Na minha segunda
aula, aliás, no meu segundo dia de aula na universidade, minhas alunas me
cercaram no corredor do módulo para me advertir sobre a colega: “Professora,
não sei se a senhora já percebeu, mas X é bipolar. Ela está no auge da crise
hoje, por isso ignore se ela sair do controle, se fugir à normalidade”.
Surpresa: eu não
sabia não. “De perto ninguém é normal”. Eu já disse aqui que minha amiga mais
que Irmã é esquizofrênica, mas a crise só veio aos 30 anos; que na minha turma
de graduação, na UEFS, eu tive duas colegas esquizofrênicas e que já desconfiei
de amigos e alunos meus, mas daí a olhar para a cara e acertar no diagnóstico,
nem Freud!
A gente faz loucuras
e diz besteiras e se acha no direito de chamar louca, louquética, o que for.
Mas no caso de minhas colegas de classe, era assim: uma delas, C., era apenas
descontrolada e ansiosa, com alguns episódios de hipocondria. No trato das
relações humanas, gostava de fazer vergonha moral às pessoas, do tipo que
procura esfregar na cara dos outros os favores feitos, as coisas ou quantias
emprestadas, desfazer do conhecimento alheio, enfim, um perfil que pode
facilmente se confundir com o de qualquer pessoa normal, arrogante e sem noção.
Depois de muito tempo, quando forcei que ela fosse ver minha analista, soube do
diagnóstico: esquizofrenia.
A outra colega, M.,
era arredia: não suportava que tocassem na carteira que ela ocupava na sala,
era comedida nos modos, mas alterava a voz por qualquer coisa. Passados dois
anos desde nossa formatura, ela alegava a perseguição do Presidente da
República, atrás dela, pelo campus, no ponto de ônibus e etc.
Minha amiga mais que
Irmã desencadeou sua crise por causa de um amor contrariado: ela já delirava,
fazendo de um maconheiro, vagabundo (jamais trabalhou, nesses seus 42 anos de
vida), que levou 11 anos para se formar, um artista plástico. Ele cursava História, comigo. Ele levou 11 anos para se formar, só para não deixar de ser estudante e ter que provavelmente trabalhar. Para ela, ele é um
artista plástico: este é o primeiro delírio. Daí a dizer que implantaram um
chip nela, que o Governador a persegue, que os artistas da TV a procuram e a
ouvir mais vozes do que se ouve em micaretas, foi um pulo.
Nesta noite passada,
porém, meu primo e todo mundo da casa dele não conseguiu dormir. Ele me contou
que a mãe dele, que já tem episódios senis, achou que ele fosse mata-la por
estrangulamento. Tudo isso porque ele foi acompanhar a mãe da sala até o quarto,
sentou-se ao lado dela na cama e começou a conversar coisas amenas, para ativar
a memória dela. O gesto de arrumar o travesseiro e pegar nos cabelos da mãe,
fez com que ela acendesse o delírio. Neste caso, é coisa mesmo da senilidade,
quadro específico que eu não sei dizer o nome, mas que redunda na paranoia.
Ela quis fugir da
casa dele, gritou por socorro, falou barbaridades e, assim como eu, o filho do
meu primo se pipocou em risos. Contando, a gente ri, porque não faz o menor
sentido, é engraçado. Porém, ela não dormiu e fez barulho para que ninguém
dormisse, com medo de ser morta pelo filho único – e até disse que os bens dela
já eram todos deles, para quê mata-la? Sei é que o que nos fez rir, deixou meu
primo exausto e entristecido. Ao perder o juízo, a pessoa que a gente ama já
não está mais ali. É só um corpo, sem as memórias, sem o reconhecimento, sem a
sanidade...
Minha aluna, porém,
me chamou também ao canto, me explicou da bipolaridade, me preveniu do ocorrido,
checou o que eu sabia e mostrou que ser bipolar não é viver apenas oscilações
de humor e os altos e baixo que decorrem disso: a realidade é distorcida, a
vida corre ao contrário, há pesadelos enquanto se está acordado, mil coisas...
Sei lá, acho que
nossa época é propensa ao desequilíbrio.
Pode parecer cinismo
e ironia, mas acho meio abiloladas, piradas e malucas essas pessoas que
distorcem a realidade social, sabe? Porque a humanidade não erra em favor do
próximo.
Então fica esse povo
noticiando as atrocidades cometidas por bandidos em geral, e por bandidos
menores de idade em especial. Mas aí atenuam a situação, querendo pôr sobre a
vítima a responsabilidade da violência sofrida: o coitado do bandido não teve
oportunidade na vida, é pobre, tem desejos de consumo não saciados, é esquecido
pelo Governo, é excluído. Por isso mata, violenta, assalta, queima as pessoas
vivas, estupra e etc. E aí eu olho para mim e para meus amigos que não tiveram
oportunidades na vida, que somos pobres, que temos desejos de consumo não
saciados, somos esquecidos pelo Governo e excluídos, e a gente se vira, estuda
em escola pública, trabalha, lê, se vira ainda mais, se sacrifica e não mata
ninguém.
Até Tati pensa
assim: todo marginal tem razão de ser marginal porque a sociedade cria neles
desejos de consumo aquém de suas capacidades aquisitivas.
E os defensores dos
menores de idade jamais percebem que eles sabem o certo e o errado e que se têm
astúcia para matar, roubar, estuprar, mutilar e torturar devem responder criminalmente pelo que
fizeram. No modo de pensar desses aí, a vítima que se lasque, pois vítima maior
é o coitadinho infrator, que é vítima do sistema. Responsabilidade, zero.
Tantas vezes o menor
infrator monstruoso atinge um menor de idade e o povo fica romantizando,
invertendo a lógica para favorecer o assassino!
Estes aí, sim, para
mim, perderam o juízo: já não atinam entre a realidade e a fantasia, talvez
porque nunca sentiram na pele a mão pesada do assassino, acham que tudo é
exagero e responsabilizam o Estado pelo que é ato e responsabilidade pessoal.
Todos nós temos escolhas: podemos fazer o bem ou o mal. Quem não tem sanidade
mental e se desequilibra, não responde por si. Que pena que as pessoas perderam
a noção dessas fronteiras.
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