Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Dose de Amor

Foi o comentário geral do momento a morte daquele noivo, seis horas após a cerimônia do casamento, ainda na festa. Falo do rapaz que colocou a taça de cristal no bolso, como quem coloca uma caneta atrás da orelha, e num tropeço qualquer, eis a artéria femural perfurada e a consequente morte, após se esvair em sangue.
Deixou os meus amigos consternados. Fiquei consternada também e lembro de Cléo me perguntando, pelo telefone, como aquilo se explicava, se eu achava que a pessoa só morre no dia em que tem que morrer. Sim, acho isso: a única coisa determinada pelo sobrenatural é o dia da morte. Você pode fazer misérias, desafiar o perigo e etc., mas se não for seu dia, “nenhum mal te sucederá nem praga alguma chegará à tua tenda”. Quanto a isso, é uma convicção para mim. Porém, eu falei que uma inveja monstruosa poderia, sim, talvez determinar ou influenciar tragédias, porque a força do mal é insuperável: a dor de um invejoso, um ódio mobilizado, quem sabe, varre a sorte das pessoas?
Mas, objetivamente, foi um acidente. E ninguém mereceria aquilo: festejar a união com alguém, estar entre amigos e familiares, ter planos, começar uma família nuclear e, no auge da felicidade, passar por isso. A noiva está em estado de choque. E quem não ficaria? Impossível não se comover. Nenhuma história de amor merece um final infeliz, muito menos, trágico. Mas, sendo a mais velha das rimas, Amor e Dor são parceiros inseparáveis. Tão difícil encontrar a sorte de um amor tranquilo, de gente bem resolvida que sabe o que quer...
E a noiva? Se Lacan estiver certo, “o melhor destino de uma mulher, é ser a mulher de um homem”. Se Gal Costa estiver certa, “Mulher nascida para amar, tenho que obedecer ao que o Destino quis,/ e satisfeita dizer que sofrer de amor só me deixa feliz.” O amor da mulher é diferente, é estruturalmente diferente e ainda mais cheio de dor – perfil do neurótico histérico, que é clássico e mal entendido. A noiva era a taça em cacos. É o caco. Não se sabe como se cola o que resta. Como se reconstituir depois de ser escolhida, ser eleita e ver o noivo, sequer marido, morrer? Parece um daqueles mitos gregos em que mortal e deus se encontram: o final é sempre trágico.
Como já citei o mito de Cupido e Psiquê várias vezes aqui no blog, cito agora Apolo e Dafne, igualmente revelador:
“Dafne foi o primeiro amor de Apolo. E esse amor não surgiu por acidente, mas pela malícia de Cupido. Apolo viu o menino brincando com seu arco e suas flechas, e, envaidecido com a sua recente vitória sobre Píton, disse ele: ‘O que fazes tu com armas de guerra, garoto atrevido? Deixa-as para as mãos que sejam dignas delas. Vê a vitória que com elas obtive sobre a grande serpente que estendeu o seu corpo venenoso sobre muitos acres de planícies! Contenta-te com a tua tocha, criança, e inflama as tuas chamas, como dizes, e, contudo, não te intrometas com minhas armas’. O filho de Vênus ouviu estas palavras e respondeu: ‘ Tuas setas podem atingir todas as outras coisas, Apolo, mas a minha há de atingir-te’. Assim dizendo, ele se posicionou sobre uma rocha do monte Parnaso e tirou de sua aljava duas flechas confeccionadas diferentemente: uma para despertar o amor e outra para repeli-lo. A primeira era de ouro e tinha uma ponta fiada; a segunda tinha ponta arredondada de chumbo. Com a seta de chumbo atingiu a ninfa Dafne, a filha do rio-deus Peneu, e com a de ouro atingiu Apolo bem no coração. Logo, o deus foi tomado de amor pela donzela, enquanto esta se sentiu horrorizada com a ideia de amar. Sua satisfação estava nas caminhadas pela floresta e no resultado da caça. Muitos amantes a procuraram, mas ela a todos tratava com desdém, vagueando em meio à natureza, sem pensar em Cupido ou Himeneu.
Seu pai sempre lhe dizia: ‘Filha, tu me deves um genro; tu me deves netos’. Ela, odiando a possibilidade do casamento como se fosse um crime, com sua linda face rosada, lançava seus braços em torno do pescoço do pai, e dizia; ‘Querido pai, permite que eu permaneça solteira para sempre, tal como Diana’. O pai aceitou o pedido da filha, mas fez esta observação: ‘ O teu próprio rosto impede que tua vontade se concretize. ’
Apolo amou-a, e por muito tempo procurou conquista-la; e aquele que era o oráculo de todo o mundo não teve sabedoria suficiente para encontrar a própria felicidade. Vendo os cabelos de Dafne desgrenhados e caindo sobre os ombros, declarou: ‘ Se são tão encantadores quando desordenados, como seriam quando arranjados?’ Ele mirou seus olhos tão brilhantes quanto as estrelas; viu os seus lábios, e não estava satisfeito em apenas os ver. Admirava suas mãos e seus braços, nus até à altura dos ombros, e tudo o que não podia ver em seu corpo ele imaginou que seria ainda mais belo.
Ele a seguiu; ela fugiu, mais rápido que o vento, e não teve paciência para com as súplicas de Apolo. ‘Fica’, disse ele, “Filha de Peneu; não sou um adversário. Não fujas de mim como um cordeiro foge do lobo, ou uma pomba do falcão. É por amor que te persigo. Fazes que me sinta um miserável: movida pelo medo, podes cair e te machucar nestas pedras, e eu terei sido a causa. Presa minha, corre menos que, e eu hei de desacelerar também meu passo. Não sou um rude aldeão, Júpiter é o meu pai e eu sou o senhor de Delfos e de Tenedos, e conheço todas as coisas, do presente e do futuro. Sou o deus da canção e da lira. Minhas flechas voam direto ao alvo; Contudo, ai de mim! Uma seta mais letal que as minhas perfurou meu coração! Sou o deus da medicina, e sofro de uma enfermidade que bálsamo algum pode curar”!
(BUFFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Tradução de Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2006).
Bem, o resto da narrativa mitológica todo mundo sabe: Dafne, vendo-se perseguida, chama pelo pai, o rio-deus, pedindo para que ele abrisse a terra para nela se esconder, enfim, irá se transformar numa árvore – donde as folhas enfeitarão a cabeça de Apolo: são os louros. Mas o que fica é o senso de tragédia.
Pessoalmente, acho que se o Cupido desperta o amor, é sinal de que ele é o que é: uma criança. Daí porque a gente fica infantil quando ama. E se amor vem de flecha, é porque dói e fere. Não obstante, vejam que Cupido manipula o amor e aversão, ou seja, amor e ódio, repulsa, têm mesma origem. Ah, eu queria dizer muitos blablablás, mas tenho que sair.
Com a nossa consternação coletiva, pelo menos vi que tem gente que torce pelo amor: coitados deles, dos noivos recém-casados: mereciam um final feliz.

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