Louquética

Incontinência verbal

domingo, 18 de novembro de 2012

Loucas de Amor

“O golpe que acabo de sofrer, essa derrota sentimental ou profissional, essa dificuldade ou esse luto que afetam minhas relações com meus próximos são em geral o gatilho, facilmente localizável, do meu desespero. Uma traição, uma doença fatal, um acidente ou uma desvantagem que, de forma brusca, me arrancam dessa categoria que me parecia normal, das pessoas normais, ou que se abatem com o mesmo efeito radical sobre um ser querido, ou ainda...quem sabe? A lista das desgraças que nos oprimem todos os dias é infinita...Tudo isto, bruscamente, me dá uma outra vida. Uma vida impossível de ser vivida, carregada de aflições cotidianas, de lágrimas contidas ou derramadas, de desespero sem partilha, às vezes abrasador, às vezes incolor e vazio. Em suma, uma existência desvitalizada que, embora às vezes exaltada pelo esforço que faço para continua-la, a cada instante está prestes a oscilar para a morte. Morte vingança ou morte liberação, doravante ela é o limite interno de meu abatimento, o sentido impossível dessa vida, cujo fardo, a cada instante, me parece insustentável, salvo nos momentos em que me mobilizo para enfrentar o desastre. Vivo uma morte viva, carne cortada, sangrante, tornada cadáver, ritmo diminuído ou suspenso, tempo apagado ou dilatado, incorporado na aflição...Ausente do sentido dos outros, estrangeira, acidental à felicidade ingênua, eu tenho de minha depressão uma lucidez suprema, metafísica. Nas fronteiras da vida e da morte, às vezes tenho o sentimento orgulhosos de ser a testemunha da insensatez do Ser, de revelar o absurdo dos laços e dos seres.
Minha dor é a face escondida de minha filosofia, sua irmã muda. Paralelamente, o “filosofar é aprender a morrer” não poderia ser concebido sem a coletânea melancólica da aflição ou do ódio – que culminará na preocupação de Heidegger e na revelação de nosso ‘ser-para-a-morte’. Sem uma disposição para a melancolia, não há psiquismo, mas atuação em jogo.
Contudo, o poder dos acontecimentos que suscitam minha depressão, geralmente, é desproporcional em relação ao desastre que, de forma brusca, me submerge. Mais ainda, examinando o desencanto, mesmo cruel, que sofro aqui e agora, este parece entrar em ressonância com traumas antigos, a partir dos quais me apercebo que jamais soube realizar o luto. Posso assim encontrar antecedentes do meu desmoronamento atual numa perda, numa morte ou num luto de alguém ou de alguma coisa que amei outrora. O desaparecimento desse ser indispensável continua a me privar da parte mais válida de mim mesmo: eu o vivo como um golpe ou uma privação, para, contudo descobrir que minha aflição é apenas o adiamento do ódio ou do desejo de domínio que nutro por aquele ou aquela que me traíram ou abandonaram. Minha depressão assinala que não sei perder: talvez não tenha sabido encontrar contrapartida válida para a perda? Como resultado, qualquer perda acarreta a perda do meu ser – e do próprio Ser. O deprimido é um ateu radical e soturno.” (KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. Tradução de Carlota Gomes. – Rio de Janeiro: Rocco, 1989, pp.11-12).
Ganhei este livro de um professor meu da UEFS, pelo qual nutro especial admiração, em 2003. E foi um acaso: eu tinha ido à casa dele, no bairro da Graça, pegar outras referências. Por esta época flertava a poesia que se tornaria tema de meu mestrado e aconteceu de cairmos em cima deste livro e meu professor apenas disse: Leve! “Fique para você”. Fiquei. É um volume amarelado com muita, muita Literatura e não menos psicanálise.
Aconteceu de ontem eu estar no shopping e encontrar uma amiga a me informar do estado de outra amiga: teve um novo acesso de loucura, estava saindo do hospital àquela hora, aproximadamente.
Minha amiga mais que irmã também enlouqueceu pela mesma causa. Aliás, não é causa, é agente, porque não enlouquece quem quer, é preciso ter estruturas já desenhadas no perfil psicológico, coisa que está feita até os dois anos de idade. Posteriormente, um agente desencadeador detona o fio que conduz à loucura. No caso de todas essas meninas, que são da mesma família (esta que enlouqueceu de novo é irmã da minha amiga que citei), o elemento que detona a loucura é homem. Basta um homem e um amor não correspondido e a crise histérica se transmuta em depressão e loucura ou em loucura depressiva. Por isso não aceito que mediante qualquer tristezinha própria a quem está vivo, venha um ou outro alegar depressão, só porque está na moda e dá IBOPE.
