
Por pequenos eventos, às vezes nossa vida muda de uma forma absurda. Quando não, algo em nós muda demais: estou surpresa pela minha vontade ou pela minha constatação de que posso (ou devo?) mudar de cidade.
Tem esse meu amor incomensurável pela minha casa. Ah, esse é sentimento verdadeiro, imutável: minha casa é parte da minha história, é uma tapera, uma caverna. E é uma caverna high-tech, justamente porque não quero mexer nos vestígios da minha história.
Minha casa é minha infância e é o resumo de minhas conquistas. É o tamarindeiro que vi crescer e são as palmeiras imperiais que existiam há quase um século quando eu cheguei aqui, e que vejo imponentes; são os besouros que eu conheço pelo nome, são as plantinhas, são meu bichos e os barulhos irritantes dos passarinhos estereofônicos que me acordam. Minha casa é mais que uma herança material: são páginas reais de minha memória que eu, sinceramente, temo que a especulação imobiliária um dia tome para transformar em condomínio ou casa comercial, como já recebi propostas.
Essa é minha relação com a minha casa.
Mas vem a minha relação com a cidade, que não é nada do que eu pensava.
Imagine que essa descoberta é algo como você ter um casamento, perceber as faltas e as carências, mas ir se acomodando ou se conformando. Pois é!
Não tenho amigos aqui, não tenho namorado, não tenho vínculo, não tenho emprego aqui. O que tenho em Feira é o meu passado.
Esta é uma cidade sem concursos, uma cidade com universidades grandes e sem a criação de meios de absorção da mão de obra gerada, é uma cidade com uma prefeitura cara de pau que, quando fez um único concurso para professor, o fez em nível de Séries Iniciais, sem sequer ter a desfarçatez de pôr 01 vaga para Biologia, 02 para Letras, 01 para História, essas coisas que as prefeituras fazem para, pelo menos, disfarçar o engodo.
Não,aqui, não interessa seu nível, a cada década se faz concurso para Séries inicias, te põem a trabalhar no Ensino Fundamental e receber como se fosse Séries Inciais. O jogo é muito sujo. Mudança de nível e plano de carreira, só para 03 ou 05 anos, se ainda existir plano de carreira.
Não é ruim viver aqui, mas para mim é insuficiente.
Já viajei demais, já fiquei longe demais de casa e da cidade, neste cansativo ir e vir.
Já sonhei muito em ganhar meu pão no lugar em que vivo, mas é impossível mesmo. E se fosse possível, agora seria também insuficiente.
Talvez por isso pareça que sou mal agradecida com tudo que conquisto: tenho essa necessidade de renovação, sou hiperativa, sou a favor de qualquer "veneno anti-monotonia". Podem me chamar de tudo, menos de uma pessoa morta e parada. Eu não, eu reajo!
Se tenho momentos de letargia, movimento forças para passar, para mudar.
Aprendi a enfrentar os meus medos mesmo nas situações em que a luta está previamente perdida: quanto a isso, por mais que a gente seja otimista, convém ser realista e reconhecer o poder do mais forte. Foi assim que passou o medo de viajar de avião, o medo de me lançar aos meus desejos e ousar tocar nos lugares em que o braço parecia não alcançar.
Vou pensar mais sobre aquela viagem distante, porque aí, sim, é distante demais. Contudo, penso conforme Tati: oportunidade única. E tenho de 08 a 10 meses para pensar nisso.
Não fui à aula hoje e isso também é excepcional.
Fiquei em casa e graças a Deus, Joaquim veio almoçar comigo, veio conversar comigo e sujar todos os pratos, copos e talheres desta casa. Que bom! como a gente se entende!e aproveito para me corrigir: eu tenho, sim, amigos aqui. Tenho amigos do c#ralho, sabe? gente fina mesmo!gente solidária, presente mesmo quando longe, nem sei como dizer o quanto eles são importantes, leais e legais. Eu é que reconhecidamente sou a chata.
E comer macarrão ao molho de pimenta calabresa à moda do chef Joaquim não tem preço!
Retribuí: fiz mousse de morangos verdadeiros. Depois de comer toda a mousse, ele disse: "Odeio morangos!quase que nem aceito, mas aceitei por vergonha e agora me deliciei e adoro morangos nas receitas que você faz!". Ah, gente, me senti o último morango do cesto.
Induzi João Neto a comer morango com mel, certa vez, e ele se empanturrou. Acreditem, eu dou bons conselhos gastronômicos (vou trocar o meu livro de contos,que lançarei em breve, Todas as mulheres se chamam Maria, por um livro de culinária - garanto que será uma leitura gostosa - kkk!)
Como eu disse, não fui à aula, pela primeira vez. Então decidi que não iria ver C. porque eu estava de saco cheio dele, porque eu precisava quebrar o vínculo, porque eu sei que ele tinha certeza que me veria e preferi boicotar os desejos dele e porque acabou. Cansei de ter que conversar com os amigos tendo que dizer o sobrenome dele, para não confundirem com o homônimo, porque toda hora isso acontece e as pessoas ficam chocadas!
Então muitas coisas aconteceram neste final de semana, até em relação a administrar a saudade de Allan e a noção de que foi um evento e acabou. Ficou em mim o fruto da experiência, da mudança.
Até Ilmara me perguntou o que foi que a psicanalista fez ou me disse para que eu mudasse tanto - eu nem tenho resposta objetiva sobre isso, mas sei que encontrar Allan foi como receber aquele beijo que o Príncipe deu na Bela Adormecida, sabe? me acordou para muitas coisas, muito além do que as coisas relacionadas aos meus tabus - estes, então, foram despedaçados em partículas minúsculas.
Nunca um encontro resultou em tamanha ruptura interna.
Sinceramente, desestabilizou até mesmo a minha relação com a história de minha iniciação sexual - ora, quanto tempo perdido com uma construção cultural enlatadinha que me caiu em cheio como uma verdade inquestionável. Verdade agora reduzida a cacos.
Daí que a gente questiona mesmo o valor do tempo - o tempo cronológico, de fato, não é nada em relação ao tempo subjetivo.
Passei quase dez anos completos com uma pessoa que não causou o que 04 dias com Allan causaram.
O mesmo posso dizer dos meses em que namorei Marcelo: 03 meses que superaram essa quase década de relacionamento vicioso, cheio de tracejos edipianos, de que eu não me desvencilhava e só me fazia mal.
Talvez eu tenha dormido por cem anos, nestes dez.
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