Louquética

Incontinência verbal

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A era de Eric Hobsbawm



Acordei com a notícia da morte de Eric Hobsbawm. Não demorou sequer até o fim do meu café da manhã para eu receber um telefonema do meu amigo comentando o fato, argumentando que não teria passado no doutorado sem ter lido as obras de Hobsbawm.
No curso de história eu já convivia com ele, mas foi em Letras que a leitura se tornou mais acurada: A era dos extremos – o breve século XX (1914-1991) é uma bíblia em tamanho e nele se encontra de tudo. O conceito de História em Hobsbawm é largo, convida várias fontes, não se atém somente ao factual de datas, nomes, lugares e personalidades políticas. No capítulo 6 ele trata das artes, dos movimentos de vanguarda:
“O motivo pelo qual brilhantes desenhistas de moda, uma raça notoriamente não analítica, às vezes conseguem prever as formas dos acontecimentos futuros melhor que os profetas profissionais é uma das mais obscuras questões da história; e, para o historiador da cultura, uma das mais fundamentais. É sem dúvidas fundamental para quem queira entender o impacto da era dos cataclismos no mundo da alta cultura, das artes da elite, e sobretudo na vanguarda. Pois aceita-se geralmente que essas artes previram o colapso da sociedade liberal-burguesa com vários anos de antecedência (ver A era dos impérios). Em 1914, praticamente tudo que se pode chamar pelo amplo e indefinido termo de ‘modernismo’ já se achava a postos: cubismo; expressionismo; abstracionismo puro na pintura; funcionalismo e ausência de ornamentos na arquitetura; o abandono da tonalidade na música; o rompimento com a tradição na literatura.” (HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995).
E vai longe nesta análise porque não são citações rasas o que ele faz ao longo da obra. E desse convívio teórico nasce uma familiaridade, uma certa identificação, porque o autor faz parte da formação da gente, representa uma mão a colaborar nos argumentos de teses, dissertações, seminários e acaba por ter nos leitores álibis, companheiros, comparsas.
A primeira vez na vida em que vi o Hobsbawm ser referido como marxista foi hoje, na Globo News: a filiação partidária dele nunca deixou impressões suficientes para atá-lo a um partido ou a uma corrente teórica. Nem sempre a filiação partidária define a tendência de escrita e pensamento do autor. Não consigo pensar nele como marxista, a menos que seja um neo-marxismo que o meu curso não deu conta de me explicar adequadamente. Tínhamos lá, na graduação, essa mania de catar a corrente teórica dos autores – culturalista, fundamentalista, marxista, leninista, direitista, fenomenologista... Ora, pois, não faltariam rótulos para encaixar os autores.
Já em Nações e nacionalismos desde 1780 – Programa, mito e realidade (Paz e Terra, 1990), vejo outras coisas no modo de expressão do historiador, especialmente no trato da nação como novidade e no nacionalismo no final do século XX: “A questão nacional é, notoriamente, um tema controverso. Não procurei fazê-lo menos controverso. Espero, contudo, que estas conferências, em sua forma impressa, possam fazer avançar os estudos dos fenômenos históricos de que elas tentam dar conta”, diz o autor em seu prefácio.
E na introdução, diz ele: “Suponha-se que um dia, após uma guerra nuclear, um historiador intergaláctico pouse em um planeta então morto para inquirir sobre as causas da pequena e remota catástrofe registrada pelos sensores de sua galáxia. Ele, ou ela – poupo-me de especular sobre o problema da reprodução fisiológica extraterrestre -, consulta bibliotecas e arquivos que foram preservados porque a tecnologia desenvolvida do armamento nuclear foi dirigida mais para destruir pessoas do que propriedades. Após alguns estudos, nosso observador conclui que os últimos dois séculos da história humana no planeta Terra são incompreensíveis sem o entendimento do termo ‘nação’ e do vocabulário que dele deriva.” (p. 11).
Não estou aqui reproduzindo as coisas para demonstrar a inteligência do finado historiador, mas pela pertinência do que foi exposto, pela ironia com que ele escreve também, pelo fato de ele ter morrido aos 95 anos sem nunca descurar de observar o mundo, de pensar o mundo, de olhar o entorno e de se posicionar naquilo que se afigurava aos seus olhos como probabilidade, como sinal, que por fim, resultava nessas leituras de contexto.
Claro que acho engraçado o sintagma profetas profissionais. Meus sonoros “kkkk” são inevitáveis. Certamente um pouco pior por eu não acreditar em cartomantes – pois é, talvez em cartas eu acredite, mas nunca em cartomantes... – e vejo com bons olhos essa zombaria toda frente a um mundo que “sempre precisará de ridículos tiranos”, como disse o Caetano Veloso e não menos precisará de ridículos salvadores, profetas e gurus. E eu só acredito que as cartas não mentem jamais porque quando chegam as de cobrança eu acredito muito nelas.
Mas, deixando a minha própria ironia de lado – até porque estou aqui de orelha em pé por ter ouvido a Globonews anunciar que apresentar um sujeito que vai discutir a importância do acaso na vida real das pessoas (e em acaso eu acredito totalmente) – queria, sim, lamentar por mais uma mente brilhante que vai para as terras do sem fim, para o além.
Pelo menos tive a honra de conhecer o Peter Burke em pessoa, e espero que ele demore muito sobre a terra, mas o Eric Hobsbawm, esse eu queria ter visto em palestra. As celebridades intelectuais são muito mais interessantes, entram na vida da gente mais do que personagem de novela das oito, até temos certa proximidade porque estão ali, na estante. E é isso: Hobsbawm vai deixar mais do que as cinzas do que ele foi em vida, deixa palavras, pensamentos, deixa impressões de eras, das vividas e das reconstituídas... e fica na vida da gente – está ali na minha tese, esteve na dissertação, está num argumento, está incorporado na vida profissional e na vida intelectual mesmo.

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