Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Macacadas



Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que no aeroporto anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fios rebuçados na concha da língua. Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós íamos lá com o meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos em tempos latidos aflitos de caniche. Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitos pássaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes idênticas a professoras de ginástica solteiras, pingüins trôpegos de joanetes de contínuo, catatuas de cabeça à banda como apreciadores de quadros; no tanque dos hipopótamos inchava a lenta tranqüilidade dos gordos, as cobras enrolavam-se em espirais moles de cagalhão, e os crocodilos acomodavam-se sem custo ao seu destino terciário de lagartixas patibulares.
(ANTUNES,António Lobo. Os cus de Judas. 2 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007 p. 07).
Este passeio pelo jardim, esse deambular feito pela memória e pela reminiscência, apesar de tanta sustentação jocosa, com caracteres de realismo grotesco, na verdade sustenta uma espécie diferente de riso, que focalizo na minha pesquisa de doutorado. Não nesta obra, claro, mas em As naus.
Fiz a transcrição, mas ainda neste momento da obra o narrador de Os cus de Judas traz uma descrição interessantíssima, na página 09: “Observaríamos oftalmologicamente a conjuntivite anal dos mandris, cujas pálpebras se inflamam de hemorróidas combustíveis.”
Juro que rio muito disso a cada vez que leio.
O narrador poderia ser grosseiro, poderia dizer de tantas outras formas mais leves ou mais jocosas aquilo que diz, mas encarna esta coisa risível, que é um riso diferente – explico e classifico este tipo de riso que não posso tratar total e claramente aqui. Para quem não sabe o que são mandris, são macacos. Acho que por aqui chamamos de babuínos estes macacos.
E trouxe essa obra por aqui por lembrar que um namoro meu que, por sinal, acabou em macacada, começou no zoológico.
Começo de namoro é uma delícia. Eis porque eu sou contra o casamento: acaba com essa festividade, com a beleza, com a surpresa, com os pretextos de ausência que existem só para aguçar as saudades.
Hoje sei porque ele se sentiu em casa ao passear por ali, entre as jaulas dos parentes... mas à parte as minhas brincadeiras, foi um bom namoro, apesar das macacadas.
Também no zoológico, anos depois deste namoro citado, encontrei um ex-namorado meu. Poxa, ele estava detonado pelo tempo: sem cabelos, gorducho, desfigurado pelos anos e casado com uma criatura que em tudo desmentia as antigas exigências estéticas dele. Olhei muito para ele. Olhei bem para ele. Olhei demais para ele, a fim de me certificar se ele não era um dos bichos a fugir do confinamento.
Falando nisso, fim de namoro é terrível: tudo de ruim vem à tona. Os defeitos nos pulam à cara, o gato de hoje vira o cachorro de amanhã, as coisas boas são todas substituídas pelas lembranças das vezes em que nos sentimos idiotas ou que nos questionamos sobre a razão de estar ali, naquela companhia ou por ter esperado demais para terminar o namoro. Apenas os namoros de qualidade deixam bons saldos quando acabam. Mas estes são raros e estão em extinção há muito tempo.
P.S.: A supressão da pontuação e toda a configuração gramatical do fragmento transcrito respeitam a forma como contam na obra de António Lobo Antunes, Os cus de Judas.)

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