, já estava marcada pelos maus tratos dentro de casa, das surras, da mãe, do pai e por esta época, do padrasto.
Um dia ela conheceu um homem de mais de quarenta anos. Ele a acolheu, cuidou das feridas do corpo e das chagas psíquicas. Ela viveu com ele até uns cinco ou quatro anos atrás, quando ele morreu. Morreu de velho, bem velho. Viver com ele é ser mulher dele, ter filhos com ele e ser esposa.
Ninguém aqui acha isso estranho. Nem ela, nem o namorado dela, que é meu amigo. Ninguém por aqui vê que o finado explorou sexualmente uma criança de onze anos. Antes, consideram que ele a acolheu, a retirou dos maus tratos dos pais cruéis, fez o favor, foi bom. Aqui é assim e isso muito me espanta.
Ela já tem pouco mais de quarenta anos e olha para trás com gratidão pelo finado, como tendo sido favorecida por ele.
Ela se espanta quando eu digo que ele foi monstruoso, pois frente às coisas ruins que ela passava e de que ele fora testemunha, não perdoou a criança: procurou no sexo com ela a compensação pelo “bem” que ele estava lhe fazendo. Isso jamais seria, para mim, um gesto de piedade, de solidariedade... E hoje eu tenho muito mais piedade dela, que não sabe que foi vítima de quem lhe apareceu como salvador. Porém entendo que a percepção do contrário deve ser dolorosa e, por isso, convém evitar.
Os homens, quando em aparente compaixão pelas mazelas das mulheres que são meninas, não têm piedade: pedem seu pagamento em sexo; convertem meninas em amantes; não dispensam aquelas que são esquizofrênicas, nem as que são pobres, nem as drogadas, nem as violentadas, nem as carentes... E posso afirmar isso por constatar as duas gravidezes da ‘doidinha’ que mora perto do salão que eu frequento.
Minhas constatações devem parecer estranhas porque aqui no Brasil – e não somente e na Bahia – as mulheres são responsabilizadas pela violência que sofrem; são responsabilizadas quando são estupradas, pois dizem que elas provocam os homens, que andam de roupa curta e se insinuam. E por aqui, toda menina é vista como mulher, queiram ou não queiram os estatutos e os códigos legais.
Tive pena de Sheyla e ainda tenho. Esta é uma daquelas páginas que eu desejaria ser pura ficção, com nomes trocados, com situações e lugares apenas imaginados, mas não é: “A Bahia tem um jeito!”.

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