Louquética

Incontinência verbal

sábado, 31 de julho de 2010

Atire a primeira pedra!


Não quero nunca perder minha capacidade de me indignar.
A cada vez que vez que me sinto indignada lembro que eu não sou de pedra, não sou de lata, não sou indiferente ao que simbolicamente atinge aos outros em sua dignidade e que, indiretamente atinge a mim.
Não pude ser indiferente aos incontáveis casos de mulheres condenadas à morte por apedrejamento mas, o mais recente, por conta do estardalhaço na imprensa, me atingiu em cheio. Sakineh Mohammadi Ashtiani não é diferente de todas as outras mulheres oprimidas e condenadas e, em vários casos, quando há a articulação da morte do marido , elas são condenadas à prisão. O adultério é que supõe a pena de morte por apedrejamento.
Penso em muita gente cristã, de bom coração, que neste momento raciocina que se as leis brasileiras e mundias fossem desse mesmo jeito, teríamos um país e um mundo menos desavergonhados, que assim é que deve ser, com uma lei rígida, para evitar infrações e ousadias descabidas.
Há vários defensores do machismo, inclusive as mulheres. Estas, sim, vivem condenando às outras do seu próprio gênero, concorrendo, educando os homens em princípios patriarcais, determinando desde a educação doméstica qual é o papel moral das mulheres e qual o papel moral dos homens. São estas desgraçadas que dizem qual é o lugar dos homens e qual é o lugar das mulheres; o que fica feio para uma mulher, mas nunca o que é feio para um homem. Estas mesmas, defensoras da virgindade feminina, mas nunca da masculina - embora Deus me livre de defender estas coisas para nenhuma das partes, porque acima de tudo está a liberdade de escolha.
Por isso fico condoída com a situação atual das mulheres.
Por isso fico perplexa quando um idiota qualquer afirma que a situação atual da mulher é maravilhosa, que nós alcançamos vários avanços sociais e jurídicos...uma peste que diz isso não tem a menor visão acerca das diferenças salariais (para menos) que as mulheres encaram no desempenho da mesma função que um homem, no plano profissional; um ser humano parcial deste aí não vê que somente em 2004 a mulher ganhou o direito civil de deixar o lar, desde que comprovados os maus tratos e a violência contra ela cometidos, sem que isso se configure em abandono do lar com perda dos direitos matrimoniais; uma pessoa desta não nota o quão humilhante foi conviver com a prerrogativa legal de anulação do casamento civil se comprovada a não virgindade da noiva...e quantos crimes para lavar a honra vitimaram as mulheres?
Eu não sei em que mundo este povo lindo e otimista vive, mas, com certeza, não é no meu.
Nos vários anos em que fui voluntária em dois hospitais públicos, via como as atendentes e as auxiliares de enfermagem tratavam às mulheres que lá chegavam em meio a um aborto: humilhavam, maltratavam, davam surras morais, faziam uso de violência psicológica, inculcavam culpas, independentemente de comprovar se o aborto foi provocado ou natural.
Aquelas mulheres funcionárias do hospital não viam que as mulheres que ali chegavam corriam o risco de morrer, que sofriam, que passavam por dores, que eram seres humanos.
Não conheço ninguém a favor de abortos, nem mesmo estas mulheres citadas, mas conheço muita gente que, como eu, é a favor da legalização do aborto.
A questão dos diretos e do reconhecimento dos direitos incomoda porque toca naquilo que todo mundo sabe que acontece e existe, mas que ninguém quer admitir. Tornar lícito é assumir a existência daquilo que incomoda e que desafia as regras impostas pela moral.
Mas, deixa para lá, porque tem muita gente que vive num mundo lindo, sem racismo,sem sexismo, sem violência, sem homofobia...eu é que ainda não encontrei esse mundo e por isso tenho que me conformar com a vida real.
Cada um que se cala diante de situações que atingem a diginidade humana, também atira uma pedra no condenado, na condenada.
"Até sonhar de madrugada/uma moça sem mancadas, /uma mulher não pode vacilar".
Para os sádicos de plantão, para os defensores da moral e dos bons costumes e para os paranóicos religiosos, explico que Shekinah deverá ser enterrada até à altura do peito e receber pedradas firmes e fortes que garantam uma lentíssima e dolorosa morte.
Eu sei que muitos apelarão, como fez indiretamente o nosso presidente,à relativização.
Para quem faltou às aulas de Antropologia, eu explico: não podemos estabelecer comparativos entre práticas culturais de países, de povos, de etnias diferentes.
Cada ato, hábito ou costume tem um determinado significado para aqueles povos em questão.
Quando usamos os parâmetros de nossa cultura para medir os hábitos culturais dos outros, somos etnocêntricos.
Entretanto, penso como Anthony Kwamé Appiah, para quem os limites da relativização cultural são aos direitos humanos (ele não se referia a Direitos Humanos, com maiúsculas, institucionalizados, sabe?).
Por isso acho absurda a morte por apedrejamento, acho absurda a retirada dos clitóris das meninas, em certas culturas; acho absurdo qualquer absurdo que vitime o outro, que lhe fira a dignidade, o corpo e o bem-estar.
Não interessa se na China ou no Teerã, não importa onde a violência esteja, não importa se a violência é o assédio moral ou psicológico, se assume ares simbólicos ou materiais: importa ver que a violência continua e que realmente, cada um dos que se omitem contribui para que nada mude.

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