Louquética

Incontinência verbal

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Tropeços


Ninguém duvide do meu amor pelos meus amigos, ainda que não seja todo dia que eu lhes dedique carinhos, afetos ou elogios. Aliás, não poupo críticas e não evito discutir coisas difíceis com eles, sabendo que a recíproca é verdadeira porque os amigos que realmente gostam da gente não se esquivam de dizer verdades incômodas; e trocam a estabilidade bajuladora pelos riscos de jogar limpo.
Hoje foi a aula pública de um amigo meu.
Desmarquei compromissos, deixei para amanhã as coisas que seriam urgentes.Adiei, acompanhei, compareci e, para mim, a vitória era certa porque o meu amigo é competente, dominava o assunto, tinha a necessária experiência, tinha as fontes bibliográficas adequadas e todas as condições necessárias para obter êxito. Até mesmo a banca era conhecida e contribuiu para deixá-lo descontraído.
Não será surpresa anunciar desde já que ele se deu mal no processo seletivo. Não obstante, ele escolheu perder – decisão inconsciente, claro.
Somente presenciando a aula pública para ver que, assim como ele alegou, ali não era ele. O tempo da aula seria entre 45 e 60 minutos: ele deu 28 minutos de aula.
Ele tinha conteúdo, ele tinha o que discutir e, surpreendentemente, foi acometido por um “branco” que ele próprio classificou como “apagão”.
O assunto era delicioso. Por questões éticas vou apenas dizer que se tratava da lírica de Gregório de Matos. Os poemas foram bem selecionados, mas, na aula, após o terceiro e último poema, ele simplesmente parou e encerrou. Assim mesmo: começou meio atrapalhado, começou a desenvolver e ploft! Encerrou, do nada; como quem é atropelado no meio de um percurso. E que tombo!
Sofri com ele. Sofri muito. Entendi o sentimento de vergonha que ele teve. Entendi o branco do tipo que nos coloca ante a eterna indagação: “O que foi que aconteceu?”.
De manhã ele se amarrou para sair para a universidade: marcamos uma antecedência de duas horas. Ele apareceu quarenta minutos antes: primeiro sinal.
Na universidade ele levou uma queda: sinal número dois de ato falho.
Durante a aula ele se enrolou no fio condutor do projetor e quase cai.
Ando de lá para cá como não convém: combinamos que a antecedência seria para pisotear a angústia e o nervosismo - eis um conselho que eu dou até aos meus concorrentes: chegar antes e andar de lá para cá faz com que se descarregue as tensões, os nervosismos todos. Funciona! Aí na hora de fazer a aula o corpo já está dominado pela mente.
Ele sabia tudo.
Gregório de Matos é daqueles autores com os quais a gente dorme, vive, almoça, conhece à exaustão, ainda mais aqui na Bahia. Logo, não ter o que dizer não era questão de burrice nem de falta de assunto, claro está...
Bom, remoemos o acontecido.
Encontramos a esposa dele e fomos ao shopping comprar um presente para uma amiga, mas o assunto não saiu de nós, todo mundo consternado, com cara de quem levou um tombo.
Meu amor pelos meus amigos é mesmo tão grande que topei assistir ao Motoqueiro Fantasma, que está em cartaz e tem subtítulo sei lá como: tipo de filme para gente chapada, porque é uma loucura aquilo tudo, ainda mais em 3D, com lentes arranhadas e um cinema cheirando a xixi de criança e mofo, como são as salas do Multiplex do Boulevard.
Não nego que dei risada: o Motoqueiro, certamente, injeta, fuma e cheira substâncias psicoativas proibidas por lei (ou seja, esse peste fuma um baseado, mistura com cocaína e arremata com heroína e ecstasy) porque aquela caveirinha lá dá umas risadas estranhas, vive doidão, num barato de louco, fazendo maluquices, alucinando geral e, para complementar, o filme não é politicamente correto, não - a galera desce a madeira na criança, promove mil outras situações de violência contra o menor. E como faz tempo que a ficção e o humor têm sido vigiados e têm suas asas cortadas, estranhei. Mas, ok, senti sono e dormi gostosamente uns vinte minutos sem que meus acompanhantes percebessem.
Devo dizer que fiz piadinhas com o Motoqueiro Fantasma, dando risada porque ele fica de cabeça quente, sujeito mais esquentadinho e de temperamento incendiário; e fazendo outros trocadilhos bestas, porque o filme é besta, feito para divertir e estrondar sonoridades estereofônicas. Mas somente o amor por um amigo para me fazer perder duas horas e vinte reais numa sessão de terça-feira. Queria eu que a catarse ali estivesse feita.
Após o filme, novo tropeço e quase queda do meu amigo: sinal número três de ato falho. Certamente, ele escolheu mesmo perder, por alguma razão interna e desconhecida até para ele. Suponho que nunca seja fácil desejar e ter, porque encanta e aterroriza, traz responsabilidades, atrai olhares e críticas. Por menos que a gente admita, nós nos importamos, sim, com as opiniões alheias, com o que se diz e com o que se pensa sobre nós. Sendo professor, isso é bem mais comum. E sendo professor de universidade grande e renomada, ainda mais quando somos filhos da casa, formados por aquela instituição, tudo se torna mais difícil.
Depois das quedas resta o grandioso exercício de se recompor. E é assim: intelectualmente nós somos capazes de entender tudo, de explicar tudo. Porém, processar emocionalmente não é fácil – estou aqui, processando o que houve...Imagine ele...

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