Louquética

Incontinência verbal

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O amor e a fila


Eu amo muito o meu amigo Leonardo. Amo e admiro.
De vez em quando eu fico atônita com a propensão que ele tem para encarnar angústias.
E angústias quem não as tem? mas ele me preocupa, ele me abala e me abalou apenas por colocar em epígrafe os dois primeiros versos deste poema de Vinícius que eu, mais neurótica que meu amigo, transcrevo na íntegra - e já não sei a que a integralidade se deve.

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: — Nunca fez mal...
Quem, bêbado, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: — Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: — Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançara um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: — Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: — Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?


(Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar - Rio, 1998, pág. 455)

Acho que minha amizade por Léo se faz por paridades, por identidades ( os contrastes existem, claro) e acho que falo dele falando de mim, porque também suponho que posso morrer de amores e de tantas outras coisas.
Transgredi uma parte dos meus tabus, esfacelando os cacos que restaram deles, mas não deixo de, contraditoriamente, olhar com espanto as exigências dos nossos tempos.
Não obstante eu ser resistente moralmente a algumas coisas, há outras que eu sempre tive vontade de experimentar, de praticar, de dizer, de desprezar, de me desfazer e de ignorar.
Por outro lado, eu que observo o desespero das filas que andam, também pergunto até onde elas chegarão.
Ontem eu tive que confrontar com a verdade de alguns comportamentos de minhas amigas que podem ser traduzidos por desesperos biológicos: se sentem velhas e na idade limite de ter filhos... mais um pouco de tempo e elas perdem a validade, seus sonhos perdem a validade - então, estão na corrida, me dizendo que a fila anda.
Eu reclamava que minha fila andava em círculos, voltando para os mesmos elementos, os senhores meus ex-namorados.
Depois eu vi nisso um comportamento viciado/vicioso e radicalizei: terminou, terminou. Faço do cara um excluído: excluo das redes sociais, do e-mail, de tudo, principalmente da agenda. Poxa, isso é que se chama de "para sempre".
Nada disso se faz sem um pouco de angústia, apesar da paz precedente.
Mas, para quê essa droga de fila anda, corre, gira, se não chega a lugar algum?
Quebra-se o tédio de estar parado, porque estar parado dá uma mostra significativa da perda de tempo...mas aí parece que ninguém vale a pena. Que engraçado!
E se a fila se multiplicar em multidões, em aglomerações, em congestionamentos? não virão os protestos?não virão atos de vandalismo?
Meu amigo está voltando e não sei se ele vai se adaptar ao tédio daqui, se fará a escolha certa na fila dele ou se, copiando meu comportamento de outrora, vai deixar que a fila descreva uma circunferência, voltando ao mesmo ponto experimentado e fracassado.
Quem de nós pagará o enterro e as flores, se pelo jeito estamos todos num mesmo buraco, independentemente da profundidade dos sete palmos?

Nenhum comentário:

Postar um comentário