Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 24 de abril de 2013

José Saramago e os Canibais


Na noite de segunda-feira eu assisti parte do documentário sobre José Saramago, que passava na série "É tudo verdade", do Canal Brasil (quem puder, acompanhe porque os programas são ótimos!). Nele, chama menos atenção a genialidade do escritor que a empáfia, tirania e antipatia da esposa dele, Pilar.
Há um trecho em que ela está defendendo a Hillary Clinton e afirma que a senhora estadunidense a representa. José Saramago a retruca, dizendo que aquela senhora sequer sabe que ela existe e que muito o espanta que Pilar diga se representar por uma mulher daquela.
Frente a isso, Pilar argumenta a magnitude e superioridade moral da Hillary em comparação ao marido, que se deixou flagrar em caso extraconjugal com a estagiária Mônica Lewinsky.
Para Saramago, Hillary fora movida pela ambição, não por superioridade moral. Hillary queria ter sua fatia de poder, tinha planos e ambições. Pilar concordou, que é precioso ter ambição; as mulheres precisam ter ambição. Na mesa de conversas, mais alguém diz à tirana Pilar: "Mas tu és feminista demais, além da conta!". Ela diz que é assim para compensar as mulheres que não são.
Depois, quando se torna presidente da Fundação, diz ao entrevistador: "Só os ignorantes me chamam presidente. Os inteligentes me chamam Presidenta".
Isso é um resumo pífio do que se vê no documentário, além, logicamente, da grande declaração de amor que o escritor faz a esta mulher antipática e tirana como poucas que se possa ter notícias no planeta terra.
Que não defendamos as simpatias burras dos sorrisos plásticos para cativar a mídia, mas esta senhora é, sem dúvidas, um ser humano desprovido de um mínimo de atributo de sociabilidade.
Para uma pessoa que se intitula feminista, a ignorância política é, também assustadora: confundir as necessidades de ambição política das mulheres com as ambições de poder de uma senhora norte-americana é, pois, uma exemplificação incontestável de estupidez.
Há, porém, momentos de uma lucidez esclarecedora: comentam o quanto as obras de José Saramago  são discutidas no Brasil. Pilar, diz, então, que 'Portugal acha as universidades brasileiras uma merda!'. Acham mesmo e desqualificam nossa capacidade intelectual.
Não obstante, somos nós a fazer piadas com eles.
Mas o colonizador sempre subestima o colonizado. Vejam os esforços dos teóricos latino-americanos no sentido de refletir sobre a própria intelectualidade de nossos países.
Hugo Achúgar, em Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura (UFMG, 2006) trata disso muito bem, colocando lá em questão o Balbucio Teórico latino-Americano - retomada irônica das afirmações europeias de que não falamos, mas balbuciamos.
Entre Própero e Caliban (anagrama de canibal, né, cara pálida?), ainda supõem um estado tal de selvageria na América Latina e correspondente incapacidade de traçar pensamentos coerentes que daqui se presume a incapacidade de pensar.
Nem falo dos demais teóricos que não somente contestam o estereótipo da baixa intelectualidade latino-americana, como mostram que se há desenvolvimento desta ordem no mundo europeu, ele se fez alimentado pela política extrativa, que pode tirar as riquezas dos países colonizados e usá-las a favor do crescimento material e intelectual das Metrópoles colonizadoras. Por aqui e por outros países e continentes colonizados, as pessoas estavam ocupadas tentando sobreviver, buscando independência, buscando centralizar Estados e Governos... E nisso não se neguem as alianças dos Governos ou representantes dos oprimidos com os opressores e os aspectos facilitadores da dominação e da conquista.
Em 2010 falei disso na UFF, na JALLA, porque questões Latino-Americanas nem sempre são questões Ibero-Latino-Americanas - porque o distanciamento linguístico é extensão do distanciamento cultural do Brasil frente aos seus vizinhos; de que ele também se valeu para explorar, pois também o Brasil vestiu o capuz de algoz... Mas este é outro papo, deixa para lá, que fique apenas a pertinência da observação de Pilar quanto ao que esperam das universidade brasileiras.
Logicamente, ninguém por aqui é incentivado a pensar. A atividade intelectual é desestimulada mesmo e a vida anda dura demais para que as pessoas se desviem da função de ganhar o pão-de-cada-dia ou vão abdicar de suas micaretas e cervejas para pensar sistemas de Governo, contextos históricos e coisas paradoxais. Mas sempre tem quem faça isso. Pode não ser uma coisa estatisticamente significativa, mas tem, sim, quem se encarregue de desvelar os elos das cadeias de exploração, de reprodução, de estereotipificação e etc.
Pensamos e sabemos fazer pesquisa. E mesmo se assim não fosse, lemos e nos apropriamos antropofagicamente de muito do que vem de fora, como bons canibais que somos!
Falando nisso, quando dei ao meu livro o título de Todas as mulheres se chamam Maria, teve ali o palimpsesto, a canibalização de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, creio que por influência desta passagem: " De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quanto aqui vieram juntar-se usam esse nome..." (p. 08).
E no momento, coincidiu de eu estar escrevendo um artigo sobre este escritor português - engaveto minhas ficções e já prometi que o livro só sai a público quando os restinhos do muro/parede que tenho a derrubar caírem; da produção intelectual, não tenho a menor vergonha, nem receio e tanto assim que doei minha dissertação ao Domínio Público, meus artigos estão todos disponíveis pela internet, nos sites da UNICAMP, da UNEB, da UFF, com a ressalva de que lá está meu nome completo; e porque Mara Vieira é parte do nome. Não tenho medo de ser canibal. Quem não é, não sobrevive!

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