As situações de perda acometem todos nós. Há lutos, inclusive, pela beleza que passou, pela saúde que se perdeu, pelas coisas de que declinamos menos por vontade do que por apego às leis morais – como nos casos em que se declina de viver um amor porque a pessoa é socialmente inviável para os parâmetros socioculturais vigentes, seja por classe, cor, escolaridade, estética, religião, etc. – e daí que às vezes as pessoas se perdem de si e perdem o juízo, como aconteceu às minhas amigas.
Claro que há a predisposição genética agravada pelo perfil da família hipócrita adventista que vive a dupla moral. E claro que cada uma dessas pessoas tem suas particularidades e até oposições, como no caso de minha amiga-irmã ser preocupada em dizer a verdade e outra ser mentirosa compulsiva. Falando nisso, até a mentirosa compulsiva ficou chocada quando tratávamos de uma terceira amiga (e respectiva companheira) que certa feita disse ter ido visitá-la e almoçar por lá. Era mentira: ela e a namorada estavam indo para outro lugar e, para não falarem abertamente que não queriam que eu fosse, inventaram o almoço inexistente porque, aliás, a que enlouqueceu novamente não é chegada à cozinha nem gosta de gente na casa dela.
Saias justas mais bobas que detonam amizades, não é? Eu adoto o preceito: "Não convidem para a mesma mesa X e Y”, ou seja, colocar gente que não se gosta em proximidade é deveras desagradável. Mas lugares a que quero ir sozinha ou turmas que não incluem dadas pessoas, eu falo abertamente: nós vamos! Quem eu convido, convido. Quem não é desejado, não precisa desculpas escapatórias. Ponto final. Até os pirados tem código de ética.
Bom, mas minhas amigas se esbagaçam por homens que não valem a pena. Entendo isso e não estou isenta deste mal. Acredito, porém, que a gente realmente pensa que não vá conseguir viver sem a pessoa, sem o tal homem e diante da abstinência, perdemos o chão, o equilíbrio. Então o conveniente é o afastamento emocional gradativo. Come-se hoje, amanhã e depois o pão-que-o-Diabo-amassou e vai-se procurando subterfúgios para sair deste círculo.
Quando a gente gosta de alguém, a última coisa que a gente quer é distância. Não dá para se renunciar aos desejos sem pagar um preço de enlouquecer qualquer um. Mas aí cito abertamente a minha amiga Magna: ela colocou um Oceano de distância entre ela e o objeto amoroso – e posso dizer que tal como a maioria de nós, mulheres, ela estava tratando caco de vidro como se fosse diamante – e, é aquilo de sofrer muito hoje, amanhã sofrer menos e ir sofrendo até que tudo passa. A gente se vicia em quem ama. Quando ocorre comigo, pior ainda: sou insistente, bato a cabeça na parede até vir à consciência de que daquele mato não vai sair coelho.
A conversa toda de Kristeva é para mostrar esta desproporcionalidade, o quanto a gente sofre pelo que a olhos nus, não vale o sofrimento. Mas então ela associa, mostrando que a gente agrega sentidos e confere e transfere valores e sentimentos de outras experiências para o objeto do sofrimento que estão por trás da ‘hipnose amorosa’ porque, sim, ela existe. Vale a pena ponderar sobre isso, especialmente num tempo em que as mulheres estão topando qualquer coisa por um homem; e amor e fidelidade são artigos de luxo, escassos e caros no mercado dos afetos e que, por conseguinte, levam os homens a dizer: “Se você me deixar por causa de uma traição, vai pegar outro que irá trair muito mais”. Muito particularmente, não sou apocalíptica nem fatalista: diante dessas crises e do perfil predominantemente histérico das mulheres (lembro-me dos Titãs: “Todo mundo quer amor/todo mundo quer amor de verdade/uma pessoa boa quer amor, /uma pessoa má quer amor,/quer amor de verdade...”) acho que vai chegar um momento em que a monogamia será sepultada explicitamente. Explicitamente mesmo, não é essa coisa que a gente tem hoje em dia e que vê que a colega finge não ter ciúmes, que todos fingem não querer estabilidade emocional, relações estáveis, mas sofrem diante do vazio ou da ameaça de perda.
Deixa o tempo passar que as respostas virão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário